O Ato Institucional nº 5: Sociedade e ditadura ao sul do Equador
O antigo costume das rememorações por ocasião do aniversário de certos acontecimentos tem motivado a Academia e a Imprensa, de uma forma cada vez mais tirânica, a voltarem o interesse para determinados temas ou processos, ou trajetórias individuais. Antes dava-se mais tempo ao tempo para efetuar estas visitas ao passado: era a tradição dos sesquicentenários (150 anos), centenários e cinquentenários, aniversários vetustos e solenes, relativamente consagrados. Agora, no entanto, apenas 10 anos já são suficientes para que algo, ou alguém, ou alguma coisa, se torne objeto social de atenção. Talvez porque o tempo tornou-se mais veloz, envelhecendo tudo precocemente, talvez porque não nos reste mais nada, a não ser olhar para o passado. O fato é que parece mais atual do que nunca a antiga canção nostálgica de carnaval, quando se sugeria que o ato da recordação equivalia a viver. Ou, inversamente, talvez fosse melhor dizer, como se, para viver, bastasse recordar.
Haja rememorações! Em cada uma delas, embates e combates, infindáveis, na titânica luta pela apropriação da memória, em que o passado – eterno quebra-cabeças, sempre incompleto, é reconstruído, destruído, decomposto e recomposto. Assim, não é suficiente vencer nos campos políticos e militares, em cada momento histórico. É preciso, a cada aniversário – e eles se multiplicam – continuar vencendo na luta pela representação que o futuro fará do passado – e isto se decide no presente.
O ano de 1998 não fugiu à regra: foi pródigo em rememorações. No Brasil, ao lado de outras,menos votadas, destacou-se, como é evidente, os 30 anos de um outro ano, o de 1968, que, embora de modo nenhum tão antigo assim, do ponto de vista cronológico, já (a)parece meio senil, como aquelas fotos amarelecidas de nossos tataravós: suscitam simpatia, despertam nostalgia mas não contam como decisivas nem para resolver o rumo dos negócios do mundo, em geral, nem de ninguém, em particular.
Apesar disto, ou por causa disto, houve importantes e animados debates, edições ou/e reedições de livros e artigos, e o curioso, e mesmo paradoxal, é que o grande objeto de análise tenham sido os atores sociais que, justamente, foram derrotados em 1968.
Nada haveria a objetar se os vencidos de antanho, em reviravolta não incomum na história, tivessem conseguido se tornar os vitoriosos de hoje. Mas não foi isto que ocorreu, ao contrário. Os derrotados tiveram sua derrota aprofundada. O sistema que combatiam tornou-se amplamente vitorioso. E consolidou posições, a um ponto tal que, não raro, recruta para gerenciar seus interesses os críticos e os rebeldes de 30 anos atrás. Por isso mesmo seus corifeus ousam dizer que o trem da História chegou ao fim da linha. A rigor, teria sido a própria linha que chegou ao fim, não restando ao trem senão duas opções: o imobilismo ou o retorno.
Mas se é assim, como explicar então que, na rememoração de 1968, tenha predominado a consagração dos perdedores? Será possível formular hipóteses para desvendar o aparente paradoxo?
Talvez a simpatia normalmente suscitada nos espíritos generosos pelos fracos e deserdados da Sorte. A hipótese seria boa se fosse possível pensar a sociedade brasileira como generosa, o que se torna difícil quando sabemos através das instituições internacionais – também nem um pouco generosas – que nosso país é vice-campeoníssimo em desigualdades sociais, só perdendo para um pequeno país miserável da África.
Poderia ser mencionada a força das esquerdas nas universidades e nos meios de comunicação. Estes esquerdistas! Perderam os embates políticos decisivos, mas continuam fortes nos meios que formam a opinião pública. Esta hipótese tem até uma parcial validade: com efeito, é inegável a presença, relativamente forte, das esquerdas, em seus vários matizes, nas referidas instituições. Mas, ao que se saiba, nenhuma tendência radical é proprietária de qualquer veículo de comunicação. Além disso, ninguém ignora a fraqueza substantiva das esquerdas, sobretudo das esquerdas rebeldes, aparentadas com o espírito de 1968. Esquerda um pouquinho forte no Brasil hoje, ressalvadas as exceções de praxe, não tem nada de rebelde, todo mundo anda muito bem comportado. Além disso, e de outro lado, e mais importante, esta hipótese sugere patrulhamentos de natureza ideológica, não é politicamente correta e cheira ao mofo sinistro da polícia política da ditadura. Incompatível, portanto, com a moderna sociedade democrática brasileira. A meu ver, portanto, a idéia de que a rebeldia de 68 foi celebrada por causa da ação das esquerdas não resistiria a um inquérito sério.
