Mouzar Benedito
Eu estudava Geografia na USP, onde entrei em 1967, e tinha completado 22 anos. Na noite de 13 de dezembro, estava com amigos no Centro de Vivência do Crusp (Conjunto Residencial da USP), onde morava, vendo TV, à espera de notícias que a gente sabia que não seriam boas. E vieram muito piores. Era a ditadura pra valer, explícita. Entendemos na hora que começaria uma fase de horror. Muitos queimavam ou enterravam livros "comprometedores". Meus três colegas de apartamento e eu decidimos sair esparramando esses livros por casas de gente sem envolvimento político, para pegar depois que a poeira baixasse. Nunca mais vimos esses livros. Apagamos da memória esses endereços.
Na mesma noite, de madrugada, a direita já se manifestou: um bando do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e de militares passou de carro pela avenida entre o Crusp e o rio Pinheiros dando tiros em nossa direção. Alguns tiros de fuzil atravessaram as paredes de tábua de uns poucos apartamentos. Aí fizemos barricada em volta do Conjunto, mas nada adiantou. No dia 17, uma força militar enorme, preparada para a guerra, cercou o Crusp, que junto como o prédio da Filosofia da Maria Antônia concentrava a contestação estudantil ao regime militar. Fomos presos. Eu fiquei quatro dias no presídio Tiradentes e algumas horas no Dops, onde fui interrogado e fichado, porque acharam material "subversivo" na cabeceira da minha cama: uma revista Paz e Terra com foto de Dom Hélder Câmara na capa. Quando saí, fui buscar minhas coisas no Crusp e vi que nossos apartamentos tinham sido saqueados pela polícia e pelo exército. Sobrou, de tudo o que eu tinha, uma malinha de livros ensebados, que não valiam nada pra serem vendidos nos sebos, e uma de roupas velhas. Aí fui preso mais uma vez, pelo exército. Mas tudo suave. A tortura que foi instituída a reboque do AI-5 chegou um pouquinho depois. "Tive sorte", posso concluir.
Na Secretaria dos Transportes da Prefeitura, onde trabalhava como técnico em contabilidade, fiquei com fama de terrorista, já que tinham tentado me visitar no Tiradentes e eu estava incomunicável. O que se seguiu foi um tempo (anos!) de enorme insegurança. A cada dia, tínhamos a notícia de algum amigo ou conhecido que tinha sido assassinado pela repressão, ou se exilou ou foi preso e estava sendo torturado. Para usar uma expressão atual, ficávamos sempre nos sentindo a "bola da vez", pois bastava alguém falar seu nome na tortura ou acharem seu endereço na caderneta de um preso para você se tornar um "perigoso terrorista". A tensão era permanente. O país ficou parecendo insuportável, mas ao mesmo tempo tinha uma coisa melhor que hoje: a esperança. Mesmo perseguidos e ameaçados, tínhamos a esperança de mudar o Brasil para melhor. Acreditávamos que derrotaríamos a ditadura e tudo mudaria…
Outra coisa que tínhamos certeza nos tempos de vigência do AI-5 era que do nosso lado, das vítimas e dos lutadores, estávamos os bons. Do outro estavam os maus. Fernando Henrique Cardoso e muitos outros professores da USP foram aposentados com base no AI-5. Ele se auto-exilou no Chile. Nós, estudantes, fizemos muitas manifestações a favor dele e dos demais aposentados pela ditadura que tinha como expoentes civis uma gente horrorosa, tipo ACM, Maluf, Sodré, Marco Maciel e Sarney. Nós arriscamos nossa pele defendendo, entre outros, FHC contra essa gente. Que ironia, hein?
*Jornalista e geógrafo, autor dos livros Memória Vagabunda, Pequena Enciclopédia Sanitária, Pobres, porém perversos e Santa Rita Velha Safada.