"A grandeza de um homem se define por sua imaginação. E sem uma educação de primeira qualidade, a imaginação é pobre e incapaz de dar ao homem instrumentos para transformar o mundo"

 

(Florestan Fernandes)

O tema "educação e democracia" talvez seja aquele, entre os selecionados para este seminário, que suscita de maneira mais contundente a dialética do cientista e do político presente na trajetória de Florestan Fernandes.

José de Souza Martins prestou uma bela homenagem a Florestan Fernandes (e a todos que somos seus admiradores) com o texto "Vida e história na sociologia de Florestan Fernandes". Martins afirma que para Florestan Fernandes "há sempre uma espécie de processo educativo permanente nas relações sociais em crise" e que teria sido este fator que o levou a se interessar pela educação e pelo estudo sociológico dos processos educativos. Proponho aqui analisar de modo breve a dimensão que a educação assumiu nas diversas etapas da vida de Florestan Fernandes até chegarmos ao último período no qual desenvolveu suas posições frente à Assembléia Nacional Constituinte e ao Congresso Nacional.

Podemos dizer que o lugar da educação na trajetória de Florestan Fernandes é crucial, fundamental. Ela surge já na infância, quando o menino Florestan ainda era chamado por sua madrinha de Vicente. Foi Dona Hermínia Bresser de Lima quem literalmente colocou o lápis na mão do pequeno Florestan. O convívio com esta família burguesa revelou ao futuro sociólogo que o mundo não se restringia ao universo dos cortiços nos quais vivia, mas que havia algo muito além do fundo do poço no qual ele e seus companheiros de rua se encontravam. Florestan abandonou a escola antes de completar a terceira série primária, mas já adquirira os padrões mínimos da curiosidade intelectual e do interesse pela leitura, bases que possibilitaram posteriormente, mediante a realização do curso madureza, seu ingresso na Universidade de São Paulo. A passagem pelo Ginásio Riachuelo funcionou como uma espécie de ressocialização e, ao mesmo tempo, como ponte para uma novo patamar de realizações:

"Se não era uma comunidade-escola tínhamos uma escola-comunidade, sob o seu impulso, a minha imaginação se abriu para além do imediato, do cotidiano e para os grandes problemas da literatura, da filosofia e da época […] fugíamos das limitações intrínsecas à escola secundária brasileira, completando o ensino que recebíamos, aliás de bom nível em termos relativos, pela improvisação de uma fraternidade de estudantes voltados para a sistematização e intensificação dos estudos".

O ingresso de Florestan Fernandes na Faculdade de Filosofia representou um marco, tanto para sua vida profissional e pessoal, quanto para a instituição e, em especial, para as ciências sociais. Para superar suas deficiências e lacunas intelectuais, Florestan tornou-se um estudante ímpar, totalmente dedicado ao curso, impondo a si mesmo uma rígida disciplina de trabalho:

"De princípio as coisas não possuíam muita clareza para mim. Mas já no segundo ano do curso eu sabia muito bem o que pretendia ser e me concentrara na aprendizagem do ofício – portanto, não me comparava ao bebê, que começa a engatinhar e a falar, porém ao aprendiz, que transforma o mestre artesão em um modelo provisório."

Em pouco tempo ele mesmo passara a ser o modelo, o mestre. Superada a fase de formação pessoal, Florestan ingressa em um novo patamar de formação: o institucional. Como catedrático da cadeira de Sociologia I realizou sua maior obra de formação: constituiu um grupo de pesquisadores, de cientistas sociais, que marcou definitivamente o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil e criou uma escola de interpretação dos problemas nacionais. Dialogando com os clássicos da sociologia (e também dos demais ramos das ciências humanas) Florestan Fernandes procurou refinar os métodos de investigação e análise para produzir um conhecimento mais profundo, um conhecimento radical da realidade brasileira. Neste desbravamento sociológico formulou vários conceitos que permanecem válidos nos dias de hoje. Entre eles encontra-se a definição do dilema educacional brasileiro, desenvolvida nos anos 50.

