Relato sobre a morte, o sepultamento, a missa e a mobilização da sociedade contra as torturas no país.

No relato que se segue, unidade cumpre apenas o dever de apresentar um documento – o das horas de Vladimir Herzog – que um dia poderá ajudar os historiadores a contar os trágicos dias de outubro.

Aos poucos, foi-se tornando uma rotina. A partir da prisão de Sérgio Gomes da Silva, era raro o fim de semana em que um jornalista não desaparecia misteriosamente no prosaico trajeto entre a casa e o trabalho. Pequenas notas de pé de página escondidas nos jornais diários registravam o nome dos colegas presos nas dependências do Departamento de Operações Internas do II Exército. A sigla DOI, associada á série de prisões, passou a fazer parte do nosso dia-a-dia – como essas pequenas tragédias, que pela sua monótona repetição acabam se incorporando, sem maiores traumas, ao cotidiano do jornalista.

Desde o início de outubro, o medo pairava nas redações. Um estranho medo coletivo, em que ninguém se sentia individualmente ameaçado, mas que crescia à medida em que se sucediam as prisões. A desinformação era completa e ninguém podia prever o que aconteceria no dia seguinte. Os dias de outubro avançavam e os presos continuavam incomunicáveis.

Apesar de avisado pelo pai de um amigo detido de que seu nome havia sido citado em interrogatórios no II Exército, Vladimir Herzog também não alterou sua rotina de trabalho: continuou chegando às oito da manhã à TV Cultura, onde era diretor do Departamento de Jornalismo e de onde nunca saía antes das dez da noite, depois de ir ao ar o principal noticioso da emissora.

Os avisos de que estava sendo procurado pelos órgãos de segurança não se confirmaram até a manhã de sexta-feira, dia 14 de outubro. E então, depois de uma semana tensa e angustiada, ele resolveu fazer o que há muito tempo não luzia: ir com a família para o seu sítio de Bragança Paulista. Apaixonado pelo trabalho na televisão, Vlado sempre fazia questão de colocar seu nome nos plantões de sábado e foi com surpresa que os amigos o ouviram falar, contente, dos seus planos: “Desta vez vou passar um fim de semana idílico com a família”.

Eram quase nove horas da noite, quando dois senhores bateram à porta da casa de Vlado, que não estava. Clarice, sua mulher, estranhou a conversa dos dois:”Temos um free-lancer para ele”. Todos os seus amigos sabiam que Vlado não era de fazer free-lancer, que não tinha tempo para isso.

Durante toda a semana, Vlado e Clarice, como outros casais de jornalistas, tinham conversado muito sobre a situação, sobre os riscos que todos estavam correndo. Por isso, ela não teve dúvidas: quando os dois senhores saíram para procurar Vlado na TV-Cultura, seus maus pressentimentos se confirmaram. Telefonou para ele, pegou os dois filhos – André, de 7 anos, e Ivo de 9 – e foi para lá.

Na TV-Cultura os dois senhores não falaram mais em free-lance: identificaram-se logo como agentes dos órgãos de segurança, com ordens para prender Vlado. Rapidamente, seus colegas de trabalho se mobilizaram, tentando explicar aos agentes que não poderiam fazer aquilo, porque ele tinha que colocar no ar o jornal da emissaora. Enquanto isso comunicavam o fato aos diretores da empresa, que pertence ao governo do Estado.

Sem saber o que fazer, os agentes comunicaram-se com seus superiores e, após demoradas negociações, acabaram desistindo de prender Vlado naquela noite, com a condição de que ele se apresentasse no dia seguinte, às 8 da manhã, na rua Tomás Carvalhal, 1030, sede do DOI.

Vlado voltou ao seu trabalho normalmente e acompanhou a edição do noticioso da noite, como fazia todos os dias. Dos seus comentários antes de ir para casa, os colegas da TV Cultura não esqueceram um: “Não tenho nada a temer. Amanhã me apresento, esclareço tudo e volto para casa”.

Vlado acordou na manhã de sábado, fez a barba, tomou banho e despediu-se da esposa com um beijo. Clarice lembra: “Ele estava tão tranquilo que nem me levantei para acompanhá-lo até a porta”. Paulo Nunes, setorista da TV junto ao II Exército, que dormiu em sua casa, foi com Vlado para o DOI. Antes, no caminho, pararam num bar para tomar café com leite. Foi assim que Vlado se apresentou ao DOI, às 8 da manhã em ponto, como havia sido combinado.

