Não aclamavam apenas um espetáculo que lhes tocou o coração: reverenciavam o jovem jornalista, culto, sereno, patriota, progressista, de mil amigos e admiradores em razão de suas múltiplas qualidades.

VLADO, O PONTO DE PARTIDA

Há 25 anos, assassinado pelos órgãos de repressão da ditadura militar, morria Vladimir Herzog – o Vlado. Edu Lobo e eu, na ocasião, viajávamos pelo interior de São Paulo apresentando o show “Me dá o Mote”, quando fomos fulminados pela terrível notícia. Diziam que Vlado tinha se suicidado nas dependências do DOI-CODI. Indignados e inconformados, imaginávamos os momentos infernais sofridos pelo nosso amigo sob as torturas aplicadas pelos algozes da OBAN. Atordoados, nossa primeira reação foi cancelar o show que realizaríamos naquele dia e voltar para São Paulo onde, junto aos amigos, poderíamos decidir como extravasar nossa revolta. Mas em seguida, percebemos que a não realização de nosso espetáculo (que muito tinha a ver com o clima do país na época) se constituiria em mais uma vitória da truculência e barbárie e que o que tínhamos a fazer, no momento, como resposta era realizar um espetáculo com muito amor e confiança no futuro, dedicando-o publicamente ao Vlado. Assim o fizemos. O público aplaudiu de pé. Não aclamavam apenas um espetáculo que lhes tocou o coração: reverenciavam o jovem jornalista, culto, sereno, patriota, progressista, de mil amigos e admiradores em razão de suas múltiplas qualidades. Por certo, sem o saber ainda, homenageavam aquele que com o impacto de sua imolação determinava o desmoronamento da ditadura.

A reação de parte da sociedade diante da tragédia não se fez esperar. Os cidadãos mais conscientes, movidos pela indignação, procuravam as formas possíveis para demonstrar seu repúdio ao ato infame e corajosamente exteriorizaram seus sentimentos. Entre eles, muitos artistas que se manifestaram individualmente e, em seguida, através de algumas de suas obras, inspiradas por tão doloroso acontecimento.

Sob o impacto da morte de Vlado escrevi “Ponto de Partida”. Intuía ser aquele momento decisivo para a derrocada do regime militar. Motivado não só pela dor e indignação mas, particularmente, pela urgência de alardear o que se passava conosco, com nosso país e com os melhores de nossa sofrida gente. Amordaçados pela censura, éramos obrigados a descobrir caminhos que nos permitissem a expressão sem colocar em perigo a obra e a nós mesmos. Impedidos de escrever sobre a realidade presente, classifiquei a peça como “fábula”, na acepção de narração de coisas imaginárias, ficção. Afirmei ter-me inspirado em uma lenda medieval. “… é sobretudo a fria exposição de um instante histórico determinado e terrível. Um episódio serve de incontrolável estopim para uma crise sóciopolítica que envolve toda uma comunidade, no caso uma aldeia medieval. Poderosos e dominados estão perplexos e hesitantes, impotentes e angustiados. Contendo justos gestos de ódio e revolta, taticamente recuando diante de forças transitoriamente invencíveis. Um dia os tempos serão outros. Diante de um homem morto, todos precisam se definir. Ninguém pode permanecer indiferente. A morte de um amigo é a de todos nós. Sobretudo quando é o Velho que assassina o Novo.”

Tencionava abrir meu espírito e coração escrevendo sobre os anos de chumbo em que vivíamos, assolados pelo medo, acordando sobressaltados, mas também sobre coisas belas, os atos de solidariedade, a generosidade na luta. De Vlado nasceu Birdo. Birdo, pássaro em esperanto, liberdade, ternura, consciência, sabedoria e amor. De Clarice Herzog, mulher de Vlado, nasceu Maíra, amada de Birdo, encontrado em uma triste manhã, enforcado em meio à praça. Maíra que espera um filho de Birdo, que se recusa a aceitar o suicídio do amante e que expressa as razões de sua incredulidade diante do povo: “Birdo jamais atentaria contra a própria vida, pois para viver tinha as mais belas razões”. Prossegue afirmando que Birdo pretendia formar família, que construía uma pequena casa. Às margens do rio, entre os casebres dos menos favorecidos. Lá onde punha todo seu coração, entre sua gente, pois que deles era médico, conselheiro, mestre e cantor. Diz das crianças que alfabetizava, de sua indagação constante, sua inquietude, sua busca sem parada. Alerta: “Se a muitos estimulava, a alguns incomodava. Mas esses alguns têm poder e força. E Maíra, finalizando seu depoimento no inquérito, exige: “…e que, entre os “alguns” a quem o morto perturbava, se procure a verdade de sua morte. Para que possamos continuar existindo, cada qual olhando nos olhos do outro, mas sem medo e muito menos vergonha.”Os pais de Maíra, poderosos senhores que detinham o total domínio político e militar da província, concluem o inquérito impondo a versão de suicídio. Sabendo, enfim, que Maíra é apaixonada por Birdo e que dele espera um filho, o poderoso pai, em fúria, exige o aborto, vociferando: “Não se abastardará meu sangue. Do celerado não sobrarão sementes. Do ventre de minha carne não se perpetuará o inimigo. Arrancarei de ti este embrião. Que sofras o quanto gozaste. Não tenho olhos, sou cego, por isso golpeio em círculo. Vem Áida!”. A mãe segura a filha e ambos – pai e mãe – provocam o aborto. A jovem desfalece. Denotando uma ponta de admiração, o pai indaga da mãe se fora ela a responsável pela morte de Birdo. Ela assente: ” Sim, fui! Esta tragédia é só minha pois não tenho salvação. A ti estou atrelada! Somos o velho e acabado e só tua força nos sustenta! (…) Matei-o. Mandei que o pendurassem na praça, de ódio pelo seu amor, pela sua beleza, pela sua esperança! Quisera esmagá-lo, mordê-lo até sangrar, arrancar-lhe os olhos, a língua o sexo! Ele é vida, é sangue e humanidade pulsando. Sou fria e atra, sou passado, momento final!”. E o pai-senhor, como em transe, exclama: ” Golpearei em círculo e muitas cabeças rolarão. Haverá paz e trabalho! Viveremos em ordem! Em ordem! Orgulhosos de nossa força!”. Finalizo a peça com Maíra, na praça, sozinha diante do amado morto: “Sozinhos, meu amado. Já em mim não continuas, pois mataram o pai e filho não nascido, e de ti só restará uma lembrança proibida. Mas eu ficarei meu amado, no centro desta praça, até que estes tempos se acabem e os homens se reencontrem no que conservarem de humano. Eu e meu sangue, e minha fé, e minha coragem, e minha certeza, e minha dor que é só o que há de irreversível!”

A Vlado, com o mais profundo respeito e saudade.


* Gianfrancesco Guarnieri é ator e dramaturgo.

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