"[…]Como ocorre em outros países subdesenvolvidos, ele é de fundo institucional. O sistema educacional brasileiro abrange instituições escolares que não se ajustam, nem qualitativa nem quantitativamente, a necessidades educacionais prementes, que são compartilhadas em escala nacional ou que variam de uma região para outra do país. Daí ser urgente e vital alterar a estrutura, o funcionamento e o modo de integração das instituições. O aspecto prático do dilema revela-se neste plano: o reconhecimento dos problemas educacionais de maior gravidade e a realização dos projetos de reforma educacional esbarram, inelutavelmente, com diversos obstáculos, do apego a técnicas obsoletas de intervenção na realidade à falta de recursos para financiar até medidas de emergência. Em resumo, o referido dilema possui dois pólos, ambos negativos: primeiro, instituições deficientes de ensino, que requerem alterações complexas, onerosas e profundas […] Segundo, meios de intervenção insuficientes para fazer face, com expectativas definidas de sucesso, às exigências práticas da situação[…] A esse respeito, o Brasil está em posição análoga à dos demais países subdesenvolvidos, a qual conduz ao mais completo e perfeito círculo vicioso que a mente humana pode conceber."

Já em 1954, em um texto denominado "A educação como fator de integração política", Florestan aborda o problema da perspectiva do estabelecimento de uma ordem social democrática no país e o papel da educação neste processo:

"[…] a intervenção do Estado, com propósito definido de ajustar o sistema educacional brasileiro às necessidades mais urgentes da vida política nacional, poderia alcançar dois efeitos presumíveis. Primeiro, criar condições dinâmicas essencialmente favoráveis à transição de uma ordem democrática incipiente para uma ordem democrática plenamente constituída (…). Segundo, concorrer ativamente para que essas condições dinâmicas se reproduzam similarmente, provocando efeitos socializadores relativamente uniformes, nos diferentes tipos de comunidades brasileiras […] Enfim, toda a argumentação desenrolada tenta mostrar que um dos fatores que prejudicam o desenvolvimento da democracia no Brasil é a persistência de uma mentalidade política arcaica, inadequada para promover ajustamentos dinâmicos não só a situações que se alteram socialmente, mas que estão em fluxo contínuo no presente. A contribuição que a educação sistemática pode oferecer para alterar semelhante mentalidade exprime, naturalmente, as tarefas políticas que ela pode preencher em uma esfera neutra. O problema poderia ser encarado de outras perspectivas, como os interesses das classes sociais, as afiliações partidárias, os conflitos sociais em uma sociedade em mudança para nova forma e organização econômica, etc. Limitamo-nos à relação escolhida, entre o sistema educacional como um todo e as necessidades educativas de uma comunidade política nacional porque ela convinha melhor à natureza do tema do presente estudo. Contudo, ao assinalarmos que a educação pode preencher funções construtivas na vida social, não pretendíamos insinuar que isso se faria independentemente da opção de outros fatores ou acima deles. Apenas acreditávamos que, assim, locarizaríamos concretamente quais são as influências criadoras que a educação poderá exercer na elaboração sócio-cultural de uma ordem social democrática no Brasil."

No início dos anos 60, com a eclosão da Campanha em Defesa da Escola Pública, Florestan Fernandes experimentou uma sorte de reencontro com seu passado. O sociólogo não estava apenas desvendando os dilemas da realidade ou colocando seu conhecimento à serviço da racionalização do sistema de ensino face às necessidades do desenvolvimento do país,

"tudo se passou como se me transformasse, de um momento para outro, em porta-voz das frustrações da revolta dos meus antigos companheiros de infância e juventude. O meu estado de espírito fez com que o professor universitário falasse em nome do filho da antiga criada e lavadeira portuguesa, o qual teve de ganhar a sua vida antes mesmo de completar sete anos, engraxando sapatos ou dedicando-se a outras ocupações […]. Nesse sentido, assumi nos debates travados uma posição análoga à que Patrocínio desempenhou nas lutas abolicionistas, descontados naturalmente os coeficientes históricos e pessoais. […] Como ele, coube-me o dever de levar ao mundo cultivado do Brasil as angústias, os sentimentos e as obsessões dos esbulhados, e honro-me ao lembrar que não trepidei, por um instante, diante dos imperativos deste dever. Professor, sociólogo e socialista – não foi de nenhuma dessas condições que extraí o elemento irredutivelmente inconformista, que deu sentido à participação que tive na Campanha de Defesa da Escola Pública".

