Ignácio de Loyola Brandão
Guardou incontáveis histórias. Incontáveis mesmo, porque não teve tempo de narrá-las. Escreveu algumas
Três homens corretos a menos
A vida, entre outras, é uma coleção de mortos. Uns se vão, sem que nos afetem. Outros deixam a sua marca boa impressa na gente. No último mês, coloquei na memória três. Gente instigante. Como é difícil falar dos que foram mais chegados; quanto mais próximos, menos temos a dizer, a não ser buscar as melhores lembranças.
Quando chegávamos à livraria para a noite de autógrafos, víamos sobre a mesa a marca de Carlito Maia: o buquê de flores acompanhado por uma mensagem (que sempre terminava assim: um abracito) que dizia respeito à cidadania, à fé no Brasil, ao desgosto que a politicalha provocava, ao nojo pela corrupção crescente. Uma frase que trazia ironia, ferocidade ou humor, porque criatividade sobrava nele. E ele repartia, generosamente. O plural, chegávamos, não é de modéstia. Jamais houve noite de autógrafos nesta cidade, nos últimos 30 anos, que não começasse com a chancela do Carlito.
Ele conhecia os escritores, se relacionava com quase todos e insistia em manter vivas as amizades. Carlito conhecia pessoas como ninguém e acreditava nelas. Lutou, à sua maneira, para transformar o Brasil em um país melhor.
Magro, seco, indignado permanentemente, irado, crítico, bateu-se contra os moinhos que giram na lama e na impunidade, num sistema político e econômico deteriorado, sujo e devasso. Para quem não sabe, ainda é novo, basta dizer que Carlito, homem de comunicação, foi quem formatou a Jovem Guarda, moldou o perfil de Roberto Carlos. Carlito Maia se foi no fim de semana. Carlito ficou nos corações. Um homem correto a menos.
Um dia antes, a literatura brasileira recebeu, aturdida, outra notícia: a morte de Roberto Drummond. Não, não era verdade, Drummond estava certo de que não morreria, tanto medo tinha. Muitos souberam no intervalo de Brasil e Inglaterra, jogo que ele tanto desejava e não chegou a ver. Morreu horas antes. Como no intervalo, para evitar aquela mesa-redonda, onde o único lúcido é Sergio Noronha, fomos para a cozinha fazer um café forte, perdemos a informação.
Recebi a notícia pela manhã, por meio do Deonísio da Silva que estava em Porto Alegre. Logo depois, Carlos Herculano Lopes ligou de Belo Horizonte confirmando que Roberto tinha partido ao encontro de DJ, seu personagem, aquele que morreu em Paris. Um amigo de 30 anos, Roberto era daquelas pessoas necessárias na literatura. Foi dos raros escritores e personagens ao mesmo tempo. Ele criou gente em seus livros e montou para ele uma personalidade singular na vida real. Se pensam que ele demorou para terminar o Cheiro de Deus, é porque não sabem quanto ele demorou para dar os retoques em Roberto Drummond, o mito. Sem lobby da mídia e do meio acadêmico.
Assim como não há um escritor brasileiro que não tenha recebido flores do Carlito, não há um só autor brasileiro que não tenha recebido um telefonema do Roberto, comunicando a assinatura de um contrato excepcional: dez editoras atrás dele para arrancar de suas mãos o último original. Ou feliz por um adiantamento de US$ 100 mil na lata. Exultando com uma edição de 200 mil exemplares, os livros escorrendo como água pelo meio-fio. Sôfrego com agentes internacionais colocando o livro nos Estados Unidos, França, Itália, Alemanha, Austrália, Zimbábue. Orgulhoso, porque um crítico da Suíça tinha elogiado uma tradução. Brincávamos: Suíça? Onde fica a Suíça, Roberto? Nunca vi ninguém tão realizado quanto Roberto quando comprou seu apartamento em Belo Horizonte. "De cobertura", me garantiu. Falou nisso por meses e meses.
