" Então, nós da Ford, participamos da greve pelos motivos gerais da categoria e também pelas nossas reivindicações de equiparação com as outras empresas."

Na greve de 80, eu ainda não estava na diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e nem tínhamos a comissão de fábrica na Ford. Naquela ocasião, eu fazia parte da chamada comissão de salário, posteriormente comissão de mobilização, que era formada por aproximadamente 400 companheiros, escolhidos em assembléias, nas mais diferentes fábricas.

Essa comissão se reunia constantemente com a diretoria para deliberar sobre os encaminhamentos relativos à greve, entre uma assembléia e outra. E dentro dessa comissão de salário ou de mobilização, prevendo-se a possibilidade de a diretoria do Sindicato ser presa e cassada, tirou-se um grupo de 16 companheiros, chamado grupo dos dezesseis, que teriam a incumbência de assumir o comando de greve. Então passei a fazer parte também desse grupo dos dezesseis. Foi minha primeira atuação na greve de 80.

Comecei a atuar na luta por melhores condições de trabalho e de salário de um modo muito especial. Naquela época, foi muito importante o papel do futebol, principalmente no meu caso, e no caso da Ford. Tínhamos um time de futebol lá dentro da ferramentaria. Eram vários times dentro da Ford: cada um de um setor e, de vez em quando, disputávamos um campeonato interno. Mas, além do campeonato interno, tínhamos ainda jogos com departamentos de outras empresas, grandes e menores.

Nessa época, houve um problema na ferramentaria: foram demitidos alguns companheiros. Mas como já tínhamos jogos marcados, continuamos a nos encontrar aos domingos por ocasião do jogo. Começamos a perceber que esses companheiros que saíam da Ford, principalmente os profissionais qualificados, arrumavam emprego imediatamente. Conversando com esses companheiros, que continuavam jogando conosco, verificamos que nós, que ficamos na Ford e tínhamos oito, dez ou doze anos de empresa, estávamos com o salário menor do que o deles. Alguns haviam ingressado há 15 dias apenas em outra empresa, na mesma profissão, na mesma função. Foi então que começamos a recolher o holerite de todas essas pessoas. Tapamos o nome do companheiro e tiramos cópia dos contra-cheques e, assim, fizemos um mostruário.

Fomos à gerência do departamento de recursos humanos da Ford e resolvemos pedir aumento, baseado no estudo que tínhamos feito nesses holerites. Foi uma mobilização espontânea. Mostramos aos diretores da Ford que os salários das outras empresas estavam mais altos, mas não contamos que tínhamos em mãos os holerites. Então eles nos disseram que iam verificar, mas que era muito difícil obter informação sobre os salários em outras empresas, pois elas negavam esse tipo de informação. Nesse momento, tiramos de uma pasta o material reunido e mostramos a eles que já tínhamos holerites de todas as empresas. Bastaria que confirmassem a veracidade daqueles documentos para verificar os salários dos ferramenteiros em outras empresas.

Depois dessa conversa, percorremos alguns setores da empresa e sugerimos a todos que fizessem o mesmo na funilaria, na estamparia, na montagem, na pintura. E o resultado foi igual: a Ford pagava menos em todos os setores. Foi a partir daí que muitos funcionários de outros setores começaram também a montar comissões, fazer como nós e pedir aumento à empresa. Ainda não tínhamos recebido a resposta da empresa quando começou a greve.

Então, nós da Ford, participamos da greve pelos motivos gerais da categoria e também pelas nossas reivindicações de equiparação com as outras empresas.

Depois da greve, além dos resultados obtidos para o conjunto da categoria, conseguimos também o reajuste dentro da Ford. Fomos reajustados e equiparados com as outras empresas em todos os setores da fábrica. Isso foi um fato muito marcante nesse momento.

Como eu disse, o início da nossa luta veio do futebol. Aliás, se não fosse a dispensa de alguns companheiros que continuamos a encontrar mesmo depois de demitidos, possivelmente iríamos demorar muito mais tempo para perceber que a Ford pagava menos do que as outras empresas montadoras. E foi o futebol que nos trouxe essa possibilidade.