Nos anos 60, uma série de fatores irão contribuir para uma radicalização do pensamento sociológico de Florestan Fernandes em relação ao marxismo. Um deles é a surgimento do grupo de estudos de Marx formado pela nova geração de cientistas sociais, filósofos e historiadores que Florestan Fernandes ajudara a formar. Excluído do grupo antes de tudo por sua própria posição de mestre, Florestan nem por isso ficou à margem do que estava acontecendo, como ele mesmo afirma: "Diante de um grupo orgânico de sociólogos-pesquisadores, os quais se dispunham a interpretar o Brasil e a periferia do mundo capitalista à luz de novas categorias sociológicas, que precisava refazer as minhas metas para ter o direito de continuar à testa do grupo […] Eu tinha de recomeçar, gostasse ou não, reciclando a minha concepção de sociologia e redefinindo o que eu vinha admitindo como sociólogo […] Eu era obrigado a penetrar mais a fundo na compreensão do elemento positivo intrínseco à sociologia como ciência, despojando-me, de modo crescente, de resíduos deixados por uma longa contaminação naturalista, ligada principalmente ao período de aprendizagem e aos começos de minha formação sociológica. O que fizera, no sentido de livrar-me desses resíduos, através de Mannheim, da primeira leitura de Marx e de outros autores, mostrava-se insuficiente e ia ficando cada vez mais para trás"

Longe de ver em Florestan Fernandes um adesista ao paradigma marxista proponho uma interpretação que leve em consideração a convergência de diversos fatores que o levou à maturação de um novo referencial teórico. No plano acadêmico destacam-se: a mudança da temática a partir do estudo sobre os negros e, em especial, com os projetos de pesquisa que foram desenvolvidos por meio do CESIT, colocando-o frente a frente com os problemas sociais emergentes; e as transformações na dinâmica intelectual promovida pela nova geração. No plano de suas relações com a sociedade podemos citar a participação na campanha em defesa da escola pública, que abriu espaço para a descoberta da possibilidade real do cientista social interagir com os movimentos sociais; e o envolvimento posterior, com o movimento em favor da reforma universitária. Por fim, o último elemento está vinculado à própria dinâmica do processo histórico que culminou com o seu afastamento compulsório da universidade.

Barbara Freitag defendeu em 1986 a tese da existência de uma ruptura epistemológica na obra de Florestan Fernandes. À luz deste argumento analisou a posição de Florestan Fernandes diante da universidade e da democracia nos dois momentos que caracterizariam o antes e o depois da referida ruptura, isto é, o período acadêmico-reformista e o período político-revolucionário. Sem aderir à tese da ruptura, a qual utilizei como ponto de partida para análise da trajetória política de Florestan Fernandes, gostaria de expor a síntese que a autora faz das duas fases de Florestan Fernandes, no que tange à função da universidade e sua relação com a democracia, para em seguida chegar às últimas elaborações de Florestan em seus últimos escritos sobre a reforma e a revolução na educação.

Segundo Barbara Freitag, Florestan Fernandes considerava no primeiro momento, que corresponderia ao período dos anos 40 aos anos 60, a universidade como pólo dinâmico capaz de revolucionar a sociedade. No segundo momento, após o golpe militar de 1964 e a sua exclusão da universidade, mediante o Ato Institucional nº 5, em 1968, vê na sociedade o espaço onde se originam as forças que vão acabar revolucionando a universidade. Ainda segundo a autora, na primeira fase

"Florestan atribuía à universidade dois papéis fundamentais, o da democratização das elites e o da produção de ciência e tecnologia para promover o desenvolvimento econômico e a modernização da sociedade. Acreditava que o Estado, assumindo sua função de Estado educador, poderia ser o grande agente das mudanças estruturais e institucionais, assegurando educação gratuita a todos nos três níveis do ensino, autonomia, liberdade e financiamento adequado às universidades, para que elas efetivamente se transformassem em centros de cultura, inovação científica e modernização tecnológica."

