O pretexto usado para fechar o Congresso foram dois pronunciamentos que fiz, em 2 e 3 de setembro, na seqüência da brutal invasão da Universidade de Brasília por um comando misto da Polícia Militar, da polícia civil e do Exército.

O pretexto usado para fechar o Congresso foram dois pronunciamentos que fiz, em 2 e 3 de setembro, na seqüência da brutal invasão da Universidade de Brasília por um comando misto da Polícia Militar, da polícia civil e do Exército.

O procurador-geral da República, Délio Miranda, pinçou trechos de ambos, na representação que fez ao Supremo Tribunal Federal, acusando-me de "abusar dos direitos individuais e políticos, praticando atentado contra a ordem democrática, vilipendiando as Forças Armadas, procurando contra elas criar sentimentos hostis da nação em que as mesmas se integram como instituições regulares e permanentes".

Do primeiro e longo discurso, pinçou o seguinte trecho: "Uma vez que no Brasil de hoje torturar presos inermes parece ser motivo de promoção na outrora honrada e gloriosa carreira militar, pergunto: quando pararão as tropas de metralhar na rua o povo? Quando uma bota, arrebentando uma porta de laboratório, deixará de ser a proposta de reforma universitária do governo? Quando teremos, como pais, ao ver os nossos filhos saírem para a escola, a certeza de que eles não voltarão em uma padiola, esbordoados ou metralhados? Quando poderemos ter confiança naqueles que devem executar e cumprir as leis? Quando não será a polícia um bando de facínoras? Quando não será o Exército um valhacouto de torturadores?"

Valhacouto quer dizer refúgio, abrigo, asilo, e o procurador sublinhou esse trecho.

O segundo discurso, o que afinal ficou famoso, foi pronunciado no "pinga-fogo", o horário das sessões reservado para pequenos pronunciamentos de, no máximo, cinco minutos. Ele teve o seguinte trecho pinçado: "Vem aí o 7 de setembro. As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento profundo de patriotismo do povo e pedirão aos colégios que desfilem junto com os algozes dos estudantes. Seria necessário que cada pai, cada mãe, se compenetrasse que a presença de seus filhos nesse desfile é um auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas. Portanto, que cada um boicotasse esse desfile. Esse boicote pode passar também – sempre falando de mulheres – às moças que dançam com os cadetes e namoram os jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje no Brasil com que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de suas casas àqueles que vilependiam a Nação, recusassem aqueles que silenciam e, portanto, se acumpliciam. Discordar em silêncio pouco adianta".

Eu não tinha os meios materiais de implementar essas recomendações de boicote, nem qualquer outro deputado os tinha. Portanto, eram recomendações vazias, puramente teóricas, que não ocorreria a ninguém de bom senso ou de boa-fé transformar em uma declaração de guerra de um poder da República contra o outro.

Um discurso inútil, poder-se-ia dizer, ou, para alguém irritado, poderia ser considerado um discurso bobo. No entanto, ele continha um elemento de fundamental valia para os que tramavam o golpe: o machismo. Recomendar que as moças não namorassem os tenentes era algo que até o pior aluno da Academia Militar entenderia como uma ameaça. Poderia, portanto, ser usado para desviar a raiva dos jovens oficiais, que estava voltada contra o governo, conforme se tornara público através da divulgação do manifesto dos capitães que cursavam a EsAO, em 1º de novembro. Esses capitães acusavam o governo de corrupto e de não se preocupar com o adestramento e o equipamento do Exército. Diziam-se cansados de ouvir falar de Corpo de Exército e de foguetes, quando lidavam no dia-a-dia com o mosquetão de 1908.

Um exército não se põe em marcha se os capitães não quiserem. São eles os oficiais mais numerosos e, comandantes de companhias, os que diretamente lidam com a tropa que vão entrar em ação. Foram, portanto, o alvo preferencial dos conspiradores. Como nenhum dos dois discursos havia sido registrado pela imprensa – o máximo de divulgação conseguido pelo segundo fora uma minúscula menção na Folha de S. Paulo – o general Emílio Garrastazu Médici, chefe do SNI, providenciou a sua distribuição na íntegra a todas as unidades do Exército.