No fim da tarde, Vlado estava morto. No domingo, “O Estado de S Paulo” informava apenas a prisão de Vlado e o único jornal a publicar sua morte foi um do Rio, “O Globo”.

As redações já estavam desertas àquela hora. Sem nada saber, os jornalistas passaram a noite de sábado, 25 de outubro, preocupados apenas com as sucessivas prisões, tentando descobrir qual, afinal, o motivo do pânico que se estabelecera em toda a classe.

O domingo amanheceu escuro. Nas redações semi-desertas nesse dia quase só de plantões, a notícia correu lenta. Os que têm telefone em casa, sem saber o que fazer, dirigiam-se para o Sindicato, onde o movimento começou a crescer desde as primeiras horas da manhã. Apesar disso, reinava o silêncio. Nem era preciso dizer nada.

As pessoas olhavam-se, davam-se as mãos e sentavam-se estateladas nas poucas cadeiras e no chão. Que fazer’?

Antes de tudo, amparar a família, ver o que precisava, o que se podia ajudar. A nota oficial do II Exército, trazida dos jornais, circulava de mão em mão, sem comentários. Era preciso fazer uma nota do Sindicato. Talvez primeira nota feita a vinte, trinta, quarenta; infinitas mãos. Ao final, foi lida pelo presidente para que fosse analisada por todos. Aprovada, cuidou-se de que todos os jornais e emissoras de rádio e televisão a recebessem o mais rápido possível. Grupos se formaram para levar a nota. Outros foram para a casa de Vlado, outros para o velório.

Os jornalistas todos pareciam um só. Eram poucos e eram muitos, eram todos e, naquela hera, eram ninguém.

Apenas 24 horas depois de sua morte, o corpo de Vlado chagava ao Hospital Alberto Einstein, onde foi velado, vindo do Instituto Médico Legal. No IML, foi impossível a qualquer pessoa da família, até mesmo a sua mulher, ver o corpo. A resposta às várias tentativas feitas por amigos e parentes era sempre a mesma: “Não pode. São ordens superiores”. Também por “ordens superiores” funcionários do IML queriam fazer imediatamente o sepultamento. Apesar do seu desespero, Clarice ainda teve forças para impedir essa tentativa: exigiu o cumprimento do ritual judaico, que acabou ficando a cargo do Khevra Kadicha (“Santa Irmandade”), uma instituição humanitária da comunidade judáica, encarregada de cerimônias fúnebres. Nenhum rabino apareceu.

Os colegas que estavam de folga no domingo começaram a aparecer no velório ao final da tarde. A coragem e a firmeza de Clarice impediram que o sepultamento se fizesse ainda no domingo, sem que muitos dos amigos e parentes de Vlado pudessem ser avisados da sua morte. E o enterro foi marcado para a segunda-feira. Mas durante toda a noite, ainda temendo uma antecipação no horário, grupos de jornalistas revezaram-se ao lado de seu corpo, apesar da intimidadora presença de estranhos, que não escondiam suas armas, como registrariam os jornais do dia seguinte.

No velório, acompanhado por cerca de mil pessoas, entre jornalistas, professores, atores, intelectuais, amigos e parentes de Vlado, além de deputados e senadores do MDB e do cardeal arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, tudo o que Clarice conseguiu foi ver rapidamente o corpo, já vestido e dentro do caixão. Em vão ela ainda insistiu na obtenção de um segundo laudo médico (o laudo do IML já fora divulgado pelo II Exército e as exigências legais, assim, estavam cumpridas). O caixão permaneceu fechado até o sepultamento às 11 horas da manhã de segunda-feira.

Silenciosamente, em cerca de 300 automóveis, mais de mil amigos de Vlado foram leva-lo até o Cemitério Israelita, no quilômetro 15 da via Raposo Tavares. Muitos dos amigos de Vlado ainda estavam estacionando seus carros quando as primeiras pás de terra já eram lançadas sobre o caixão, posto rapidamente na Cova. Foi tanta a pressa em terminar logo a cerimônia que, apesar dos gritos de protesto de Clarice e diversos outros presentes, não se esperou pela chegada da mãe de Vlado, dona Zora, para o início do sepultamento, como manda a tradição judáica. Outro item do ritual foi desrespeitado: a lavagem do corpo para purificação, normalmente cumprida no cemitério, foi feita no hospital. Além disso, Vlado foi sepultado sem que o Kaddish (oração dos mortos) fosse proferido. Os gritos de Clarice perderam-se no ar: impassíveis, os cantores persistiram na sua estranha pressa, sem se importar com os rituais. Nenhum rabino estava presente e uma oração acabou sendo feita por um padre católico. Um cantor, entoou a “Reza para Depois do Enterro”, já com a presença de dona Zora, e tudo estava terminado.