Ou então, Drummond deliciado com a Globo batendo à sua porta para transformar em minissérie sua mais recente novela. Os que conheceram Roberto viram como ele chegou ao céu muito antes de sexta-feira passada. Ele entrou no paraíso quando Hilda Furacão se transformou no sucesso que todos sabemos.
A cada capítulo que a minissérie atingia picos elevados de audiência, Drummond se erguia do chão, flutuando. O êxito o fez levitar. O sonho, o impossível sonho de todos nós, estava acontecendo para ele. Nem ele parecia acreditar. Além disso, Ana Paula Arósio, como Hilda, foi demais para Roberto.
Uma noite, surpreendentemente, me ligou e falou longamente – os que o conheceram sabem como era econômico nos interurbanos – de Ana Paula. Tive certeza de que estava apaixonado por ela, assim como foi por Hilda. Mas o autor se apaixonar pelas personagens (e, portanto, pelas atrizes que as encarnam) criada é coisa comum, corriqueira, tudo se mistura em nossas cabeças. Daí a lindeza deste ofício.
Poucos lutaram como Roberto para ser conhecido, lido, ser considerado bom escritor, ser vendido, estar na mídia, ser um sedutor, ver as mulheres se apaixonando por ele, ser aclamado. Ele fez o que foi possível, sempre em termos decentes, muitas vezes ingênuos. No fundo, ele foi um puro naïf talentoso. Queria ser através de sua obra e nisso colocou a alma e as forças. Ríamos dele, às vezes, porque era inocente, atropelava as situações, montava cenas. No fim, ele também ria quando "desmascarado". O que importa é: Roberto sentou-se à mesa para criar livros sinceros, verdadeiros, bons.
Porque, acima de tudo, amava a literatura com um fervor e uma crença invejáveis. Vaidoso? Sim. Não somos todos? Somente os muito fortes, os excepcionais, talvez os santos (mas, querer ser santo já não é vaidade em si?), conseguem eliminá-la, tornando-se pessoas simples de verdade. Dois homens corretos a menos.
Dos leitores, a maioria não sabe de José Maria Brandão. Uma vez, anos atrás, fiz uma crônica sobre ele e minha tia Terezinha, falando de amor. Essa crônica, pelo tom e pelo tema, teve grande repercussão e foi escolhida para figurar em uma antologia para estudantes publicada pela editora Mercado Aberto no Rio Grande do Sul. José, um ferroviário, na solidão de uma estação, descobriu o amor através do telégrafo e se casou com minha tia.
Coisa de novela. Ficaram casados durante 55 anos, sempre apaixonados um pelo outro. José fez as vezes de pai para mim, foi confidente, incentivador, ouviu meus problemas e angústias, deu sugestões. Como eu, amava futebol, a Ferroviária e o Corinthians. Antes de cada jogo do Timão, no intervalo, e no fim, trocávamos interurbanos. Na casa dele, sabia-se. Terminado o jogo, todos deviam deixar o fone livre, eu ligava ou ele me chamava.
Criticava a atual seleção, mas não admitia que perdêssemos a Copa. Por incrível que pareça, para ele, o time ideal – dadas as circunstâncias – era esse que o Felipão escalou contra a Inglaterra. José viveu intensamente a ferrovia, como toda a minha família. Guardou incontáveis histórias.
Incontáveis mesmo, porque não teve tempo de narrá-las. Escreveu algumas.
Queria conservar a memória da linha (como se dizia na gíria ferroviária), manter vivos personagens simples, portadores, manobristas, mensageiros, bilheteiros, foguistas, telegrafistas. A Estrada de Ferro Araraquara terminou. Sua história ficaria. Mas, José se foi também. Não viu um jogo sequer da Copa que esperou tanto. Impossível falar mais sobre meu tio. Três a menos. Há vazios difíceis de serem preenchidos.
* Ignácio de Loyola Brandão é escritor
Publicado no Jornal O Estado de S.Paulo – Caderno 2, 28 de junho de 2002