A INVASÃO DO AI-5

 

No final da tarde de 13 de dezembro de 1968, uma sexta-feira, liguei para o Correio da Manhã, no qual era repórter especial, redator e articulista desde 1963, e publicava, à época, sobre o pseudônimo Marcoantonio, uma coluna diária sobre diplomacia e política externa. Nada havia de noticiável na minha área, o chanceler Magalhães Pinto sequer se encontrava no Itamarati. Como os demais membros do Ministério, ele fora convocado para a reunião de que sairia a reação do Governo Costa e Silva ante a decisão do Congresso Nacional de negar autorização para que o deputado Márcio Moreira Alves, colega de redação, fosse punido por discurso que os militares consideraram injurioso às Forças Armadas.

Como eu já tivera direitos políticos suspensos por 10 anos em 1966, pelo marechal-presidente Castelo Branco, e ainda respondia a dois processos do tempo em que dirigira a Folha da Semana, semanário legal do Partido Comunista Brasileiro, o diretor de redação, o falecido Osvaldo Peralva, veio pessoalmente, ao telefone, para me sugerir que esquecesse a coluna, a política externa e, se possível – pelo menos, naquela conturbada sexta-feira – , o próprio jornal. Dispensou-me da obrigação de comparecimento. Mas eu era jovem – embora não amasse os Beatles nem os Rollings Stones – e arrebatado, confundia prudência com covardia e jamais poderia me imaginar fora da redação num momento como aquele. Ante a minha insistência, o Peralva, que acumulara ampla experiência com a repressão como dirigente do PCB, foi profético: "Bem, se quiser, venha, mas não garanto que vá conseguir sair daqui."

Umas três ou quatro horas depois, quando o locutor Alberto Curi concluía a leitura, em cadeia nacional, do Ato Institucional nº 5, começou a invasão armada do Correio da Manhã, que, apesar de todos os avisos e ameaças, se mantinha desde a edição do AI-1, em 9 de abril de 1964, numa corajosa linha de oposição à ditadura militar. A operação de guerra (que incluía até metralhadoras), sob o comando de um suposto inspetor do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), contra jornalistas desarmados evidenciava o quanto as nossas críticas haviam tocado fundo nos nervos do regime: depois que um disparo de 38 atingiu o teto do saguão de entrada, o calmo e pacífico Peralva, com os pulsos algemados às costas, foi jogado e levado na caçapa de um camburão.

Na redação, no terceiro andar, fomos prevenidos – Edmundo Moniz, Franklin de Oliveira e eu – de que estavam à nossa procura. E, sem delongas, conduzidos, por colegas, pela janela da sala que servia de arquivo e biblioteca, a uma espécie marquise, donde passamos, com o auxílio de tábuas, para um prédio que dava de frente para a paralela rua do Lavradio, quase ao lado da Tribuna de Imprensa. Dali, cercados de atenções num sala-e-quarto que um alfaiate dividia com uma costureira e algumas crianças, assistimos, pelos rasgos das cortinas, ao crescente predomínio do verde-oliva na oficina do jornal.

O também já falecido Edmundo passou parte da noite empenhado em se metamorfasear em operário com um macacão que lhe fizera chegar a prima e cunhada Niomar Moniz Sodré Bittencourt, dona do diário. Mas, sem querer renunciar às vestes burguesas, tentou conservá-las – inclusive o paletó e o colete – sob o macacão, o que o levou a ser reprovado nas primeiras vezes em que se submeteu ao veredicto meu e do Franklin. Só o aceitamos proletário, ainda que com ressalvas, já alta madrugada, quando se desfizera também do relógio e dos óculos com aros de ouro. E ele pôde, enfim, partir, com um grupo de companheiros da oficina, para uma viagem que o levaria a Paris, via Montevidéu.

Franklin e eu só saíamos na tarde do dia seguinte. Para outras viagens. A minha – depois de uma volta à redação do Correio da Manhã, onde seria preso em abril de 1970 – terminou na Alemanha.

*Escritor e jornalista.