Fernanda Maria Ribeiro Coelho
Remexer nas "gavetinhas" da memória para buscar um fato preciso faz com que, por vezes, apareçam ao mesmo tempo, e se mesclando, acontecimentos bem anteriores e outros que ocorreram mais adiante.
Toda vez que ouço falar em 1968 e no AI-5, imediatamente surgem emoções e imagens que vão de um pólo a outro.
Em 1968 tudo era possível. Tínhamos certeza de que tudo seria possível.
Imediatamente lembro e visualizo os famosos festivais de música popular brasileira e o Maracanãzinho lotado de jovens, homens, mulheres, idosos e até crianças; de teatros e cinemas lotados e grandes debates; cinemas de arte; religiosos atuando publicamente; trabalhadores/sindicatos se mobilizando na luta anti-arrocho; restaurante Calabouço: Edson Luís morto – com enterro acompanhado a pé, do centro da cidade até Botafogo, por milhares de pessoas; passeata dos cem mil com uma comissão de representantes da sociedade civil (incluindo a União Brasileira de Mães) para o encontro com o presidente Costa e Silva; gente na rua, nas escolas, nas praças, nas fábricas, nos cinemas, teatros, debates, idéias se renovando; congresso de estudantes da UNE (União Nacional dos Estudantes), reunindo quase mil de suas lideranças. Além do que o mundo nos dava exemplos emocionantes como no caso do Vietnã e levantávamos bandeiras contra o imperialismo norte-americano e contra o Fundo Monetário Internacional (FMI).
1968, com sua efervescência política, no Brasil e em diversas partes do mundo, me remete quase sempre aos anos de 1963 e início de 1964: conheci e passei a vivenciar todos os efeitos da ditadura militar instalada com o golpe de 31 de março/1º de abril de 1964, quando cursava o segundo ano de Ciências Sociais da Faculdade Nacional de Filosofia (a famosa FNFi), da Universidade do Brasil (hoje UFRJ) e já estava engajada nas atividades diárias do movimento estudantil, inserido no intenso movimento social pelas reformas de base que ocorria durante o governo João Goulart. Havia um intenso clima de mobilização pelo país inteiro. Havia uma efervescência política e dela participávamos!
13 de dezembro de 1968: decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5, como ficou conhecido) que trouxe a dominação ideológica mais elaborada e a instalação e institucionalização do terrorismo de Estado, além dos efeitos da força ostensiva, que já conhecêramos e vivenciáramos com os Atos Institucionais anteriores ( AI-1, AI-2, AI-3 e AI-4) – tanques nas ruas, homens armados, cavalaria e balas contra a população e suas manifestações; demissões, prisões, torturas, cassações, censura e os primeiros assassinatos políticos (27 é o número fornecido pelo Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964).
O medo, o terror estava instaurado!
Evidentemente esses efeitos passaram a ser sentidos e vivenciados por cada um de nós diariamente na sua vida pessoal e afetiva, profissional e na militância política.
O termo "subversivo" – e principalmente "terrorista" – passa a ser usado diariamente na imprensa escrita, falada, televisionada para desqualificar qualquer opinião, pensamento, idéia ou atitude de alguém que não comungasse com as regras impostas. Da mesma forma, nos colégios, escolas e faculdades; nos locais de trabalho tanto na iniciativa privada quanto na área pública, no campo e na cidade, esse controle passa a ser uma regra de convivência diária entre os que pensavam e queriam ter opiniões próprias e os que aceitaram e foram coniventes com a imposição do pensamento único da Doutrina de Segurança Nacional, cujo inimigo interno era o alvo principal.
Se você era jovem, de barba ("barbudo") ou de cabelos longos ("cabeludo") ou era uma jovem mulher com roupas coloridas, com aspecto "hippie", se estava com um livro debaixo do braço, imediatamente era parado na rua por um "à paisana" para se identificar, para ver se não portava algum livro "subversivo", e quase sempre era levado para algum órgão policial para "averiguações".
Em outubro de 1968, em Ibiúna (SP), os órgãos de repressão (inclusive o Exército) invadem um sítio e prendem cerca de mil líderes estudantis, representantes de todos os estados do país, que participavam de um Congresso (que se pretendia clandestino) da UNE e todos são imediatamente fotografados, fichados e encaminhados para serem processados com base na Lei de Segurança Nacional, que vigorava até então.