Em que ficamos então?
Há uma terceira hipótese, entre outras possíveis, que me parece fecunda. Vou a ela sem meias palavras: na rememoração de 1968, a rebeldia teve um papel de destaque para ocultar os comos e os porquês das relações viscerais estabelecidas entre a sociedade brasileira e a sua ditadura. Rememorar a rebeldia a esta é uma boa fórmula para ocultar que com ela se conciliou.
A rememoração dos 30 anos do Ato Institucional n. 5 parece-me um exercício interessante para testar a adequação desta hipótese. Aliás, diga-se de passagem, antes de entrar no desagradável assunto, que esta é a primeira, e provavelmente, a última vez, pelo menos em 98, que se rememora um ato dos então vencedores. É tratar de aproveitar a oportunidade porque, daqui a pouco, o ano termina e só voltaremos a falar do assunto, os que ainda estivermos vivos, em 2008, quando 68 soprar as 40 velinhas.
O Ato Institucional n. 5, apresentado em cadeia de rádio e televisão em 13 de dezembro de 1968, está associado na literatura e nos filmes existentes sobre os anos 60 e 70, nos livros didáticos de História e Ciências Humanas, no que existe, portanto, de memória nacional, à fase mais violenta da ditadura militar. Um Ato de horrores. Falar dele é falar de estado de exceção, de arbítrio, de desrespeito dos direitos humanos, de fim da representação política eleita, de tortura, de morte. Um episódio terrível na história de nosso país, trágico mesmo, nocivo. Muitos não hesitaram em sustentar, e com razão, que, embora tendo sido revogado no apagar das luzes de 1978, dez anos depois de editado, o Ato 5 terá deixado inegáveis sequelas de autoritarismo e de prepotência no organismo e no imaginário nacionais.
Neste diapasão, rememorar o AI-5 é recordar uma ferida insuportävel, irrepetível. Ai-5 NUNCA MAIS! Qual brasileiro ousaria dizer o contrário, mesmo sabendo que toda a unanimidade é burra? A atitude, a rigor, tem sua dose de positividade. Já imaginaram o contrário, se a sociedade brasileira estivesse se reunindo em comícios e atos públicos para aplaudir o AI-5 e celebrar seus autores? Seria, sem dúvida, o pior dos mundos. Portanto, ecoemos todos, unânimes e aliviados, os 150 milhões de democratas que habitamos este país abençoado por Deus e bendito por natureza: AI-5 NUNCA MAIS!
Entretanto, um tal exercício de civismo, embora encorajador, não poderia encerrar a rememoração.
Outras questões merecem ser consideradas.
O AI-5 foi brutal, já sabemos. Mas foi só brutalidade? Uma brutalidade insana? Uma coisa de gorilas? Mas se durou 10 anos, não terá desempenhado um papel na história deste país? Teria sido possível o milagre econômico sem o AI-5? E se ele foi essencial para a construção deste Brasil moderno que temos até hoje? E se ele foi o berço, de espinhos e de pregos, mas o nosso berço? É possível uma pessoa ou uma sociedade viver sem olhar para o próprio berço?
Sempre será possível elaborar exercícios contra-factuais e imaginar outras vias através das quais pudesse o país alcançar a sonhada modernidade, mas esta modernidade que está hoje aí é certamente produto do AI-5 e tem nele uma de suas poderosas raízes. Ela é inexplicável e incompreensível sem ele.
Mas há muito mais do que isto.