Fui me sindicalizar com trinta anos de idade. Em 1978, havia no sindicato um curso de madureza ginasial, no qual os sócios pagavam apenas a metade da mensalidade. Foi para pagar metade do valor do curso de madureza que resolvi me sindicalizar. Nessa época, além do segundo andar, onde estavam as escolas, comecei a freqüentar o primeiro andar, onde ficavam as salas dos diretores. Foi aí que comecei a entender um pouco mais sobre o papel do sindicato. Embora participasse das brigas dentro da fábrica e tivesse uma certa liderança, não tinha vinculação alguma com o sindicato.

Num determinado dia, ainda em 1978, o DIEESE descobriu um roubo praticado pelo Governo, nos anos do milagre brasileiro, subtraindo um valor dos índices de inflação, da ordem de 34,1%, que foram confiscados dos nossos salários. Aí a diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo foi para as portas das fábricas e convocou toda a categoria para ir à assembléia para discutir esse roubo. Esse era o mote que estava faltando para levar a categoria à luta, pois até então não se tinha isso. A diretoria convocou toda a imprensa, que começou a chegar para a assembléia, sem que chegasse nenhum peão das fábricas: a peãozada não havia atendido ao chamado do sindicato. Então a diretoria do sindicato foi às salas de aula e pediu que os alunos fossem para o terceiro andar, pelo menos para serem fotografados pela imprensa que estava chegando para a assembléia, para mostrar que a categoria tinha atendido à convocação. Aí é que foi a minha desgraça porque nós não fomos apenas para sermos fotografados, nós acabamos participando da assembléia e assistindo à fala do Lula. A partir disso ingressei na luta sindical e não tive mais saída: gostei da coisa e não parei mais.

Antes de tudo isso, até meus 30 anos, eu lia Gazeta Esportiva e Tio Patinhas. Não me considerava um alienado, sempre exigi meus direitos, mas brigava de forma desvinculada, apesar de sempre ter sido uma liderança dentro da fábrica. Fazíamos uma luta por melhoria de salário de um ou de outro companheiro, lutávamos juntos ali na fábrica. Mas não tínhamos nenhuma vinculação da briga do dia-a-dia com o mundo externo, com a questão maior que era a política. Não havia um entendimento de que a nossa situação não iria se resolver ali no chão da ferramentaria da fábrica.

Houve uma enorme mudança na minha vida, que antes era corriqueira: saía do trabalho para casa e vice-versa. Vivia sempre junto da família, com minha mulher e filhas. Quando comecei minha militância elas se assustaram muito com essa mudança, tivemos momentos muito difíceis, principalmente durante as greves. Eu tinha uma responsabilidade grande com o movimento, até que fui ser presidente do sindicato. Minha família ficou com muito medo e chegou até a sugerir que eu não aceitasse. Mas insisti que se eu não pudesse participar da luta sindical eu não iria ser uma pessoa completa, seria um frustrado, porque nesse momento eu já tinha me engajado demais.

O movimento sindical passou por várias fases. O Lula viveu uma fase no sindicato que era a da briga para que os empresários reconhecessem o sindicato. Essa foi a fase que considero mais dura porque a prática dos empresários era discutir apenas com as federações. E os trabalhadores aceitavam. Quando entrei já tínhamos furado esse bloqueio. O Lula já tinha tirado o sindicato das mãos da federação. Até então, nós não fazíamos nos representar em negociações, eram as federações que negociavam pelos sindicatos. O Lula rompeu com isso e os sindicatos passaram a existir.

Foi aí que entrei na diretoria e começamos a solidificar essa existência. Iniciamos o processo de implantação das primeiras comissões de fábrica. Foi um trabalho muito difícil, já que estávamos mudando a cultura dentro das empresas, seja com seus donos ou com as gerências que muitas vezes se comportavam como se a fábrica fosse deles. Mudamos toda a cultura fazendo com que os empresários passassem a negociar no dia-a-dia em relação a todas as questões. Portanto não era mais aquela negociação às vésperas da data-base. Começou-se a negociar constantemente, éramos chamados, ou, às vezes, provocávamos a negociação por qualquer motivo: seja relativo a salário, condições de trabalho ou de higiene dentro das empresas.

