ÚLTIMO ENCONTRO

 

14 de dezembro de 1968 – 7:15 da manhã. O ônibus interestadual saíra há cerca de 10 minutos de uma parada nos arredores de Recife. Não haveria outro tão cedo. Arrisquei pegar um táxi para tentar alcançá-lo antes da próxima cidade. Dois problemas: só tinha o dinheiro contado para pagar a passagem do ônibus até Salvador – e estava fugindo do AI-5, baixado na véspera.

Eu chegara em Pernambuco há poucos dias, juntamente com Arantes (José Roberto Arantes de Almeida, paulista de Pirajuí, vice-presidente da UNE), para cumprir tarefas de reorganização do movimento estudantil. Em outubro, o 30º Congresso da entidade, realizado em Ibiúna, São Paulo, fora descoberto pela repressão e a disputa entre duas chapas pela sua direção não ficou resolvida. Uma delas – que eu integrava como um dos vice-presidentes – era encabeçada por José Dirceu e apoiada por Arantes. Depois da queda do encontro, das oitocentas e tantas prisões e da libertação da maioria das lideranças – levadas pela polícia de volta aos seus estados de origem –, conseguimos realizar uma reunião nacional clandestina que elegeu uma Comissão de Reorganização da UNE. Era como membro dela que me encontrava em Recife.

O clima de repressão era generalizado e nós estávamos semiclandestinos (creio que o Arantes já estava totalmente na clandestinidade, utilizando identidade falsa). Por segurança, tínhamos viajado de Salvador separadamente. A intenção era seguir de Recife para Fortaleza. Lembro-me que conversamos durante aqueles dias sobre o risco de ocorrer "um golpe dentro do golpe" e que não seria nada bom estarmos em Pernambuco, cuja repressão política era historicamente das mais violentas e cruéis. Chegamos a combinar que, se ocorresse alguma coisa, o melhor seria alguém levá-lo de carro para o Ceará, enquanto eu tentaria voltar para Salvador, onde poderia me esconder com mais facilidade (mesmo sendo na época uma das lideranças estudantis conhecidas da Bahia).

A última vez em que estive com Arantes foi no dia do Ato 5. Somente voltei a "conviver" com ele recentemente, durante os dois últimos anos, quando escrevi com Nilmário Miranda um livro que traz os trabalhos e resultados da Comissão Especial do Ministério da Justiça sobre os Mortos e Desaparecidos Políticos durante a Ditadura Militar (Nilmário é deputado federal pelo PT/MG e representa a Câmara nesta Comissão). Muitos companheiros daquele tempo foram assassinados pela repressão nos anos seguintes. Arantes foi morto no dia 5 de novembro de 1971, juntamente com Aylton Morttati, em São Paulo. No resgate da sua memória e da verdade sobre as circunstâncias da sua morte, como em muitos outros casos, os trabalhos da Comissão trouxeram importantes revelações para a história do nosso país.

O táxi alcançou o ônibus pouco antes da próxima cidade. A essa altura já inventara uma justificativa sentimental sobre aquela viagem para ganhar a simpatia do motorista. Forneci-lhe então um endereço frio em Recife e um bilhete para uma suposta parente que lhe pagaria a corrida – e para quem ele deveria devolver, sem falta, o relógio de estimação (segundo o relato, presente do meu pai) que eu estava lhe dando apenas em garantia.

*Jornalista, editor de livros e revistas, ex-dirigente da Polop (Política Operária) e do POC (Partido Operário Comunista), preso político de 1973 a 1975, e vice-coordenador do Instituto Lidas, ONG dedicada à defesa dos Direitos Humanos e sociais.

 

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