Depoimento de Belisário dos Santos Jr., Advogado em São Paulo e ex-secretário de Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo (1995/2000).

Por Belisário dos Santos Jr.

Misiones, Paraguai. Domingo, 9 de maio de 1989. Dia de eleições presidenciais. Depois de um golpe militar, que derrubou Stroessner, em fevereiro de 1989, o general Rodriguez Arias convocara eleições diretas para a presidência da República. Ele seria consagrado presidente, em meio a um pleito que, não obstante muitas denúncias, seria visto pelos observadores internacionais, entre eles o ex-presidente Jimmy Carter, como razoavelmente legítimo.

Tocara a mim a observação da eleição na província de Misiones. Ali reinava um missionário americano, de nome Donald. À minha chegada, convocou a presença de todos os líderes locais, para uma reunião. Alguns nunca haviam se reunido em torno da mesma mesa, anteriormente. Imaginei que, em algum momento, eu falaria algo. Mas, a reunião transcorreu toda ela em guarani. Volta e meia algum orador apontava para mim. O curioso era que os presentes se socorriam do castelhano apenas para algumas “más palavras”, como fraude, propaganda, transporte ilegal, entre outras, uma vez que o guarani não as possuía, como vim a aprender mais tarde. A reunião acabou e Donald me esclareceu que a presença do observador, mais que suas palavras, é que era fundamental como garantia para que tudo desse certo e o pleito transcorresse em calma. No dia 9 de maio, entrevistei vários daqueles camponeses, em trajes de domingo (em roupas de ver Deus, segundo diria meu pai). Um deles particularmente me impressionou. Indaguei-lhe se era bom votar para presidente e se aquela festa, aquela alegria, significaria a possibilidade de uma vida melhor. Respondeu-me com a candura de um sábio, com uma pergunta-afirmação. “Todavia no hubo comícios presidenciales en Brasil, verdad?” Era verdade. Comícios em castelhano quer dizer eleições. Comícios, que em bom português, significam reuniões públicas, tinham ocorrido. E importantes. Transportei-me no tempo.

Vinte e sete de novembro de 1983. Estádio do Pacaembu. São Paulo. A convocação chamada pelo Partido dos Trabalhadores coincidiu com a morte de Teotônio Vilela. Foi em verdade a grande data simbólica para início de outras grandes manifestações populares de apoio à realização das eleições diretas. Foi seguida da apresentação da emenda Dante de Oliveira. Dois outros grandes comícios ganharam minha mente na frente daquele camponês paraguaio, com cara marota. Vinte e cinco de janeiro de 1984, na Praça da Sé. Era impossível alguém se mexer sem tocar no vizinho. Presente a esperança de todo o povo brasileiro, como diria Montoro. E 16 de abril de 1984, o comício do Anhangabaú, uma das maiores manifestações públicas ocorridas no Brasil. Ao meu lado duas meninas, de 10 e de 7 anos, pulando para responder Já, a cada vez que Osmar Santos perguntava: Diretas, quando? Aprendi ali o sentido lúdico da democracia, que me seria relembrado pelo velho e maroto camponês paraguaio. Dias após o comício, aquela gente veria a insensibilidade da maioria do Congresso rejeitar a emenda Dante de Oliveira. O regime militar seria implodido a partir de uma eleição indireta.

O povo voltaria àquele vale, de cara pintada, no 18 de setembro de 1992, para exigir o impedimento do primeiro presidente eleito pelo voto popular, após a ditadura militar de 1964. Também aí minhas duas filhas, já adolescentes, mais angustiadas com a nossa democracia. Sabemos o que aconteceu depois. O que esse processo nos ensinou?

Voltando da viagem ao passado, venho constatar no presente a percepção que se tem de democracia na América Latina. A LATINOBARÔMETRO (www.latinobarometro.org.), entidade chilena de pesquisas, divulgou neste ano de 2003 dados de pesquisa feita em 2002, sobre democracia como cultura, estrutura e processo. Na América Latina 68% entendem que a democracia pode ter problemas, mas é o melhor sistema de governo. Ou seja, concordam com Winston Churchill: “A democracia é o pior dos regimes, exceto todos os outros”. Mas, na América Latina 50% dos entrevistados estariam dispostos a aceitar governo autoritário se com isso resolvessem os problemas. Na América Latina 37% aceitariam passar por cima das leis. Mas, 75% estão de acordo que a solução dos problemas não depende da democracia. No Brasil, apenas 37% entendem que democracia é o melhor sistema. É o índice mais baixo da América Latina. Mais baixo que na Colômbia (39%), que vive em guerra civil há 40 anos. É igualmente no Brasil que ocorre o maior índice de pessoas que “não sabem o que é democracia” (59%). Os países mais próximos são El Salvador (41%) e Colômbia (40%). Foram observadas na pesquisa algumas características preocupantes: a democracia tem um caráter minimalista. Para grande parte que respondeu o que é democracia, o conceito se resumia a: liberdade e eleições regulares, limpas e transparentes. Um conceito defasado, de 150 anos atrás. Há baixa confiança nas instituições democráticas. A maior confiança está depositada nas seguintes instituições: Igreja, em primeiro lugar; em seguida, a televisão. As Forças Armadas vêm em terceiro. O Brasil lidera a aprovação das Forças Armadas, com 61%. Sem menção a nomes de políticos, há baixa confiança na gente que governa (29% na América Latina). Embora se deva acrescentar que, quando há trocas de governantes, essa confiança aumenta. Há diminuição da legitimidade do Congresso e dos partidos políticos. Diminuiu na América Latina de 63%(em 2001) para 52% (em 2002) o número das pessoas que acredita que sem partidos e/ou congresso não há democracia. A angústia aumenta quando se lembra que essa terceira geração de democracia na América Latina é antecedida de poucos anos de regimes militares extremamente violentos para calar e domesticar sua cidadania.

A natureza da pessoa humana – isto já foi proclamado pela Conferência de Viena – exige que os direitos sejam cumpridos de forma indivisível, devendo os direitos políticos serem acompanhados pelos demais direitos, entre eles os econômicos sociais e culturais. A construção de um processo democrático ético que melhore a vida dos latino-americanos é o desafio. O problema é que, enquanto alguns olharão para essa realidade, pensando em transformá-la, por um processo de educação, de valorização cotidiana dos movimentos sociais, de implementação dos direitos econômicos e sociais, outros olharão essas estatísticas com olhos de tirar proveito político-eleitoral desse estágio incipiente de percepção da democracia. A nossa sabedoria enquanto povo – e possivelmente nosso futuro – estará em distinguir uns dos outros.


* Advogado em São Paulo e ex-secretário de Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo (1995/2000).

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