À sombra do AI-5 completou-se, do ponto de vista econômico, o ciclo nacional-estatista iniciado por Vargas em 1937. Mais uma ironia da História, porque, entre os vitoriosos de 1964, era forte a proposta de liquidar com as heranças de Vargas, sobretudo no primeiro governo ditatorial, chefiado pelo general Castelo Branco. Mas não foi o que ocorreu. Um outro general, Ernesto Geisel, com um plano grandioso e megalomaníaco, pretendeu autonomizar o país em relação aos sobressaltos dos mercados internacionais, construindo uma base complexa para o capitalismo nacional. Brasil, grande potência emergente, com direito a submarino nuclear e à bomba atômica. O Plano não foi todo realizado, mas se chegou perto disto.
E o Brasil cresceu. Sob a garantia do AI-5.
Ao contrário de outras ditaduras militares, como a da Argentina, o capitalismo aqui deu um salto para a frente. E criou monstros e princesas. Enquanto nos porões dos Doi-codis se executava a tortura como política de Estado, nos salões nobres das Universidades se deslanchava um ambicioso plano de construção de um sistema de pós-graduação inédito no país, inigualável no mal chamado terceiro mundo. Enquanto, em ritmo febril, aprofundavam-se as desigualdades, o país cobria-se de uma rede de comunicações que, na época, se comparava com as melhores do mundo. Nossos ditadores, que não toleravam ser chamados por este nome, alegando terem sido eleitos, buscavam apoio político num partido imenso, a ARENA, considerado por um de seus presidentes, o maior do Ocidente. A lista das lideranças arenistas, estabelecidas por trabalho acadêmico recente (Lucia Grinberg), evidencia como era querida, e por quanta gente, a nossa ditadura.
O mais fulgurante desenvolvimento no quadro da mais violenta desigualdade. Mas não se pense, como o falecido Darcy Ribeiro sempre pensou, para absolver a sociedade que ele amava, que o país se dividiu entre, de um lado, uma elite locupletada, ociosa, podre e culpada, e, de outro lado, um povo deserdado, vitimado, generoso e inocente. Entre a cúpula e a base desta pirâmide houve jeitos e maneiras de constituir um sem número de degraus intermediários onde muito mais do que migalhas vinham estimular o desejo de sucesso, o culto pelo conforto e o apego à ordem e, mais importante, a própria opção por estes valores. E mesmo entre os que estavam mais em baixo instilava-se a esperança, baseada na vertiginosa mobilidade social e geográfica, propiciada pelo modelo em curso, de que também seria possível, com abnegação ou/e sorte ou/e esperteza, chegar lá.
Em todo este processo, denso e complexo, o AI-5 velava.
Mas velava em nome de quem? Afinal, quem foram os responsáveis pelo AI-5?
Não se trata de relacionar os que o assinaram, embora eles também precisem ser lembrados, confrontados com sua obra, a dizer se reiteram sua oportunidade ou dela se arrependem, e por que razões. Mas isto é o menos importante na reflexão que estou tentando elaborar, porque não é o caso de caçar bodes expiatórios, embora certos bodes bem merecessem caça pelo tanto de sofrimento que causaram, cassando e caçando tantos, e de forma arbitrária, naqueles tempos de chumbo ( ou foram de ouro?) em que detinham o poder. Mas deixemos os bodes de lado. O importante, aqui, a meu ver, é compreender processos históricos, sociais.
Ora, para isto pode ser oportuna a comparação com a França ocupada pelos nazistas, entre 1940 e 1945 (às vezes, como se sabe, observando os outros, podemos nos ver de uma outra forma).
Durante anos, depois da libertação do país – pelos exércitos anglo-americanos – cultuou-se na França o heroísmo da resistência aos nazistas, liderada por De Gaulle – na Inglaterra – e pelos comunistas – nos subterrâneos da clandestinidade. Aquelas mulheres e aqueles homens tinham encarnado os valores eternos da liberdade, a honra da nação.
Foi preciso esperar algumas décadas para que se começasse a admitir o que todo mundo fingia não saber: para a grande maioria dos franceses, a ocupação nazista tinha sido perfeitamente indiferente, para não falar dos muitos que colaboraram ativamemente com o ocupante. Quanto à resistência, tinha sido obra de muito poucos, e foi crescendo, até o fim da guerra, muito lentamente, de sorte que, se os franceses fossem esperar pelos franceses para se libertarem dos alemães, estariam esperando até hoje, se me permitem este exercício contra-factual.
