Contado assim à distância, pode parecer que Vlado fizesse isso por impertinência ou arrogância, como afirmação de poder – uma prática tão comum em quem exerce esse tipo de função. Sinceramente, não.

Um mártir da abertura

Vlado na verdade escrevia pouco – do que ele gostava mesmo era de fazer escrever. E como fazia isso bem!

Não me lembro de um editor mais rigoroso, mais exigente com a qualidade do que ele. Vlado ria primeiro com os olhos. Quando fazia isso e sobretudo quando começava a coçar a careca – uma careca que todo mundo achava parecida com a minha – já se sabia que vinha reclamação.

Irritado quando ele me obrigava a mexer e remexer muitas vezes uma matéria, eu o xingava de “o cobrador”. Ele chegou a mandar Otto Maria Carpeaux reescrever duas vezes um artigo. Carpeaux, grande intelectual e ensaísta que trabalhava conosco na Visão, não tinha propriamente o domínio técnico da reportagem, nem o domínio da paciência, e como Vlado não abria mão de suas cobranças, pode-se imaginar a tempestade que houve.

Contado assim à distância, pode parecer que Vlado fizesse isso por impertinência ou arrogância, como afirmação de poder – uma prática tão comum em quem exerce esse tipo de função. Sinceramente, não. Nunca cheguei a discutir o que vou dizer com Fernando Jordão, grande profissional e seu maior amigo, mas acho que Vlado era capaz de mandar reescrever uma matéria duas, três vezes, sem qualquer constrangimento, na maior cara de pau, porque era um perfeccionista quase doente. Para ele, não transigir com o erro, não fazer concessão à preguiça, não conciliar com a imperfeição, era a coisa mais natural do mundo. Não lhe passava pela cabeça que alguém não pudesse compartilhar essa tranqüila convicção.

Trabalhei sob suas ordens durante uns dois anos na revista Visão. Ele era editor de Cultura em São Paulo e eu chefiava a redação da sucursal-Rio, cujo diretor Jorge Leão Teixeira era quem mais fazia piadas com a obsessão perfeccionista do Vlado. Como então a produção carioca comandava o movimento cultural do país, eu era quase “exclusivo” da editoria de Cultura, o seu principal fornecer de material. Eu brincava dizendo: “sou full time do Vlado”.

Durante o tempo em que trabalhamos juntos, produzimos algumas matérias de que me orgulho até hoje, e uma bela amizade – que incluía e inclui a doce e serena Clarice. Pelo menos de quinze em quinze dias, eu ia a São Paulo e em geral dormia na sala da casa deles na Oscar Freire, lá nos fundos, com aquele portão com desenhos infantis que anunciava o astral do lar dos Herzog.

Dormia lá para a gente ficar até de madrugada conversando sobre pautas, matéria, cultura. Raramente falávamos de política. Não é que o assunto não nos interessasse, mas acho que tudo nas nossas vidas passava antes pela cultura. Por isso, a morte de Vlado me pareceu mais estúpida. Ele foi morto pelo que não fazia. Vlado não era um político, um militante, não usava a profissão para fazer contrabando ideológico, uma tentação daqueles tempos em que, por não se respirar, procurava-se em qualquer fresta o ar da liberdade.

Ao contrário – e essa era a mais admirável de suas virtudes profissionais – Vlado não instrumentalizava o jornalismo, não fazia dele um pretexto político; ele acreditava na informação como força transformadora. A gente vivia repetindo aquela frase que é atribuída a Lênin, se não me engano: “A verdade é revolucionária”.

Acho que o projeto mais importante do Vlado – só estou me referindo ao jornalismo escrito – foi a parte cultural da edição especial de Visão sobre os dez anos do golpe militar, em março de 1974, uma edição que por várias razões se tornou histórica.

Quem bancou o número com uma coragem rara naqueles tempos foi o dono da revista, Saïd Farhat. Quem o idealizou, planejou e editou com igual competência foi Luiz Garcia, que chefiava a redação. Muita gente mais esteve envolvida no projeto e eu mesmo escrevi boa parte das matérias.

Mas se credito a Vlado a responsabilidade maior pela importância do número, é porque o projeto ficou famoso pela parte cultural, e o grande animador desta, seu entusiasta comandante foi de fato Vlado. E como ele me fez trabalhar!

O conteúdo da edição trazia como revelação um pouco de luz no fim do túnel. Depois de anos de funda depressão, em que a classe artística estivera mergulhada no desespero ou no desencanto, aqueles artigos e entrevistas carregavam algumas vezes as marcas do lamento, o som de um “grito parado no ar”, para usar o título de uma peça de Guarnieri da época. Mas o que havia de novo não era isso, não era o tom de reclamação; era justamente algo que já anunciava o fim do que se poderia chamar de retórica do queixume – era o que mais tarde viria a se chamar “abertura” e que naquele momento ainda recebia o tímido nome de “distensão”, dado pelo general Geisel.

Na área cultural, o personagem principal do fenômeno e do número de Visão foi Glauber Rocha, com suas declarações sobre Geisel, sobre o general Golbery e sobre Darcy Ribeiro – “gênios da raça” – e, de passagem e de leve, sobre Fernando Henrique, o príncipe dos sociólogos. Quando soube que, em vez das respostas ao longo questionário que eu lhe enviara pelo Correio, Glauber me mandara uma carta curta, pessoal, cheia de idéias loucas, Vlado quase teve um ataque.

Algumas coisas o incomodavam naquela “entrevista”. A primeira delas era justamente a forma heterodoxa e hermética daquele depoimento pouco jornalístico, cujas alegorias e hipérboles chegavam a chocar a vontade de clareza e a ofender a obsessão perfeccionista do meu editor. Mas essa não era a única objeção. Havia também o temor de que aquele depoimento viesse a ser interpretado por Golbery ou por qualquer outro militar como uma provocação.

Foi preciso muito argumento para convencer Vlado. O que o convenceu mesmo foi a garantia que me deu Cacá Diegues (que estivera um pouco antes com Glauber na Itália, sumido depois da carta), de que o que estava escrito era sincero, fidedigno e para valer, ou seja, para publicar.

Naqueles tempos difíceis de viver e trabalhar, Vlado soube viver, trabalhar e morrer com dignidade. Ele é para mim o símbolo da abertura cultural que estava contida naquela edição de Visão, assim como quase 20 meses depois iria se transformar no mártir da abertura jornalística. Não há dúvida de que foi a partir do choque causado por sua morte – com toda a indignação e revolta que espalhou – que a imprensa brasileira tomou coragem de avançar até o horizonte do possível.


Zuenir Ventura é jornalista e escritor