Se queremos render tributo à memória de Vlado, temos que preservar dentro de nós o sentimento de indignação e inconformismo, jamais nos acomodando à violação dos direitos alheios.

25 ANOS SEM VLADO HERZOG

Em outubro faz 25 anos que o Brasil perdeu Vladimir Herzog. Vlado era jornalista de destaque, professor da Universidade de São Paulo e diretor do Departamento de Jornalismo da TV Cultura. Era também um judeu. Não praticante, mas um judeu – um judeu dotado de grande capacidade intelectual, universal em sua visão e profundamente comprometido com as causas humanitárias no Brasil e no exterior. Eu o conhecia superficialmente. Conheço muito bem sua mãe, que é sócia da Congregação Israelita Paulista.

Na segunda-feira, dia 27 de outubro de 1975, os jornais noticiaram a morte de Herzog, aos 38 anos de idade, depois de ter sido submetido a intensos interrogatórios nas dependências do Departamento de Operações Internas do 2º Exército, em São Paulo. Estávamos então no auge da repressão neste país. Herzog foi encontrado morto em sua cela no DOI-CODI. A explicação oficial divulgada pelas Forças Armadas foi que ele havia se suicidado.

O enterro de Herzog, que se realizou nessa mesma segunda-feira no Cemitério Israelita do Butantã, teve ampla repercussão na imprensa local e internacional, não somente devido às circunstâncias trágicas em que ocorrera sua morte, mas também porque muitas das pessoas presentes ao sepultamento tiveram a impressão de que a cerimônia não havia sido celebrada de acordo com os rituais tradicionais judaicos. Entre os fatos destacados pela imprensa, noticiou-se com ênfase a ausência de um rabino no cemitério e a suposta rapidez com que se realizou o enterro. Como representantes da fé judaica estavam presentes apenas um cantor litúrgico e os membros da Chevra Kadisha, o comitê funerário da Congregação Israelita Paulista.

Em entrevista que concedi à imprensa no dia seguinte, esclareci que os rituais de sepultamento haviam sido cumpridos rigorosamente de acordo com a lei judaica. E expliquei que o único motivo da minha ausência tinha sido um compromisso profissional inadiável, no Rio de Janeiro, no dia do enterro.

Ressaltei que a comunidade judaica estava chocada diante da violação dos direitos fundamentais de Herzog e que ele havia sido vítima da ditadura. Declarei categoricamente à imprensa que Herzog tinha sido sepultado com todas as honras que lhe eram devidas como judeu, como brasileiro, como ser humano. De acordo com a lei judaica, um suicida é enterrado na periferia do cemitério, como forma de condenar visivelmente o pecado cometido por aquele que destrói a própria vida. Não foi esse o caso de Vlado; ele foi sepultado no centro do campo-santo.

Preocupou-me imensamente não só a barbaridade do crime que havia sido cometido, mas também a imagem de passividade que foi atribuída à comunidade judaica. Fiz questão de declarar à imprensa que a Sinagoga defendia os Direitos Humanos com o mesmo fervor que a Igreja e que os judeus estavam tão revoltados com a morte de Herzog quanto todos os outros brasileiros.

Quando me perguntaram sobre “um certo apressamento da cerimônia do enterro”, expliquei (depois de consultar o nosso pessoal da Chevra Kadisha) que, de fato, houve um apressamento, motivado pelo respeito ao falecido. Dado o grande número de pessoas presentes, a intenção tinha sido evitar que o funeral se transformasse num ato público de caráter político. Quando voltei do Rio a São Paulo, assegurei à família, tanto pessoalmente como publicamente, que todas as orações haviam sido devidamente recitadas.

Alguns dias depois da morte de Herzog, a pedido da família e do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, foi realizado um culto ecumênico na Catedral da Sé, co-celebrado pelo Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, pelo Reverendo Jaime Wright e por mim. Cerca de 8 mil pessoas compareceram à catedral para render tributo a Vlado, entre os quais inúmeros parlamentares, professores, estudantes e representantes dos centros acadêmicos de quase todas as faculdades paulistas.