Na segunda fase, Florestan Fernandes

"desloca para fora da universidade o centro dinâmico das transformações. Passa agora a ver na revolução proletária, nos termos clássicos de Marx e Engels, a força histórica capaz de revolucionar a sociedade e de engendrar, também, nas universidades, transformações radicais no Brasil."

Embora a ênfase dada por Florestan à transformação social, seja em certa medida reformista, quando enfatiza o papel da universidade na conquista de uma verdadeira soberania nacional, e revolucionária, quando passa para o plano político mais amplo em defesa da revolução social e transformação total da universidade fundamentada em valores socialistas, podemos constatar a permanência da primeira visão no discurso político de Florestan na sessão da Câmara dos Deputados em 18/03/93:

"O Brasil é um país que importa conhecimento, tanto na área da cultura letrada, quanto na área da tecnologia avançada. […] assim como negligenciamos nossos outros problemas fundamentais, deixando que as nações dominantes, as ricas e poderosas, vendam pacotes educacionais, tecnológicos, de conhecimento científico básico, de conhecimento filosófico e pedagógico e por aí afora ao nosso país. Muitos destes conhecimentos poderiam ser descobertos aqui. Não precisaríamos mendigar a colaboração de países avançados se tivéssemos dado a atenção devida aos problemas do ensino de alta qualidade."

Na verdade Florestan Fernandes não só avançou em sua concepção sobre a educação mas também conservou suas preocupações iniciais, uma vez que considerava que as reformas republicanas, burguesas, enfim, democráticas da educação nacional ainda não haviam sido atingidas. Costumava dizer que nos anos 80 e 90 ainda lutávamos (e lutamos) por ideais republicanos do século XIX. Isso graças às elites que se colocam até hoje contrárias a uma verdadeira revolução democrática no campo educacional.

Para Florestan Fernandes isso se justifica pelo fato de as classes dominantes não poderem "ceder terreno no campo da educação escolarizada sem arriscar-se a permitir que as classes trabalhadoras, os estratos radicais ou proletarizados das classes médias ganhem acesso a técnicas de controle, de competição, de conflito que ameaçam de maneira crescente os que mandam."

A conseqüência disso é a institucionalização da exclusão por meio da educação, revelando, assim, sua faceta antidemocrática:

"O aparato institucional da educação escolarizada é, por isso, excluidor e colide com os princípios de distribuição igualitária e democrática das oportunidades educacionais. […] As portas se abrem no ensino fundamental, para se fecharem sem tréguas no ensino médio e superior. Os pobres e humildes, os estigmatizados pela raça e etnia (como os negros, os mulatos e os indígenas), os excluídos e marginalizados (como os despossuídos do campo, os favelados, os sem-teto, os prostituídos, os menores abandonados e violentados etc.), vítimas do isolamento e extrema opressão secular, sequer aprendem a necessidade e o valor da educação escolar."

Assim a resistência das elites produz a fetichização da educação:

"alardear o amor à educação desvincula-se da devoção ao ensino propriamente. A educação eclode como o seu contrário, mistificando-se, comercializando-se, alienando-se de seus fins específicos. Como um fetiche, ostenta um valor e encerra outro e ao negar suas aparências afirma um contravalor que sofre apropriações espoliativas. O circuito educacional fecha-se, assim, à imensa maioria: é uma deturpação pedagógica normal ou natural. Na cúpula do processo, que se irradia da sala de aula à escola, sobrepõe-se um aparato institucional complexo, que articula entre si a família, a empresa de ensino ou o ensino público, múltiplas instituições da sociedade civil empenhadas em aferir o valor do ensino e em aproveitar os seus produtos, e o poder público."

