Formatura…
Recolhi as subversões abagunçadas nas estantes e nos armários. Papelada do Grêmio Livre do CAp, livros de esquerda. Fui enfiando tudo numa sacola bege, velhusca.
Puxei o zíper emperrado e levantei um pouco pra sentir o peso.
Depois sentei novamente na cadeira do meu quarto, a cuca buscando uma explicação.
Era tudo irreal.
– A orientação é todo mundo se picar de casa. Pode ser pra hoje a noite Indonésia! A "Operação Jacarta"…
Na saída da formatura, o grupo dirigente do grêmio se reunira para discutir a situação de segurança. O golpe dentro do golpe, há meses esperado, estava na televisão. Nas ruas.
Foi no dia 13 de dezembro de 1968 a formatura-livre dos alunos de 4o ginasial e 4o colegial, promovida pelo grêmio. Como no ano anterior, foi realizada no Colégio São Vicente de Paulo, sob a asa protetora dos padres progressistas.
Padre Dario nos cedeu o salão novamente e com boa cobertura de imprensa marcamos a cerimônia para o dia do azar, embora não sexta-feira.
A formatura ia transcorrendo sem maiores confas. Eu presidia a mesa, representando o grêmio-livre. Falaram os oradores de turma. A platéia de alunos e pais, uns duzentos no máximo, escutavam atentos e não sonegavam palmas. Novamente tínhamos Che Guevara de paraninfo.
Apenas este ano, ao invés do Álvaro, era eu que me atrapalhava com o microfone.
A grande estrela da noite era o Franklin [Martins], agora presidente do DCE, que acabava de sair da prisão, por habeas-corpus do STF, depois de ter dançado, meses antes, no malfadado congresso da UNE, em lbiúna.
Compridão, a barba por fazer, as pernas longuíssimas cruzadas debaixo da mesa, fez um discurso eletrizante. A situação política era braba, sim senhores,
– Podem arrancar uma flor, muitas flores, mas não deterão a chegada da primavera.
O Franclão tava inspirado.
Eu ouvia atento, quando um companheiro da segurança me veio cochichar ao ouvido:
– Negão… Pessoal escutando rádio diz que tá tendo golpe…
Mandei ele saber de detalhes. Voltou dez minutos mais tarde. Dera no rádio a decretação do Ato lnstitucional nº 5.
Era o golpe do golpe, no golpe. Pela terceira vez faziam tábula rasa da legalidade por eles próprios imposta para alargar o alcance do arbítrio.
Não era surpresa. Nas últimas semanas vínhamos fazendo muitas reuniões para discutir o iminente endurecimento do regime. Vários alarmes falsos. Mas também alguns informes fidedignos, provenientes da área militar com a qual alguns tinham laços familiares.
Uma coisa era certa, Costa e Silva ia abrir as pernas pra "linha dura" que galgava o poder. Havia versões de que este xeque ao rei, no Planalto, coincidiria com uma "noite indonésia", um massacre de lideranças estudantis, jornalistas e oposicionistas de variada espécie.
Não era uma hipótese a descartar. Sabíamos, de fonte segura, que durante boa parte do segundo semestre de 68, um grupo do PARASAR planejava seqüestrar o Vladimir [Palmeira] e outras lideranças estudantis, e jogar no mar, de helicóptero. Me surpreendia. Como era possível acontecer, na FAB? Pensava no meu tio aviador, que morrera sem ver essas coisas. Mas a fonte também dava outras dicas: havia oficiais que se tinham rebelado contra esse uso macabro de uma tropa de elite voltada a tarefas humanitárias.
Havia a outra hipótese que indicava apenas muitas prisões nas lideranças estudantis e invasão dos últimos bastiões do ME: a PUC no Rio e o CRUSP em São Paulo.
Fosse como fosse, a orientação era "limpar" tudo e sair de casa.
Concluí a formatura com um discurso confuso e embananado, apelando pra moral: faz escuro mas eu canto, ousar lutar, ousar vencer, fé no povo, pé na tábua. Eles tinham dado o golpe final, se desmascarado definitivamente. A luta continuava e o povo era invencível. A história na mão.
– Como disse o companheiro: podem arrancar muitas flores, não podam a primavera!