O culto foi conduzido com a maior solenidade e dignidade. O cardeal Arns foi magnífico! Ele se referiu ao governo como “assassinos” e citou o mandamento do Decálogo: “Não matarás!”. “Ninguém mata um homem e fica impune”, disse o Cardeal.

Os presentes ouviram as palavras dos oradores e o canto do “El malé Rachamim”, a tradicional oração judaica em tributo aos falecidos. Foi recitado então o “Kadish”, a prece dos enlutados. Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas, concluiu o serviço religioso dizendo: “Em nome dos jornalistas, em nome de Deus e em nome dos homens, pedimos a paz e nos comprometemos a lutar pela paz.”

Imediatamente após a morte de Herzog, milhares e milhares de universitários, jornalistas, intelectuais e líderes religiosos de todos os credos organizaram passeatas, greves e atos públicos, em conseqüência dos quais o comandante ultra-radical do 2º Exército foi substituído por outro mais moderado.

A morte de Vladimir Herzog mudou o rumo do país. Foi o catalisador da abertura política e do processo de redemocratização do Brasil. Seu nome será sempre uma recordação dolorosa de um sombrio período de repressão na história brasileira. Será também o eco eterno da voz da liberdade, que não cala jamais.

Vlado não foi a única vítima do establishment naquela época. Nos anos da ditadura militar no Brasil, centenas de opositores do regime foram espancados em repartições públicas. Muitos foram mortos. A tortura era o meio preferencial utilizado pela polícia para buscar informações sobre outros militantes. Com a redemocratização do País, tece-se a impressão de que a tortura acabou. Infelizmente, era uma impressão falsa.

A tortura, um crime inafiançável de acordo com a Constituição Brasileira, continua a ser praticada pelos agentes do estado, aviltando toda a polícia. O espancamento, o choque elétrico, o pau-de-arara são técnicas usadas rotineiramente. Nesta nossa civilização que se julga tão avançada, ainda é corriqueira a tortura de presos, a pretexto de puni-los pelos crimes que cometeram ou para extrair confissões de crimes que não cometeram.

A tortura precisa ser abolida. O que falta é a determinação da sociedade de não admitir que a tortura seja praticada no país. Não basta alguns defensores dos direitos humanos tentarem pressionar o governo para que proíba efetivamente a tortura. Tal pressão tem que vir da sociedade como um todo. Em última análise, os cidadãos da nação têm que responder pelos atos – e pela falta de atos – do seu governo.

Foi a pressão da sociedade que levou o governo a refrear a tortura nos anos da ditadura. O protesto maciço da população contra o assassinato de Vladimir Herzog surtiu efeitos positivos incomensuráveis. Infelizmente, a maioria das pessoas só se revolta com a tortura quando ela é de caráter estritamente político, Quando um criminoso comum é torturado, a sociedade se cala ou – pior ainda – aplaude. A triste verdade é que a violência da polícia conta hoje com o respaldo de uma parcela considerável da população. Na verdade, a lição do brutal assassinato de Herzog ainda não foi captada 25 anos mais tarde.

Se queremos render tributo à memória de Vlado, temos que preservar dentro de nós o sentimento de indignação e inconformismo, jamais nos acomodando à violação dos direitos alheios. O silêncio é o mais grave dos pecados. A indiferença em face do mal é um incentivo ao recrudescimento do mal. Se fechamos os olhos, se viramos a cabeça, se fingimos não saber, tornamo-nos cúmplices.

Digamos “não” à tortura. Alto e bom som, digamos “não” à violência institucionalizada. E, inspirados pelo legado de Vladimir Herzog, digamos “sim” à dignidade humana.


Henry Sobel é Presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista e coordenador da Comissão Nacional de Diálogo Religioso Católico-Judaico, órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.