Vinte e cinco anos depois de sua morte, todas essas considerações importam menos que as lembranças ainda vivas do amigo cáustico, gozador e perfeccionista, com quem partilhei sonhos, decepcões e fantasias.

Vlado
Vinte e cinco anos depois, o que é preciso saber sobre Vladimir Herzog? Que ele morreu no dia 25 de outubro de 1975, durante uma sessão de tortura, na rua Tomás Carvalhal, 1030, no bairro do Paraíso, em São Paulo, num prédio utilizado pelo Destacamento de Operações Internas – Comando Operacional de Informações do II Exército?

Que os militares divulgaram fotos mostrando seu corpo em um uniforme verde, numa sala com um colchão e pedaços de anotações espalhados sobre os tacos do piso, em torno de uma cadeira de plástico? Que a cabeça pendia para o lado e as pernas se abriam para os dois lados, única e improvável maneira de alguém se enforcar com o cinto do uniforme na grade baixa colocada diante dos tijolos de vidro que garantia luz para a sala?

O que é preciso saber sobre Vladimir Herzog? Que o Inquérito Policial Militar foi manipulado do começo ao fim para concluir que a versão oficial, de que ele cometera suicídio, estava certa?

O que é preciso saber sobre Vladimir Herzog? Que no dia 25 de outubro de 1978, o juiz Márcio José de Morais, da 7a Vara de Justiça Federal responsabilizou a União pela sua morte e pelas torturas que sofreu?

Ainda é preciso dizer que a morte de Vlado, noticiada pelos jornais já livres da censura foi a primeira a chocar a classe média, que cinco mil pessoas foram a catedral da Sé para um ato ecumênico que se tornou o primeiro grande protesto contra a tortura em muitos anos?

Será necessário recordar o assassinato do operário Manoel Fiel Filho, igualmente travestido em suicídio, três meses mais tarde e que resultou na demissão do general Ednardo D’Avilla Mello, comandante do 2o Exército? Talvez fosse possível recordar ainda os que divulgaram essa versão na tribuna da Assembléia Legislativa e em colunas de jornais, mas, sinceramente, não sei do que isso adiantaria.

A política nunca foi o território de Vlado, que preferia teatro, cinema, ópera. Estudante de filosofia, foi contratado como repórter do jornal O Estado de S. Paulo por Perseu Abramo, onde em pouco tempo ficou amigo de Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, Delmiro Gonçalves. Fez parte da equipe que cobriu a inauguração de Brasília, acompanhou a visita de Sartre e apaixonou-se pelo cinema.

Depois do golpe de 64, já casado com Clarice, foi trabalhar na BBC de Londres. Em julho de 1968, ela e os dois filhos, Ivo e André, voltaram para o Brasil. Vlado ficou, para fazer um curso de produção de TV e em dezembro, durante uma viagem a Itália, leu a notícia sobre o AI-5, mas resolveu voltar. O emprego garantido na TV Cultura, não se concretizou – ele fora denunciado como comunista – e durante um ano, produziu comerciais numa agência de propaganda, até ser contratado pela revista Visão.

Vinte e cinco anos depois de sua morte, todas essas considerações importam menos que as lembranças ainda vivas do amigo cáustico, gozador e perfeccionista, com quem partilhei sonhos, decepcões e fantasias.

Nos aproximamos quando o substituí no jornal Opinião, durante uma viagem dele e da mulher, Clarice, para os Estados Unidos. Na volta, aceitei seu convite para ser o chefe de reportagem da TV Cultura. Assumimos no dia três de setembro de 1975. Não houve tempo nem de arrumar as gavetas: no dia seguinte, uma nota na coluna do jornalista Cláudio Marques denunciava que os comunistas estavam transformando a Cultura num instrumento de propaganda.

O pretexto era uma reportagem produzida pela BBC de Londres sobre o líder vietcongue Ho Chi Min e exibida no telejornal do meio dia, cujo conteúdo não havíamos examinado. Editada por um jornalista da velha equipe, a matéria não incomodaria ninguém no Brasil de hoje, mas naquela época, cheirava a provocação.

De todo modo, a partir daquele momento, passamos a viver no olho do furacão. A prisão de meus companheiros de militância no Partido Comunista Brasileiro, então ilegal, só piorou as coisas. No dia 17 de outubro de 1975, uma sexta-feira, Vlado ia se encontrar com o chefe do escritório do Serviço Nacional de Informações em São Paulo. Incapaz de uma jogada maquiavélica, inimigo do dogmatismo e da burrice, ele achava que o mundo devia ter alguma lógica e pretendia explicar, olho no olho, que os discursos de Wadih Helou e José Maria Marin, repercutindo notinhas publicadas na imprensa, sobre o controle comunista da TV Cultura, não tinham qualquer sentido.

Jamais soube o resultado do encontro: saí mais cedo naquela tarde e na mesma noite, fui preso e torturado para confessar que era membro do Partido Comunista. Oito dias depois, ainda no DOI-CODI, ao lado de outros jornalistas presos, me fizeram acionar uma máquina de dar choques, enquanto um torturador segurava a ponta dos fios para provar que aquele engenhoca não mataria ninguém. Disseram ainda que o Partidão era a favor da luta armada e tinha como dirigentes ultra-secretos figuras importantes, como um bispo ou um governador. Vlado, garantiam, era um agente da KGB.

Bom roteiro para um filme de ficção, como os que Vlado sempre quis fazer e que talvez fizesse, se não o tivessem em nota de rodapé da história e mártir a contragosto. Na contracapa do livro que coordenei quinze anos atrás tentei resumir o caso em oito linhas – ainda cheio de certezas e de esperanças. Repito aqui o que escrevi, mas confesso que não sei se é tudo tão simples assim:

A morte de Vladimir Herzog mudou o Brasil. Provocou a primeira reação popular contra a tortura, as prisões arbitrárias, o desrespeito aos direitos humanos. A morte de Vlado abortou um golpe dentro do golpe, estancou uma operação em marcha – teria sido um mero “acidente de trabalho”? E não é exagero dizer que ali, naquele prédio escuro do DOI-CODi, no confronto entre um homem encapuzado e seus algozes, começou a grande transformação que fez o Brasil voltar ao caminho da democracia.


* Paulo Markun é jornalista.