Depoimento de Ronald Rocha, sociólogo e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.

Por Ronald Rocha*

Acontece o vigésimo aniversário da campanha pelas Diretas-Já. Se o critério escolhido for o auge das mobilizações populares que encheram as ruas e praças das capitais – nas vésperas da votação da emenda constitucional que pretendia restabelecer o pleito direto imediato para presidente -, a data estará no primeiro semestre de 2004. De fato, entre janeiro e abril de 1984, ocorreram as maiores concentrações públicas da história do país: 400 mil em Belo Horizonte, um milhão no Rio e 1,7 milhão em São Paulo.

Todavia, os atos caracteristicamente voltados a tal exigência começaram no ano anterior. A manifestação do Pacaembu – convocada pelo PT – reuniu cerca de 10 mil pessoas. Antes, várias correntes de esquerda, ainda proscritas, já estavam propondo – aos partidos de oposição legalmente existentes e às entidades representativas de massa – iniciativas capazes de quebrar a lógica conciliadora que preparava a transição “por cima”, sem povo, acorrentada à lógica do Colégio Eleitoral. Não foi casual a proibição e a literal caça de bandeiras vermelhas nas primeiras manifestações.

O mais importante – para além dos eventos que marcaram a memória nacional e do papel desempenhado pelos indivíduos que apareceram na crista da onda democrática – é reconstituir o ambiente político, bem como as contradições objetivas que permitiram e mesmo constrangeram sua eclosão. Trata-se do ocaso da ditadura militar – vale dizer, o seu esgotamento como forma do Estado e a diáspora de suas forças político-sociais de sustentação -, que pôs na ordem do dia um tema que já estava na agenda nacional desde os anos 1960: a passagem a um novo regime político. A gestação primordial desses acontecimentos estava no âmago da sociedade civil – que detêm a prioridade ontológica sobre a sociedade política e ambienta a práxis dos atores sociais – e não na mera vontade dos indivíduos, grupos e partidos, por mais importantes que suas atitudes tenham sido.

De fato, o novo ciclo de acumulação e centralização de capitais – inaugurado em 1964 com a reação aberta ao movimento por reformas progressistas em crescimento e radicalizado com a reorganização monopolista-financeira da economia política a partir dos órgãos estatais aquartelados – exigiu a ruptura com a desde sempre limitada e precária República Democrática. Excluindo a modorra dos primeiros anos, os técnicos a serviço dos generais de plantão, escancarando as portas aos interesses imperialistas e seus sócios internos, conseguiram alcançar altos índices de crescimento do PIB, ainda que às custas da soberania nacional e da miséria generalizada. Mas o fim do chamado “milagre brasileiro”, na primeira metade dos anos 1970 – com a irrupção da crise de longo curso do capitalismo – falou mais alto do que o desejo de perpetuar o terrorismo de Estado.

Não tardou que a tentativa de enquadrar as instituições políticas na autovolição militarista, à revelia da realidade viva, agravasse o dissenso e evoluísse para uma crise institucional. Após sucessivos impasses, todos os sujeitos foram, literalmente, obrigados a levar em conta o terreno da transição necessária, mas de desenho contingente. O núcleo duro do regime se articulou para defender os dispositivos ditatoriais ou – quando se evidenciou a impossibilidade de fazê-lo por inteiro – para manter o que fosse viável, incluindo as salvaguardas legais para torturadores e mandantes. Os quadros mais esclarecidos e menos autistas da reação – percebendo as tendências em curso, inclusive internacionalmente, e a possibilidade real de uma derrota – passaram a negociar os termos de um tipo de passagem que mantivesse o máximo da herança do antigo regime e impedisse a emergência das forças que sempre lhes haviam sido hostis.

No campo democrático, a esquerda revolucionária trabalhava para a derrota completa da ditadura militar e por uma ruptura que favorecesse uma saída popular para a crise, abrindo brechas para conquistas democráticas e sociais profundas e duradouras. Interessava-lhe a convocação imediata de eleições diretas para presidente – que por si só já significariam uma conquista importante – mas insistia em medidas democráticas concomitantes e as mais avançadas possíveis. Por exemplo, os amplos direitos de expressão política e de organização partidária. O lema que melhor expressou tal postura foi “Diretas com Liberdade!”.

A oposição burguesa possuía uma fração democrático-constitucionalista, que desejava o fim imediato do regime militar e se mostrava mais sensível aos ritmos e métodos das mobilizações populares, embora evitasse comprometer-se com formas de luta consideradas radicais, especialmente passeatas com forte presença contestatória, greves e propostas de transformações de fundo que de algum modo tocassem na ordem social estabelecida. Mas o seu setor liberal-conservador – que jamais cessava de fazer um jogo duplo – priorizava os entendimentos com a ala “reformadora” do regime militar e visava cada vez mais à transição pelo “topo”, antes que perdessem o controle da situação e as massas impusessem soluções jacobinas.

A passagem dos anos 1970 foi marcada por um vigoroso fortalecimento das lutas populares, que obteve vitórias parciais como a Lei da Anistia, a extinção do bipartidarismo, o restabelecimento de eleições diretas para governador e o crescimento eleitoral das oposições, ao mesmo tempo em que o recrudescimento da crise econômica e as grandes greves operárias, com suas conquistas econômicas e políticas, soavam como o dobre de finados do regime militar. Estava claro que os “de baixo” já não suportavam viver e os “de cima” já não podiam governar como antes.

Porém, a hegemonia burguesa, ao fim e ao cabo estabelecida nos palanques – a partir da influência da oposição consentida e seus governadores diante de uma esquerda ainda debilitada pela repressão e de uma sociedade civil cuja consciência democrático-radical se mostrava gelatinosa -, conseguiu manter a campanha pelas diretas engessada nos limites de uma reivindicação meramente institucional e que apostava todas as fichas no calendário de um Parlamento viciado. A aliança dos liberais da campanha pelas diretas com os “redemocratizadores” de caserna fez prevalecer o pacto conservador que teve no Colégio Eleitoral o lócus operacional privilegiado e condenou o movimento ao esvaziamento. Tal desfecho, além de atrasar o cronograma da transição e funcionar como a camisa-de-força que o disciplinou para evitar a emergência plebéia, foi também responsável pela manutenção do entulho autoritário que até hoje marca as instituições políticas brasileiras e pela pavimentação do caminho para a restauração neoliberal dos interesses oligopolistas financeiros que tantas mazelas nos legou.

É impossível voltar no tempo para retomar o movimento democrático no exato momento de seu maior impulso progressista – quando o controle conciliador ainda não havia sido estabelecido e seu desdobramento comportava múltiplas e avançadas possibilidades -, na quimera de refazer a práxis e a História. Destarte, faz-se necessário aprender com a experiência para travar os combates do presente com maior conseqüência. Talvez o legado revolucionário das extraordinárias lutas da primeira metade dos anos 1980 seja a consciência – não por todos obtida ou cultivada – de que vitórias parciais, sob quaisquer condições e governos, se não consolidadas como afirmação permanente e autônoma, pelos “de baixo”, de um projeto, uma organização e uma mobilização transformadores, sofrerão retrocessos e se extinguirão na reprodução metabólica do capital e de sua sociedade política. Respeitar tal ensinamento é a melhor forma de comemorar as Diretas-Já.

Belo Horizonte, novembro de 2003


*Sociólogo e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo

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