Em 5 de setembro, portanto dois dias apenas após o discurso, o ministro do Exército, general Lyra Tavares, oficiava ao presidente da República citando os discursos e dizendo: "A coibição de tais violências e agressões verbais injustificáveis contra a Instituição Militar constitui medida de defesa do próprio regime, sobretudo quando parecem obedecer ao propósito de uma provocação que só poderia concorrer para comprometê-lo".

Afirmava que os pronunciamentos haviam tido grande ressonância no seio do Exército. Os ministros da Marinha e da Aeronáutica oficiariam em solidariedade ao do Exército somente duas semanas mais tarde, nos dias 19 e 20 de setembro, o que deixa claro ter a articulação do conflito partido de comandantes da força terrestre. Apesar disso, nem Lyra Tavares, nem o ministro da Aeronáutica, Márcio Mello, falavam em cassação de mandato. Limitavam-se a mencionar "providências legais". Somente o ministro da Marinha, Augusto Rademaker, o último a pronunciar-se, tratou desse assunto, ainda que por hipótese, escrevendo: "Parece ser o deputado Márcio Moreira AIves passível de enquadramento no artigo 151 da Constituição do Brasil." Quem escalou a ação para propor uma cassação de mandato avalizada pela Câmara, objetivo sabidamente difícil de ser alcançado, foi o ministro da Justiça [Gama e Silva].

[…]

Em novembro e dezembro de 68, quando a Câmara examinava o pedido dos ministros militares para que eu fosse processado por delito de opinião, Gama e Silva mudou-se para o Palácio do Congresso, instalou-se no gabinete da liderança da Arena, partido do governo, e praticamente assumiu o comando das manobras processuais. O líder do governo, deputado Ernani Sátiro, tinha infartado e fora substituído por um vice-líder, o mineiro Geraldo Freire, político de carreira e intelecto bastante modestos. A sua fraqueza permitiu que a condução do episódio passasse para as mão do ministro, cujo interesse era produzir o impasse entre o Executivo e o Legislativo e criar uma crise institucional a ser resolvida pela instauração da ditadura completa.

Na verdade, a estratégia dos adeptos da ditadura era uma espécie de jogo de perde-ganha. Se perdessem na Câmara, ganhariam nos quartéis, fazendo prevalecer a solução do arbítrio. Caso ganhassem na Câmara, perderiam momentaneamente a possibilidade de implantar a ditadura, mas quebrariam a resistência do Congresso a qualquer arbitrariedade. Após a cassação do meu mandato viriam outras. O pedido para processar o deputado Hermano Alves por artigos publicados no Correio da Manhã dera entrada no Superior Tribunal Federal em 29 de outubro, encaminhado pelo procurador da Justiça Militar, Nelson Sampaio. Chegou à mãos do presidente da Câmara, Zezinho Bonifácio, em 20 de novembro e teria encaminhamento semelhante ao do processo movido contra mim. Engatilhados estavam os pedidos de cassação de Hélio Navarro e David Lerer, deputados por São Paulo.

[…]

O presidente da Câmara dos Deputados, José Bonifácio de Andrada, mais apropriadamente conhecido como Zezinho, proclamou o resultado da votação que acabara de se encerrar às 15:00h do dia 12 de dezembro: 216 senhores deputados votaram contra a cassação do meu mandato; 141 senhores deputados votaram a favor; houve 12 votos em branco. A proposta foi recusada e seria arquivada.

Nas galerias apinhadas, alguém começou a entoar o hino nacional. Zezinho acionou as campainhas com energia, exigindo silêncio. Os versos do hino foram ganhando mais força. O som das campainhas foi coberto pelo canto, até que as campainhas deixaram de ser tocadas. Todos se puseram de pé e aderiram: "ó pátria amada, idolatrada, salve, salve!" As palavras eram entrecortadas por soluços, as lágrimas escorriam pelos rostos até de políticos calejados e cépticos, como se ainda surpresos pela temeridade do que acabavam de cometer, dizendo não aos três ministros militares, recusando-se a admitir as ameaças do presidente da República, mantendo incólume a mais antiga e mais importante proteção a um deputado no exercício do seu mandato: o direito de dizer o que bem entender da tribuna do Parlamento, sem que possa ser perseguido pelas opiniões que expressar.

 

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