Vladimir Herzog, 38 anos, casado, pai de dois filhos, jazia no túmulo 64 da quadra 28. bem distante das quadras 26 e 27, reservados para os suicidas – que entre os judeus, nunca são enterrados ao lado dos demais mortos.

Foram então prestadas as últimas homenagens: falaram um jornalista e uma atriz. Um padre católico pediu que os presentes se dessem as mãos, e todos rezaram o Padre Nosso. O presidente do Sindicato dos Jornalistas, Audálio Dantas, repetiu Castro Alves: “Senhor Deus dos desgraçados/dizei-me Vós, Senhor Deus/ se é mentira, se é verdade/ Tanto horror perante os céus”.

Entre as pessoas que choravam, estavam os quatro jornalistas libertados na manhã de segunda-feira para irem ao enterro: Paulo Sérgio Markun; Anthony de Christo, Rodolfo Konder e George Duque Estrada. Os quatro tinham ordens para se reapresentar no dia seguinte, terça-feira para – segundo informaram ao Sindicato as autoridades militares – “completarem seus depoimentos” (ver quadro das prisões).

Se, antes da morte de Vlado, o medo dominava os jornalistas, ao deixarem o cemitério todos respiravam um ar de verdadeiro terror. “Que fazer?” – continuaram todos a se perguntar. E não voltaram para casa. Nem para as redações.

O Sindicato passou a ser o abrigo de todos os desesperos. E era preciso ter calma, medir cada palavra, cada passo, sempre no limite da lei, dentro da lei. As mensagens de solidariedade se multiplicavam – a partir das primeiras da Associação Brasileira de Imprensa e da Federação Nacional dos Jornalistas. A ABI pediu ao governo uma rigorosa investigação da morte do jornalista. Elas davam ao menos a confortadora sensação de que não estávamos sozinhos.

Começaram a chegar jornalistas de todas as redações, colocando-se à disposição do Sindicato para ajudar no que fosse preciso. Tensão e mágoa, medo e impotência, respeito e revolta – todos os sentimentos embaralhavam-se em cada rosto, em cada gesto, em cada palavra. Que fazer?

Os estudantes de jornalismo da USP também vieram ao Sindicato para trazer sua solidariedade (Vlado era professor deles). Atores, intelectuais, os amigos de Vlado todos – o Sindicato, que em tempos mais tranquilos dava a impressão de não ser capaz de um dia lotar, parecia reunir nesse dia, pela primeira vez em sua história, toda a classe.

Os diretores tinham saído, para atender a um convite do II Exército, e demoravam-se para voltar. O clima era cada vez mais tenso quando eles afinal voltaram, às 8 da noite, e deram início à reunião. Havia tensão e revolta. E clamor. A compreensão da gravidade do momento, porém permitiu que a reunião se desenvolvesse pacificamente. Todos expuseram suas idéias e a diretoria deu todas as informações de que dispunha sobre os colegas presos: A reunião foi transformada numa “vigília permanente em defesa da integridade física dos jornalistas”, no auditório que passou a se chamar “Vladimir Herzog”. Alguns colegas pediram a expulsão, do Sindicato, de jornalistas que difamaram a classe fazendo uma violenta campanha contra o Departamento de Jornalismo da Cultura, onde Vlado era diretor.

Os dias se passaram e a Ordem dos Advogados decidiu solicitar a interferência pessoal do Presidente da República para que fossem “rigorosamente apuradas” as circunstâncias em que ocorreu a morte de Vlado. Trinta mil estudantes da Universidade de São Paulo decidiram suspender as aulas em sinal de pesar e protesto, até o Culto Ecumênico marcado para a sexta-feira. Na semana seguinte, quando depois de um longo intervalo, novamente recebeu os jornalistas para as habituais conversas de fim de tarde, o governador Paulo Egydio revelava que tinha visto os levantamentos feitos pelos órgãos de segurança e que nada constava sobre qualquer atividade ilegal de Vladimir Herzog, contratado para ser diretor de uma emissora oficial. As dúvidas e as perguntas que permaneceram no ar só a Justiça poderá responder. É nela que confiam Clarice, Ivo, André e dona Zora – a mãe de Vlado que um dia resolveu deixar a Europa e trazer a família para o Brasil, fugindo do nazismo. E todos nós jornalistas, todos nós seres humanos.

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