E muitas dessas fotos foram distribuídas, juntamente com a de tantos outros militantes que não eram estudantes, pelo Brasil todo. Nos órgãos públicos dos estados e municípios, aeroportos, rodoviárias, estações de trem e alguns locais públicos eram afixados os famosos cartazes, com algumas daquelas fotos, onde se lia: "Procura-se: terrorista", ou "Eles são subversivos. Ajude-nos a encontrá-los", ou "Denuncie qualquer atitude suspeita".
Meu então companheiro, Raimundo Teixeira Mendes, estudante de Direito da Faculdade Cândido Mendes, havia participado do Congresso de Ibiúna, mas tinha saído juntamente com jornalistas da VEJA e de mais alguns órgãos da imprensa que lá estavam cobrindo o Congresso, quando o Exército liberou todos aqueles que apresentaram suas credenciais ou comprovantes de trabalho em algum veículo de comunicação. Dessa maneira, ele e mais alguns estudantes não foram presos nem processados naquele momento. E, ao retornarem aos seus estados, se incorporam na luta pela libertação de todos os presos. Ele viria a ser preso em 5 de janeiro de 1970, logo após casarmos em 19 de dezembro de 1969, sendo processado já pela nova Lei de Segurança Nacional (que instituíra inclusive a pena de morte no país). Permanece por dois anos e meio preso, inicialmente na PE da rua Barão de Mesquita e, posteriormente, no DOPS, Vila Militar e Ilha Grande. Período em que aglutinamos os familiares de presos políticos.
Em 13 de dezembro de 1968 eu já trabalhava como socióloga numa autarquia federal, responsável pela reforma agrária no país – o IBRA –, juntamente com tantos outros técnicos e profissionais (alguns recém saídos das universidades) e tínhamos a profunda convicção de que estávamos contribuindo para o processo de modificação da situação no campo com a realização da reforma agrária. Mas, antes mesmo da decretação do AI-5, em novembro de 1968, o nosso companheiro engenheiro agrônomo, José Roberto Monteiro, foi preso, no mesmo período que João Lucas Alves, morto nas dependências de um órgão de repressão.
Após o AI-5 alguns outros companheiros mais visados, já perseguidos, saíram do IBRA e outros entraram na clandestinidade, como foram os casos de Cláudio Torres, Celso Bredariol e Francisco Castro Alves. Com algumas prisões posteriores, de Alceu Fernando Azevedo, Priscila Bredariol, Richard Dulley, Geraldo Leite e sua companheira Rosalina Santacruz, Márcia Leporace e Maria de Lourdes Siqueira, o clima no trabalho vai ficando cada vez mais tenso, principalmente quando os órgãos públicos federais passam a criar as famosas assessorias de segurança e informações, as ASIs, com a função de levantar a vida de cada funcionário. Aumentam as prisões, começam as demissões e sou demitida em 1971 com mais três companheiros no mesmo dia (Alceu Fernando Azevedo, preso em dezembro de 1968; Priscila Bredariol, presa em 1969 e Delton Braga, que havia sido preso em 1964).
Em 1968, eu estava também engajada na luta sindical contra o arrocho salarial e participava do movimento dos professores, profissionais liberais e intelectuais, junto com a União Brasileira de Mães, no conjunto de atividades das lutas que se aprofundavam desde 1966 por mais verbas e mais vagas para escolas e universidades, pela reformulação dos currículos e por maior participação nos orgãos de decisão (participação paritária: 50% professores e 50% alunos), e também pela libertação dos presos políticos.
Com o AI-5 até a União Brasileira de Mães é colocada na ilegalidade e começa uma nova fase na nossa forma de enfrentamento diário, com as novas restrições impostas
*Tem 55 anos, é carioca e socióloga. Participou da criação da Associação de Cientistas Sociais do Rio de Janeiro, do Comitê Brasileiro pela Anistia/RJ, do Partido dos Trabalhadores, do Comitê Brasileiro de Solidariedade aos Povos da América Latina/SP, da Associação Profissional dos Sociólogos de São Paulo, do Sindicato dos Sociólogos no Estado de São Paulo e do Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Federal no Estado de São Paulo.