Todos os elementos referidos na definição do dilema educacional brasileiro feita no final dos anos 50 permanecem na análise que Florestan nos apresenta nos anos 90, confirmando sua análise de que o próprio sistema de ensino em lugar de "acelerar a difusão e o fortalecimento dos ideais de vida, consagrados legalmente, interfere no processo como fator de demora cultural."

Deste modo, continua denunciado, no plano micro, a dissociação entre conteúdos e formas pedagógicas que benefícia os "alunos favorecidos por ‘boas’ correlações entre situação social e riqueza da família e a educação como um sistema de mores e de distribuição igualitária de oportunidades educacionais." Enquanto isso, no plano macro, sintetiza o dilema em sua versão mais perversa:

"O Brasil ficou dividido entre uma geopolítica militar e uma concepção educacional tacanha, que só concedeu prioridades retóricas à educação popular. Condenou-se a ser uma nação periférica associada, presa a determinações da dominação externa, sob as diversas manifestações modernas de imperialismo. […] desterrou o homem do ser, desumanizando a pessoa […]"

Diante desta realidade Florestan Fernandes coloca para o Partido dos Trabalhadores tarefas fundamentais no plano educacional:

"O PT só pode encarar a educação de uma ótica socialista. O que quer dizer, vê-la de uma perspectiva de classe […] com isso, não se trata de conceber a educação de uma forma particularista. Ao contrário, trata-se de tomar a totalidade: educação-sociedade de classes em um dado momento histórico […] Uma visão dialética não se constrói a partir de um todo abstrato. Ela pressupõe um todo concreto, que permita apanhar as contradições como premissas empíricas." E continua: " A dominação de classe, em nosso país, envolve duas dimensões simultâneas e igualmente democráticas: uma parte do capital e uma parte (a maior) da burguesia é interna, nativa; outra parte do capital (a maior) e outra parte da burguesia é externa, estrangeira. O que a escola e a educação reproduzem é a ordem social de uma sociedade capitalista associada e dependente. A prática pedagógica conformista e corrente, que se estrutura e se dinamiza através da dominação de classe, aparece exteriormente como ‘burguesa’, porém possui uma essência imperialista."

Na última fase de sua vida, quando militou no Partido dos Trabalhadores, foi deputado constituinte e deputado federal, Florestan Fernandes substituiu o slogan "educar para uma sociedade em mudança" pelo slogan "educação para a liberdade", definindo-a como

"ruptura socialista com a exlcusão e a marginalização do proletariado na esfera do ensino […] confere prioridade à maioria real não como "objeto", mas como sujeito de atividades pedagógicas, que se voltem para os conteúdos socialistas da consciência social de classe dos trabalhadores e para a desobjetificação do trabalhador. Educação e auto-emancipação coletiva dos trabalhadores colocam-se como co-determinantes de uma relação recíproca medida pela escola e inspirada na função natural da classe trabalhadora de negar revolucionariamente a sociedade existente."

Em 1994, num depoimento sobre Fernando de Azevedo, Florestan afirma:

"feita a revolução nas escolas, o povo a fará nas ruas, embora essa vinculação não seja necessária. Na China, em Cuba, na Rússia, sem passar pela escola, o povo fez a revolução nas ruas. Mas, em um país como o Brasil é necessário criar um mínimo de espírito crítico generalizado, cidadania universal e desejo coletivo de mudança radical para se ter a utopia de construir uma sociedade nova que poderá terminar no socialismo reformista ou no socialismo revolucionário. Eu prefiro a última alternativa. Fernando de Azevedo optaria pela primeira. Ambas são alternativas que nos põem no fluxo da história, embora eu não tenha a mesma relação de vontade, de poder, que ele possuía: ser uma expressão histórica das forças intelectuais na sociedade brasileira."

