No caso Herzog, a versão de suicídio apresentada pelo comando do II Exército não foi aceita em momento algum pelos jornalistas.

O papel do Sindicato dos Jornalistas

O papel desempenhado pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo na denúncia do assassinato de Vladimir Herzog ainda não foi devidamente avaliado. Se o sacrifício de Vlado foi, sem sombra de dúvida, o ponto de partida para o desmonte do aparelho de repressão armado pela ultradireita, que lutava pela hegemonia na ditadura militar, a atuação do Sindicato no episódio marcou o momento em que se abriu espaço para o crescimento da resistência da sociedade civil ao regime instalado no país com o golpe de 64.

A realização do culto ecumênico em memória de Vlado, com a participação de mais de 8 mil pessoas, no dia 31 de outubro de 1975, na Catedral de São Paulo, foi a maior manifestação pública desde a decretação do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 68. Isso apesar do clima de ameaças, do verdadeiro cerco estabelecido com a chamada Operação Gutemberg, comandada pelo então secretário de Segurança, cel. Erasmo Dias, que mandou instalar mais de 380 barreiras nos principais pontos de acesso ao centro da cidade.

Naqueles dias de outubro, o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo era a principal trincheira, uma referência para a sociedade civil na luta contra a repressão.

O processo que levaria à denúncia do assassinato de Vlado, contudo, começara meses antes, com a vitória da oposição nas eleições para a diretoria do Sindicato, em abril. Os sindicatos eram mantidos sob estrito controle pela ditadura, mas o dos jornalistas começou a falar, a levantar questões proibidas, como a censura, a política salarial e outras. Em julho, dois meses depois de sua posse, a diretoria já era convocada ao Comando do II Exército para explicar uma nota distribuída à imprensa em que contestava acusações de que as redações estavam “dominadas” pelos comunistas.

A ação repressiva dos militares que se opunham ao projeto de abertura política ensaiado pelo general Ernesto Geisel, que ocupava a Presidência da República, vinha num crescendo desde o final de setembro, quando se iniciou a série de prisões e seqüestros que culminaria com a morte de Herzog, no DOI-CODI do II Exército, no dia 25 de outubro. Era a Operação Jacarta, inspirada num massacre ocorrido dez anos antes na Indonésia.

Quando a operação Jacarta, comandada pelos militares da ultradireita alcançou o primeiro jornalista (Sérgio Gomes da Silva, no dia 5 de outubro), sua prisão foi denunciada em nota distribuída pelo Sindicato, tornando público um assunto que, na maioria das vezes, ficava restrito às famílias e aos amigos das vítimas da repressão.

Daí em diante, a cada prisão (antes de Vlado foram presos 10 jornalistas) um novo comunicado era distribuído. Várias vezes convocada à presença dos militares, a diretoria do sindicato era advertida de que as denúncias que fazia poderiam levar ao enquadramento na Lei de Segurança Nacional.

Não é exagero dizer que a reação dos jornalistas, conduzida pelo sindicato, frustrou um golpe que vinha sendo preparado havia tempo pelos militares da chamada linha dura.

No caso Herzog, a versão de suicídio apresentada pelo comando do II Exército não foi aceita em momento algum pelos jornalistas. Tratava-se de mais um caso de assassinato praticado contra opositores do regime, mas não seria, como muitos outros, recebido em silêncio. O corpo de Vlado não seria apenas mais um entregue em caixão lacrado e sepultado sob o peso do silêncio e do medo.

O comunicado que o Sindicato distribuiu no dia seguinte à morte do companheiro foi um grito e uma denúncia. Foi um basta, a expressão da consciência nacional, que não mais suportava a opressão. O documento responsabilizava os militares pela morte, independentemente da circunstância em que ela ocorrera: “Não obstante as informações fornecidas pelo II Exército – dizia o documento – o Sindicato dos Jornalistas deseja notar que, perante a lei, a autoridade é sempre responsável pela integridade física das pessoas que coloca sob sua guarda”.

E prosseguia: “O Sindicato dos Jornalistas, que ainda aguarda esclarecimentos necessários e completos, denuncia e reclama das autoridades um fim a essa situação em que jornalistas profissionais, no pleno, claro e público exercício de sua profissão, cidadãos com trabalho regular e residência conhecida, permanecem sujeitos ao arbítrio de órgãos de segurança, que os levam de suas casas e de seus locais de trabalho, sempre a pretexto de que apenas irão prestar depoimento, e os mantêm presos, incomunicáveis, sem a assistência da família e sem assistência jurídica, por vários dias e até por várias semanas, em flagrante desrespeito à lei”.

A discussão desse documento, inicialmente no âmbito da diretoria, foi o começo de um formidável movimento que uniria, primeiro, os jornalistas e depois outros setores sociedade civil. Na condução do processo, o sindicato se abriu à ampla participação da categoria, que, da perplexidade, passou à organização que levaria à mais contundente denúncia até então feita de um crime da ditadura militar.

Esse processo prosseguiria com a discussão ampliada que levaria à elaboração de um documento que desmontaria, ponto por ponto, a farsa do Inquérito Policial-Militar montado pelo II Exército para “apurar as circunstâncias em que ocorreu o suicídio do jornalista Vladimir Herzog”. Resumido no manifesto “Em nome da verdade”, o documento foi assinado por 1.004 jornalistas de todo o Brasil e distribuído à imprensa em janeiro de 1976. Apenas um jornal, “O Estado de S. Paulo” o publicaria na íntegra, mas como matéria paga. Isso dava a medida do quanto os jornalistas tinham avançado na denúncia dos crimes da ditadura.


Audálio Dantas é jornalista. Na época, presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.