Artigo de Alberto Dines publicado na Folha de S.Paulo de 27/11/83.

Por Alberto Dines
Quem tem medo das diretas? O PDS, como acusou Figueiredo nas suas falas africanas? Ou aqueles que querem o PDS legitimado por uma democracia simulada até a virada do século?

Pela agilidade com que um setor ponderável do partido oficial aderiu ao movimento nacional pelas eleições diretas ficou visível que não existe um PDS, mas sim, pelo menos dois partidos muito nítidos dentro do situacionismo: uma facção liberal, democrática e reformista comprometida com as aspirações nacionais e, outra, dita revolucionária, postulando o botim do movimento de 1964 e, portanto, com pretensões a gozar dos privilégios de mando indefinidamente.

Este último bloco, longe de constituir-se num agrupamento homogêneo, por sua vez dissolve-se em duas linhas: os velhos e sábios mexicanos (Geisel, Golbery, alguns integrantes do Alto Comando e, provavelmente, os 3 Ministros Militares), que vêem o PDS como versão brasileira do PRI (Partido Revolucionário Institucional), sucessor dos militares no poder há mais de 50 anos, admitem reformas políticas e sociais mas não abrem mão de uma tutela nas questões cruciais, e aquele grupo mais aguerrido com vocação absolutista, impermeável às mudanças, com apetite apenas para usufruir do poder. Neste estão contidos os adversários Maluf e Andreazza, duas vertentes – a gerencial e a desenvolvimentista – de um mesmo vetor, a direita brasileira.

Figueiredo, num rasgo sebastianista que encontrou na África o cenário ideal para ocorrer, não apenas reencarna a imagem do monarca-herói por quem a Nação vai chorar o resto da vida, mas também encontra uma saída política para passar à história como árbitro de um pleito sucessório e, não, como coordenador de vexaminosa e despudorada mudança de guarda palaciana. Acusando claramente, apesar dos desmentidos e explicações, o seu PDS de não querer abrir mão do poder de indicar o próximo presidente, Figueiredo adotou a fórmula Argentina de evitar que a disputa eleitoral se faça em torno da perigosa bipolaridade, situação e oposição. Dividida a esquerda pelos casuísmos das reformas partidárias destinadas a açular as moscas azuis e as irresponsabilidades no campo progressista, restava agora promover a dissolução do monolitismo oficial. Deste movimento desvendou-se, com muita clareza, a tão falada e jamais visível direita brasileira.

Quem está com Maluf? Deputados como Eduardo Galil e Amaral Neto, intérpretes civis e beneficiários dos favores da linha dura militar e até um general, Coelho Neto, expoente final deste grupo. Quem está com Andreazza? Coronéis de reserva, iguais a ele, que, a pretexto do nacionalismo, espalharam-se pelas veias do aparelho econômico do Estado para locupletar-se de vantagens e, através do obrismo, submeter as lideranças regionais, sobretudo nos quadrantes mais pobres. Cimentando os dois subgrupos da direita estão setores civis tradicionalmente conservadores e elitistas, aquela aristocracia que já morreu e ainda não sabe, bolsões tradicionalistas da Igreja e alguns jornais, porta-vozes do ancien regime.

São duas oligarquias, a velha, civil, e a nova, militar, ansiosas para imobilizar o modelo econômico de forma a eternizar as divisões do atual quadro social. São elas que estão exasperando a classe média – em vias da proletarização – com a psicose do medo, da violência e da segurança a qualquer preço. São elas que corrompem a política e, ao mesmo tempo, orquestram uma histeria coletiva visando a torná-la mais forte. São elas que se escondem por trás do carro-bomba no pátio do Estadão para mostrar que eleições diretas resultam em governantes fracos, incapazes de lidar com o banditismo e terror.

Por que Maluf e Andreazza não se pronunciam candentemente contra a política recessiva, adotando um, o gerencialismo e, outro, o obrismo, como plataformas eleitorais? Simplesmente porque lhes convém a atual distribuição social. Por que trabalharam pelo 2.065? Porque este tipo de “austeridade” congela definitivamente todas as perspectivas de mobilidade social e não mexe com os privilégios estruturais, inclusive aqueles do estamento militar.

Um presidente eleito pelo povo jamais poderia fechar os olhos às desigualdades fiscais que punem o cidadão civil com pesada carga tributária e que isentam o militar destes ônus. Tira-se do governo um democrata, Hélio Beltrão, defensor do atual sistema previdenciário não porque seja o melhor mas porque é, pelo menos, menos injusto do que as fórmulas alternativas nas gavetas da Seplan e, em seu lugar, coloca-se um ex-militar conservador que jamais aventará um plano de aposentadoria capaz de acabar com as vantagens que usufrui o pessoal fardado.

A direita brasileira aí está em sua versão 84: bem-falante, culta, tentando racionalidade, apelando para o bom senso, falando em respeito as normas constitucionais vigentes. A retórica dos palanques,virulenta, deu lugar à eloqüência que cala fundo na alma humana – a defesa do patrimônio, o endeusamento da ordem, a manutenção do status. Não é casualmente que, tão logo empossados governadores da oposição, fossem acionadas perturbações sociais sob a forma de saques e depredações justamente nas cidades mais ricas do País – S. Paulo e Rio – quando o lógico seria que ocorressem onde a miséria é mais aguda. Qual a intenção subjacente nestas provocações? Exacerbar o senso de propriedade, agudizar o sentimento de posse, instigar uma luta de classes às avessas, não aquela que distribui mas a que concentra.

A direita abomina diretas porque não deseja de forma alguma transformações drásticas. A direita quer o País saindo da crise tal e qual entrou – com as mesmas estruturas e vícios. Não quer florescendo no Brasil um Roosevelt com um Novo Pacto para liquidar a recessão e as causas que a provocaram. A direita quer resolver a crise com contabilidade, mexendo nas contas, fechando e zerando operações aritiméticas.

E Figueiredo, que dá todos os sinais de não entender de economia, para livrar-se da entourage de contadores e técnicos autoriais, aparentemente, encontrou uma saída política jogando nas ruas o tema do voto direto. Resta saber se a direita, desta vez, vai receber o aval da instituição militar. Neste caso teremos que esperar por uma aventura do tipo das Malvinas – não necessariamente externa – para, então, recuperarmos nossa soberania e nosso poder de arbítrio sobre o futuro. Que a direita reivindica como sendo direitos seus.


Alberto Dines é jornalista.
Artigo publicado na Folha de S.Paulo de 27/11/83.

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