No prefácio de "O Desafio educacional", escrito em 1989, Florestan Fernandes afirma que o livro é constituído de artigos que focalizam "aspectos da erupção de um vulcão que parecia extinto" e chama a atenção para o fato de que o mais importante "não é a opinião do autor, mas o contexto histórico, os problemas e dilemas educacionais, as contradições pedagógicas de uma sociedade capitalista periférica tensionada por processos históricos que requerem o socialismo." Neste momento a questão crucial é colocar os trabalhadores, excluídos e oprimidos no sistema escolar, em suas palavras:

"o principal desafio socialista na esfera educacional é ainda calibrado pelas ‘reformas burguesas da educação’, que os pioneiros não conseguiram viabilizar […] No limiar da nova era, o Brasil marcha para o socialismo ou para a fragmentação interna. A pedagogia volta a ser a chave para a decifração do nosso enigma histórico. O que a Constituição negou, o povo realizará. Mas ele não poderá fazê-lo sem uma consciência crítica e negadora do passado, combinada a uma consciência crítica e negadora do futuro. E essa consciência, nascida do trabalho produtivo e da luta política dos trabalhadores e dos excluídos, não depende da ‘educação para um mundo em mudança’, mas sim da educação como meio de auto-emancipação coletiva dos oprimidos e da conquista do poder pelos trabalhadores".

Para finalizar esta reflexão sobre o tema educação e democracia em Florestan Fernandes gostaria de lembrar a obra de Nobert Elias sobre Mozart intitulada "Mozart, sociologia de um gênio". Segundo Elias "para se entender alguém, é preciso conhecer os anseios primordiais que este deseja satisfazer. A vida faz sentido ou não para as pessoas, dependendo da medida em que elas conseguem realizar tais aspirações." A vida de Mozart é analisada como uma tragédia. A tragédia do gênio que "simplesmente desiste" diante do fracasso: "Sem dúvida alguma, [Mozart] morreu com a sensação de que sua existência social fora um fracasso. Falando metaforicamente, morreu pela falta de significado de sua vida, por ter perdido completamente a crença de que seus desejos mais profundos seriam satisfeitos". Ele simplesmente desistiu. "Os dois fatores que privaram de sentido a vida de Mozart – a perda do reconhecimento do público e o arrefecimento do afeto da esposa – ligavam-se entre si. Eram duas camadas inseparáveis, interdependentes, no sentimento de vazio que o dominou em seus últimos anos."

Sobre Florestan Fernandes poderíamos dizer exatamente o oposto: ele simplesmente resistiu! Resistiu durante toda a sua vida, é um exemplo paradigmático daqueles que, diante de todas as dificuldades e adversidades, conseguem transformá-las em forças propulsoras da superação. Sua história de vida atesta isso. Oriundo da camada mais pobre da população – ‘os de baixo’, como costumava dizer – Florestan Fernandes foi um vitorioso, um homem que conseguiu realizar, em boa medida, os seus desejos. "Florestan traz, além da noção, a práxis de uma cultura de resistência."

Isso graças à força do gênio, aquele que reúne as melhores qualidades e as desenvolve plenamente (ou quase). Se Mozart estava à frente de seu tempo, Florestan estava totalmente imerso nele, buscando no passado as raízes da explicação do presente e neste empreendendo ações voltadas para o futuro. Florestan, em sua modéstia, revelava a grandeza dos seus ideais, dizendo que tudo o que fazia parecia para ele ainda muito distante do que realmente tinha em mente. Como o que realizava sempre foi reconhecido como momumental, expoente máximo de uma dada circunstância histórica, podemos fazer uma idéia do quão grandiosos eram seus verdadeiros propósitos. Um deles, que está diretamente ligado a este debate, era o desejo de que todos os homens tivessem uma educação de qualidade que os levasse a superar a heteronomia e conquistar a autonomia moral, intelectual, criando condições efetivas de luta pela superação da miséria humana. O socialismo surge como fim, enquanto a educação ocupa a função de meio, meio revolucionário no qual a dinâmica cultural da sociedade se realiza.

* Eliana Veras Soares é Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. Autora de Florestan Fernandes, o militante solitário (1997)