" No dia primeiro de maio, logo pela manhã, dirigimo-nos à janela da prisão e gritamos bem alto: “Viva o 1° de Maio”

Por Luiz Gushiken
A Fundação Perseu Abramo solicita-me que investigue no baú de minha memória, que é péssima, acontecimentos sindicais do final da década de 70 e início da década de 80, dos quais participei como dirigente sindical bancário. Apenas um rememorar de eventos daquele importante período histórico, já que análises mais acuradas e documentações sobre o referido momento existem em abundância na literatura sindical.

O que segue, portanto, são apenas fragmentos, um cutucar de memória, acontecimentos que em roda de amigos fazemos questão de gostosamente relembrar, dando um verniz lúdico para eventos que foram gestados em meio às violências e tensões dos tempos da ditadura militar.

A primeira lembrança que me vem à mente é a agitação de toda sociedade brasileira na esteira do formidável impulso provocado pelos metalúrgicos do ABC, espraiando por todos os cantos do país o vírus da rebeldia e da luta. Evidentemente, os bancários não se fizeram esperar e partiram para o confronto com os que eram o mais odiado dos patrões: os banqueiros.

Naquele contagiante ambiente, procuramos organizar, na campanha salarial de 1978, de forma mais ou menos atabalhoada, conseqüência da inexperiência, a primeira grande greve dos bancários na década de 70. Ainda não tínhamos controle da máquina sindical, pois éramos oposição a uma diretoria que, por sua vez, fugia das greves como quem foge da peste. No primeiro confronto o nosso despreparo organizativo ficou visível.

No dia da greve, a sede do sindicato foi sacudida pela intensa movimentação dos grevistas. Lembro-me de grupos e mais grupos de centenas de bancários, afluindo ao vigésimo andar do sindicato para receber instruções do comando de greve, formado pela oposição à diretoria pelega, que covardemente se escondia no andar de baixo.

Nossa orientação, para perplexidade dos bancários, foi :“retornem ao local de trabalho e cruzem os braços lá dentro”. Mal sabíamos que, em se tratando de empresa bancária, permanecer em greve nos recintos da empresa era guerrear no terreno inimigo.

O que nos teria levado a cometer aquela imprudência organizativa com um movimento que tinha tudo para ser vitorioso?

O erro foi tentar reproduzir mecanicamente a célebre palavra de ordem da greve dos metalúrgicos do ABC “braços cruzados, máquinas paradas”. Mal sabíamos da enorme pressão a que os grevistas estariam se expondo no interior dos bancos. Não nos dávamos conta de que a estrutura interna dos bancos era diferente da das empresas metalúrgicas e que o perfil dos funcionários bancários era, por sua vez, diferente do dos metalúrgicos. Em bancos o corpo administrativo, com cargo de chefia, era muito grande quando comparado com o dos metalúrgicos, e isto inviabilizava o sucesso do empreendimento grevista no interior do próprio banco.

Decorreu desta experiência a lição de que nem sempre a espontaneidade das massas, sua coesão e vitalidade para a luta são suficientes para superar as deficiências organizativas e materiais e os obstáculos provindos de uma direção inadequada ou despreparada. Na década de 70 muitas categorias foram vitoriosas neste contexto. Mas outras, como a nossa, exigiam maior sofisticação em seus processos organizativos e políticos.

Aquela derrota foi um aprendizado decisivo e em nada abalou o ânimo da categoria bancária que, nos anos seguintes, encetou novas paralisações. Mas em todas as greves posteriores o espaço da guerra foram as ruas e as praças, de que é exemplo a grande greve de 1985, quando os banqueiros foram obrigados a se curvar frente a um movimento de caráter nacional.

Em estado de tensão a massa sempre é capaz de demonstrar muita criatividade. Para evitar o acesso dos bancários ao local de trabalho, já que a experiência demonstrava que o método dos “braços cruzados, máquinas paradas” não funcionava em nossa categoria, os piquetes foram acionados assumindo sua função clássica, com uma diferença: levavam o nome de “comissão de esclarecimento”. Por trás dessa singela identificação, organizavam-se centenas de “comissões de esclarecimentos” que pacificamente (nem sempre, é lógico) levantavam suas enormes faixas, postavam-na na entrada dos bancos impedindo qualquer acesso para o local de trabalho.

E a repressão policial e militar? Muitas bombas de gás lacrimogêneo foram lançadas contra trabalhadores, muitas costas arquearam com a violência dos cassetetes, mas a bem da verdade, a escancarada hostilidade da ditadura jamais conseguiu sustar o ímpeto dos trabalhadores que, ao contrário, em sua luta por melhores salários, também gritavam por liberdades democráticas.

E como as lideranças bancárias driblavam a repressão em suas reuniões conspiratórias? Certamente agíamos como as demais: clandestinamente. Mas nós, bancários de São Paulo, inúmeras vezes reuníamo-nos em um circo (sim em um circo!). Éramos centenas de lideranças discutindo os caminhos do movimento debaixo de uma enorme lona circense, em ambiente de absoluta clandestinidade, cercado de extremadas cautelas em termos de vigilância, e, invariavelmente, suspeitando da infiltração de agentes da repressão. A sensação era terrível! Mas como ninguém poderia comprovar a suspeita, as reuniões prosseguiam e as decisões eram tomadas. No dia seguinte aquelas preocupações se dissipavam tal era a energia e vibração que as massas liberavam.

