Marcelo Ridenti
Em 1969, eu tinha apenas 10 anos de idade. Portanto, fiz parte do que alguns chamaram de "geração AI-5", isto é, daqueles que chegaram à adolescência e juventude sob a vigência do Ato, entre 1968 e 1978. A fase ufanista do "Brasil Grande", do "milagre" econômico e seus efeitos, em que as janelas dos carros eram ornamentadas por colantes que diziam "Brasil, ame-o ou deixe-o", "Brasil, conte comigo". Época das aulas obrigatórias de Educação Moral e Cívica, em que a TV martelava as canções cujas letras não se esquecem jamais: "eu te amo, meu Brasil, eu te amo, meu coração é verde, amarelo, branco, azul-anil, eu te amo, meu Brasil, eu te amo, ninguém segura a juventude do Brasil"; "esse é um país que vai pra frente, uou, uou, uou, uou, uou"; e a famosa "moro, num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, mas que beleza" – voluntariamente ou não, até o então Jorge Ben entrou nessa. Felizmente para mim, também dava para ouvir uma ou outra canção de Chico Buarque que passava pela censura, além de ter um pai e alguns raros professores críticos do regime, que sussurravam seus protestos.
Com tanta propaganda dos donos do poder e empolgação de amplos setores sociais com o "milagre brasileiro", não eram muitos os que prestavam atenção no cerceamento às liberdades democráticas imposto pelo AI-5 e pela violência política que se disseminou. E aqui toco num ponto delicado: a ditadura teve respaldo ativo ou passivo de consideráveis setores socias, especialmente entre o empresariado e as classes médias, mas também entre populares – estes iludidos com as possibilidades de emprego e de "subir na vida" proporcionadas pelo "milagre". Hoje é cômodo para muitos jogar a culpa pelo AI-5 e outros desmandos em alguns poucos militares, mas eles não teriam ficado no poder 20 anos com base só na repressão, nem teriam visto triunfar sua proposta de "transição lenta, gradual e segura à democracia", isto é, de retorno a governos civis sem abalar as estruturas do poder político e econômico constituído.
Para voltar ao depoimento pessoal, dou o exemplo dos colegas da Faculdade de Direito da USP. Uma parte de nós saiu às ruas com outros estudantes, em 1977, reivindicando liberdades democráticas. Eram já os estertores da vigência do AI-5, embora evidentemente não se soubesse. Mas não se pense que o combate à ditadura era uma unanimidade no templo do Dirteito. Nas famosas arcadas, tínhamos que conviver com inúmeros adeptos de mestres como Gama e Silva, jurista e autor civil do documento chamado AI-5. Centenas de estudantes, fina flor de nossas elites – que hoje fingem nada ter tido a ver com o AI-5 –, adoravam agredir supostos "comunistas" e cantar nas assembléias estudantis: "um, dois, três, comuna no xadrez". Sim, profissionais liberais, empresários, donos de redes de TV e outros negócios que prosperaram sob o guarda-chuva da ditadura, enfim, um monte de gente que continua mandando no país até hoje tem as mãos sujas de sangue. E eles não hesitarão em sujá-las de novo, se sentirem seu poder ameaçado e se assim o permitirmos.
*Professor de Sociologia na Unicamp.