20 anos da mesma luta
“…Não escolhíamos tarefas: tudo valia para manter elevada a moral dos líderes grevistas presos e de seus familiares.”
A gente tem feito 20 anos quase todo dia. No ano passado foram os da Anistia. Este ano, são os da epopéia da Greve do ABC. Comemoramos marcos fundamentais no processo da mesma luta que travamos, há décadas, muitas gerações de brasileiros, no sentido de transformar nossa pátria num país democrático, justo e igualitário.
A conquista da anistia para os opositores da ditadura militar, em 1979, trouxe de volta nossa dignidade política e a possibilidade do resgate dos valorosos brasileiros vitimados pela vilania cruel da repressão.
Em 1980, o êxito do extraordinário movimento de solidariedade aos trabalhadores do ABC, de que participaram todos os setores organizados da sociedade, garantiu a base da reconstrução da ordem legal e democrática do Brasil de hoje.
Nós, do Comitê Brasileiro de Anistia de São Paulo, tivemos a sorte, a oportunidade, de participar, de modo decisivo, na coordenação da ampla rede de solidariedade ao movimento grevista daquele ano. Esta participação foi, à época, bem caracterizada nas palavras do grande, inesquecível e sempre necessário companheiro Perseu Abramo: “A solidariedade é um sentimento difuso, e, no caso presente, ela existe de forma evidente, entre as classes trabalhadoras, os setores populares, e entre as camadas mais proletarizadas das classes médias. A tarefa prioritária dos CBAs, em conjunto com outras entidades democráticas, é a de organizar essa solidariedade, ou seja, de transformá-la em apoio efetivo, que se dá em dois planos, o material e o político. O primeiro se traduz em auxílio financeiro e em espécie, em assistência jurídica e médica a presos e vítimas da repressão policial, em divulgação e propaganda tanto dos fatos quanto das reivindicações dos grevistas. O segundo exprime-se pela organização ou pela participação em manifestações populares de pressão contra as autoridades, que vão desde a emissão de notas e manifestos até os comícios, atos públicos, passeatas, e, nos casos em que isso for possível, greves de apoio, mesmo que simbólicas e parciais”. ( “Movimento”, 28/04 a 04/05/80)
Ao lado de companheiras de grande valor combativo e enorme dedicação, como Leda, Zilah, Marta, Judith, mergulhei de cabeça e coração no primeiro dos caminhos indicados pelo Perseu. Cuidamos, principalmente, de ajudar os companheiros presos e suas famílias a aguentarem o tranco da repressão. Não escolhíamos tarefas: tudo valia para manter elevada a moral dos líderes grevistas presos e de seus familiares.
Levávamos até o Dops a comida, quentinha e saborosa, saída de um fogão muito generoso e feita por mãos muito carinhosas, a fim de minorar o sofrimento da brutal separação dos presos de suas famílias. Visitávamos a casa de cada um, seus pais, irmãos, mulheres e filhos, para levar notícias e saber de suas necessidades materiais – a feira da semana, o mercado, a prestação, o aluguel, e resolvê-las. Muitas vezes, também conseguíamos apoiá-los emocionalmente, no mínimo esclarecendo porque seus familiares, trabalhadores e honestos, estavam presos como se bandidos fossem.
Em pouco tempo, os líderes presos se organizaram em coletivo, escolheram o responsável e aí, por meio de bilhetes (que Judith ainda guarda), recebíamos seus pedidos e providenciávamos para que tivessem o que mais necessitassem: livros e revistas, algum objeto de utilidade, alguma coisa que aliviasse suas saudades e a falta da liberdade.
Atravessávamos várias vezes por dia as cidades do ABC para chegar às vilas onde moravam as famílias, cruzávamos as forças militares que ocupavam suas ruas, conhecíamos a cotidiana brutalidade das patas de cavalo e das pontas de baionetas pressionando os grevistas nas filas para receber gêneros alimentícios, adquiridos com recursos do Fundo de Greve, em lugares que foram, sucessivamente, bloqueados pela polícia, até que apenas as igrejas puderam continuar com sua distribuição.
A sensação era a de percorrer territórios ocupados por tropas invasoras. Fazíamos esforços para reconhecer sobre o lombo dos cavalos e por detrás das baionetas, brasileiros como nós, como os grevistas. Os jornais contavam casos nos quais se confrontaram de um lado, armado, o soldado e de outro, o operário, seu irmão de sangue. E se perguntavam: e aí? Se tivesse que usar a arma, o que se passaria? Situações cruéis, reafirmando a crueldade da realidade daqueles dias (ou de sempre).
No dia em que as tropas saíram das ruas do ABC, eu e minha filha Mariana estávamos indo ao encontro da esposa de um dos líderes presos para lhe entregar algo de que necessitava. Quando nos aproximamos de São Bernardo cruzamos os caminhões de soldados que festejavam ruidosamente sua retirada, como a comemorar, também, a liberdade reconquistada. Na volta, à tarde, passamos pela cidade, já pacificada – as padarias reabriam suas portas, os jovens voltavam a passear pelas praças, os mais velhos recolocavam suas cadeiras nas calçadas. Inesquecíveis cenas que me traduziram, em sentimento, o clima do fim de uma guerra, o dia do armistício, a reconquista da paz.
Durante todos aqueles dias, por coincidência talvez, em nossa casa, Guarnieri, junto com Leon Hirszman, ultimava o roteiro do filme “Eles não usam black-tie”. No pouco tempo que tinha para estar em casa, pediam para contar tudo o que tinha visto ou sabido dos movimentos da greve. Passava para eles, sobretudo, sensações, sentimentos e emoções que, tenho certeza, impregnaram diálogos e situações do filme.
Assim vivi aqueles dias, em meio a fortes emoções, boas e más, agradecendo à vida a chance de ter podido participar, de forma radical e completa, das muitas lutas do CBA, ao lado de companheiras e companheiros fortes e corajosos. Mas, acima de tudo, por ter convivido e aprendido com Perseu Abramo a prática da tolerância e sabedoria políticas e com Zilah, sua mulher, a dimensão da ternura necessária a qualquer luta.
Abril de 2000
* Vanya Sant´Anna é socióloga, professora universitária e, na época, dirigente do CBA-SP.