É importante notar que naquele período o ânimo das massas no Brasil estava tão eletrizado e infundia tão grande confiança nas lideranças que os mecanismos de repressão não atemorizavam tanto os dirigentes. A avalanche grevista da década de 70 e início dos anos 80 foi de tal forma tempestuosa que, certamente, as confusões e desorganizações também estavam presentes nas hostes da repressão. Aliás, na verdade, foi este grandioso movimento de massas quem verdadeiramente solapou os alicerces da ditadura militar, fermentando as condições para a histórica campanha pelas Diretas Já, e, através dela, a derrocada do regime militar no Brasil.

Em abril de 1980, Lula e seus companheiros de diretoria sindical são presos, provocando na sociedade uma indignação pouco vista em nossa história. Campanhas de solidariedade a Lula e à sua categoria são organizadas em profusão, sendo, obviamente, vistas com maus olhos pela ditadura. Nós, bancários, pensamos em realizar algo que minimizasse a tensão do ambiente, e permitisse uma atividade pública de coleta de recursos em solidariedade à greve dos metalúrgicos. Organizamos então uma atividade inédita: no horário de almoço, na praça Antonio Prado (centro bancário de SP), o campeão paulista de xadrez da época, Herbert Carvalho e o vice-campeão brasileiro, Cícero Braga, fariam disputas simultâneas com bancários em dezenas de tabuleiros de xadrez dispostos na praça. Enquanto os bancários se divertiam com os campeões, com megafone na mão explicávamos a razão daquele evento, ao mesmo tempo em que recolhíamos dinheiro para auxiliar os metalúrgicos grevistas.

Parece que a ditadura não apreciava muito o entretenimento político, muito menos jogo de xadrez, pois rapidamente aquele evento se transformou em prisão de dirigentes sindicais e do ilustre campeão paulista daquele esporte. Durante uma semana pudemos conhecer o lúgubre DEOPS, lugar onde companheiros, em passado não muito distante, haviam sofrido as mais amargas torturas físicas e psicológicas na luta por um Brasil mais justo. No dia primeiro de maio, logo pela manhã, dirigimo-nos à janela da prisão e gritamos bem alto: “Viva o 1° de Maio”. De outras celas, a resposta veio rápida, fazendo ecoar pelas paredes o mesmo brado, aquele que é o símbolo maior dos trabalhadores. Sabíamos que estávamos em uníssono com milhões de pessoas que, nas ruas e nas praças, também faziam ressoar seu brado de luta. Evidentemente o DEOPS já não era mais o mesmo.

O governo federal, por meio do Ministério do Trabalho, por duas vezes praticou a intervenção no Sindicato dos Bancários de São Paulo, cassando o mandato dos seus dirigentes, e colocando na direção da entidade pessoas indicadas pelos banqueiros. Essas intervenções atrapalharam muito nosso trabalho, mas nunca foram capazes de impedir o nosso estreito relacionamento com a categoria. Sem o sindicato nas mãos, recolhíamos dinheiro junto aos bancários para confeccionar um jornal que servia de elo de ligação. Reuníamo-nos em locais emprestados por entidades amigas. Na verdade, a repressão só temperava nosso estado de espírito e fortalecia nossa vontade.

Ao longo da década de 70 e no período posterior, a categoria bancária foi protagonista importante no movimento sindical brasileiro. Ricas experiências foram vivenciadas nesse período, lideranças germinaram em todos os espaços onde havia bancários (basta ver o número de parlamentares, prefeitos, governadores de estado, sem contar com milhares de lideranças sindicais, todos de origem bancária, que proliferaram Brasil afora).

O que acima expus apenas tangencia essas experiências, é somente o rememorar de alguns fatos, inscritos nos grandiosos eventos da década de 70 e início dos anos 80. Se hoje os interpreto em tons lúdicos, nem por isso deve ser minimizadas a violência ditatorial e a tensão da época. As pessoas somente regozijam o sofrimento passado quando esse representa um sacrifício que valeu a pena.

Se pudesse sintetizar aquele período diria que, do ponto de vista sindical, ele representa a fase heróica do novo sindicalismo em confronto com dois obstáculos: a ditadura militar e os pelegos. O primeiro não mais existe e do segundo pouco se fala, demonstrando o seu desaparecimento enquanto característica predominante.

Mas a remoção daqueles obstáculos não significa facilidade para os dias atuais. A meu ver, o sindicalismo de hoje, às voltas com o fenômeno de intensa globalização, desemprego, flexibilização da mão de obra, e outras tantas, se depara com desafios de outra natureza, muito mais complexos.
 

* Luiz Gushiken, Presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo (1984-1986), presidente nacional do PT (1989-1990) e deputado federal (1987-1998).

`