Então, a minha fase no sindicato, coincidentemente, foi a fase de negociar e de organizar os trabalhadores por local de trabalho. E muitos conflitos eram evitados em função dessas negociações. E as comissões de fábricas começaram a fazer quase 80% das tarefas dos dirigentes sindicais. As próprias comissões resolviam internamente os problemas que existiam nas fábricas. Isso ainda acontece até hoje.

Sempre nos posicionamos contra o fato de que nossos conflitos fossem julgados por quem quer que seja, inclusive a justiça do trabalho. Invariavelmente, os julgamentos consideravam nossas greves ilegais e pediam o retorno dos trabalhadores. Mas entendíamos que a greve era justa e permanecíamos em greve, ignorando a decisão do tribunal. Ficávamos revoltados também pelo fato de que o parlamento legislar sobre detalhes da relação trabalhista. Mas eu não aceitava essa competência do parlamento. Até hoje não vejo essa competência do parlamento para determinar o dia-a-dia entre o capital e o trabalho. É, por isso, que luto cada vez mais para que trabalhadores e empresários criem mecanismos de negociação e tenham que se entender sem que haja uma interferência externa.

É importante fazer um balanço político dessa greve de 1980. Acredito que essa greve foi uma experiência única nas nossas vidas. Aconteceu em São Bernardo, mas, decididamente não foi uma greve de São Bernardo. O Brasil esteve nessa greve. Chorávamos de tristeza e de alegria também. Montamos um fundo de greve, o sindicato estava sob intervenção e o estádio em que nos reuníamos também estava sob intervenção. Então fomos acolhidos pela igreja, mais precisamente por Dom Cláudio Humes, e, no fundo da igreja, numa quadra, montamos o fundo de greve e começamos a receber ajuda do Brasil inteiro e até de outros países. A ajuda vinha de todas as partes: donas de casa, sindicatos, associações de moradores, estudantes e chegamos a receber ajuda até de uma associação de pescadores do norte ou nordeste que não tinham condições, mas que nos mandavam alguma coisa. Quando as equipes de trabalhadores iam aos bairros, eram recebidos por todo mundo num clima de muita solidariedade. Acredito que a greve de 80 foi a maior lição de solidariedade que vivemos.

Decididamente não foi uma greve nossa, de São Bernardo. Foi uma greve do Brasil. O significado desse movimento foi que, a partir daí, houve uma retomada na coragem do trabalhador brasileiro. Começaram a pipocar por todo país greves e movimentos de trabalhadores. E o mais importante é que isto nos alertou para a necessidade da criação de uma organização única de todos os trabalhadores. Foi então que começou a ser discutida a criação de uma central, que originariamente era uma central única de trabalhadores, mas, que, lamentavelmente, depois, teve divisões.

Mas foi aí que surgiu a necessidade dessa unificação dos trabalhadores.

Também nessa época, surgiu a idéia da criação de um partido. Porque? Porque assim como quando eu trabalhava na Ford e comecei a conhecer sindicato e perceber que a situação não se resolveria apenas em uma luta na fábrica, dentro da ferramentaria da Ford, esses movimentos ocorridos no ABC nos remeteram à idéia de que a nossa luta não era uma luta apenas sindical. Começamos a perceber que a luta por salário ou por melhores condições de trabalho também era política. Percebemos que era necessário fazer uma reforma agrária para evitar uma migração constante do campo para a cidade e essa também era uma luta política. E, portanto, já não podíamos mais pedir a outros para nos representarem no parlamento. Era preciso que começássemos a nos representar, porque também entendíamos de política. Fazíamos política sem saber que estávamos fazendo política.
 

* Jair Meneguelli, Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (1981-1984), presidente da CUT Nacional (1984-1994) e deputado federal PT/SP (1995- )

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