Para os franceses, foi – e é até hoje – doloroso conviver com esta incômoda recordação. Contudo, as pessoas mais críticas aprofundaram pesquisas e reflexões para compreender este verdadeiro trauma nacional, e os resultados têm aparecido em trabalhos acadêmicos, literários e filmográficos.
Voltemos, agora, ao nosso país tropical.
O que se quer dizer com esta digressão a respeito da França? Que os brasileiros foram responsáveis pelo AI-5? Dito assim, sem nuanças, seria repetir o absurdo formulado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso quando declarou, sem rir, que todos nós somos responsáveis pelo fato de que a reforma agrária ainda não se tornou realidade neste país.
Não, não se pode dizer que todos foram responsáveis pelo AI-5. Houve certamente contradições. Houve protestos, desde o início. Afinal, com o Ato, decantou-se a grande frente social e política, extremamente heterogêna, que fez vitorioso o movimento civil e militar que instaurou a ditadura. Com efeito, embora na retórica das autoridades, o Ato fosse apresentado como último recurso contra a subversão social e política, esta se encontrava, já naquela altura, bastante debilitada. O que a ditadura queria, e o conseguiu, era disciplinar seu próprio campo. O que não a impediu de concentrar força e poder para matar seus inimigos mortais, os partidos revolucionários. Assim, com o Ato Institucional, aos derrotados de 1964, somar-se-iam agora os descontentes de 1968.
Mais tarde, sobretudo depois de 1974, a resistência democrática fortaleceu-se, aparecendo denúncias corajosas, dentro e fora do Brasil, feitas por gente que lutou de forma incansável. A admiração vai sobretudo para quem ousava lutar dentro do país, sob o chumbo daquela exceção transformada em norma, que olhavam o medo olho no olho e iam em frente, e não raro caíam nas malhas dos sinistros aparelhos da repressão.
Não incluo entre estes os partidos revolucionários que desencadearam ações armadas contra a ditadura, embora mereçam igualmente admiração sua coragem e destemor. Na reconstrução de memória, é comum estes atores surgirem como uma espécie de braço armado da resistência democrática. Assim, e apesar deles mesmos, não teriam mais do que formulado um protesto armado. Esta versão pode ser interessante como forma de atrair a simpatia atual pelos que empunharam armas. Mas não me parece corresponder ao que eles de fato se propunham: um duro e longo enfrentamento armado, com caráter ofensivo (não resistiam, atacavam), visando estabelecer uma ditadura revolucionária (não tinham compromisso com a democracia). De resto, as ações armadas não foram de reação ao AI-5 pelo simples fato de que começaram antes dele ser assinado e continuariam mesmo sem ele.
Estamos falando dos que protestaram, dos que resistiram e dos que tentaram formular uma alternativa à ditadura.
Mas como esquecer os muitos para os quais a defesa da ordem legitimava todos os excessos? E o que dizer da legião dos indiferentes? A ditadura para eles sequer existia? Podiam até achar, às vezes, que aquela (des)ordem não era razoável, mas não se disporiam a levantar um dedo, ou a arriscar um anel, para combatê-la. E quanto às multidões de inocentes, culpados por não saberem rigorosamente nada do que estava acontecendo? Não foram eles que aplaudiram a instauração da ditadura e assistiram, contritos, à retirada em (boa) ordem dos militares do poder?
Não seria hora de pensar neles nesta rememoração do AI-5? Afinal, não foram eles os vitoriosos em 1968? Por que não amadurecer pesquisas, obras de ficção e filmes que nos aproximem destas maiorias nem tão silenciosas? Elas não terão a ver com a eleição de um certo presidente jovem e simpático, obrigado a abandonar o posto mais cedo do que o previsto? Com a audiência de certos programas de rádio e televisão que cultuam a lei do cão? Com a aprovação do massacre de Carandiru? Com as torturas nas prisões e delegacias que seguem como dantes? Com a queima do índio pataxó em Brasília? Com a violência atroz – e banalizada – que domina estes brasis?
Aí está uma linha de reflexão que a rememoração do AI-5 pode propiciar. Pensar nos vencedores. E em como ditadura & sociedade construíram uma nação moderna, mas bárbara, chamada Brasil. Não será mais fecundo do que demonizar o AI-5 em nome da democracia e seguir em frente fingindo que não temos nada a ver com os alemães, digo, com a ditadura?