Antonio Candido – prefácio livro Vale a pena sonhar
Este livro é feito com paixão discreta e sincera por um homem que pode olhar o passado, certo de que deu conta da sua tarefa muito além do que requeria o dever. E é o livro de alguém dotado de rara capacidade de viver rigorosamente conforme as suas convicções. No caso, convicções socialistas, constituídas bem cedo num processo de amadurecimento descrito nessas páginas.
Este livro é feito com paixão discreta e sincera por um homem que pode olhar o passado, certo de que deu conta da sua tarefa muito além do que requeria o dever. E é o livro de alguém dotado de rara capacidade de viver rigorosamente conforme as suas convicções. No caso, convicções socialistas, constituídas bem cedo num processo de amadurecimento descrito nessas páginas.
Educado em ambiente de sobranceria e amor à liberdade, a formação profissional na Escola Militar do Realengo levou-o a desenvolver, graças à comunhão de idéias com alguns colegas, as sementes plantadas em casa. Não espanta que na primeira guarnição para a qual foi destacado como jovem tenente de artilharia, Bagé, tenha tido a iniciativa de estabelecer um cassino para os soldados, além de lhes proporcionar cursos de formação paralela. Coisas assim mostram que antes de ser formalmente socialista ele já tinha os sentimentos básicos que nutrem o socialismo e se manifestaram quase naturalmente, pois é filho de um pai que, ainda cadete, se dispôs quixotescamente a lutar com outros camaradas ao lado do Chile, ferido na sua dignidade nacional por atos do colonialismo inglês.
Nesse terreno bem preparado, o movimento da Aliança Nacional Libertadora, em 1935, foi uma espécie de catalisador que o encaminhou para as posições políticas de vanguarda. E o jovem tenente nada mais fez do que assumir a conseqüência normal de um modo de ser e de inclinações que, de um lado o tornavam “aos olhos dos superiores um oficial dedicado e assíduo” e, de outro, o faziam sentir de maneira profunda a solidariedade em relação aos menos bem postos na vida: “minha mais estreita convivência dava-se com a massa dos subalternos, diz a certa altura”.
A solidariedade humana animou toda a vida de Apolonio de Carvalho, levando-o a compreender a situação dos que são manipulados e impedidos de assumir o seu papel histórico de agentes no processo social; e também a sentir, dentro dos movimentos e partidos de esquerda, o arbítrio das cúpulas nem sempre afinadas com a conjuntura. Um exemplo: embora ativista da Aliança Nacional Libertadora, não trepida em assinalar o alheamento desta à vontade popular e sua tendência negativa para se orientar pela liderança de pequenos grupos, que não atentavam para o “estágio político e a diversidade da consciência do povo”. Neste sentido, diz que o Partido Comunista, ao qual acabara de aderir, se afastava naquele momento da realidade do país e das suas próprias possibilidades de triunfo na luta revolucionária.
Reflexões como estas indicam uma constante no pensamento e na ação de Apolonio de Carvalho: a fidelidade às perspectivas democráticas e a desconfiança das pressões arbitrárias de cúpula. Foi com este espírito que aderiu ao Partido Comunista e adotou as teorias marxistas, que lhe permitiram dar “contorno e conteúdo à paixão de mudar o mundo”, como escreve. Esta bela fórmula, que resume a sua vida, abre a narrativa das fases heróicas que a caracterizam e constituem o cerne do presente livro: guerra civil espanhola, resistência francesa, luta contra a ditadura militar brasileira. Eu diria que, até essa altura do livro, o leitor vai tomando conhecimento dos sinais que marcaram a sua vida. A partir desse momento começam os efeitos de que esses sinais foram precursores.
De fato, a guerra civil espanhola permitiu a Apolonio de Carvalho mostrar a sua estatura de militante e combatente, capaz de associar, em proveito dos ideais, a flama da dedicação à mais perfeita competência. Não espanta que tenha sido considerado um ás entre os estrangeiros que foram voluntariamente ajudar o povo espanhol a lutar contra uma das tiranias mais retrógradas que o século conheceu. O leitor deste livro verá como atuou com fervorosa inspiração, mas com extremo equilíbrio e domínio de si mesmo, ao lado das milícias populares e do exército regular, que (para citar palavras suas) “num ambiente de ideal e poesia, marcaram a fase propriamente épica da guerra civil, a mais formosa das gestas populares deste século”.
A narrativa de sua atuação na Espanha e depois na resistência francesa é feita de maneira clara e direta, numa escrita que adere ao pensamento sem refolhos, de perfeita sinceridade, correspondendo à firmeza das convicções e temperada por pitadas constantes e oportunas de bom humor. Ele é mesmo um homem que “tem a paixão de mudar o mundo”, e a isto consagrou a vida de militante dotado de profundo humanismo, incompatível com a adesão mecânica e, por isso, capaz de sentir o tempo todo as desarmonias, por vezes terríveis dentro da esquerda, as deformações do sectarismo e falta de fraternidade revolucionária que tanto atrapalharam a luta dos republicanos espanhóis. Cumprindo rigorosamente as tarefas que lhe atribuíram ou que ele inventou, tanto na guerra civil como na resistência, destaca-se a sua integridade de militante convicto, dotado do mais profundo sentimento de solidariedade, que o torna um real companheiro, em comunhão com os outros fortes que partilhavam da sua ação.
Ao contato da palavra de um homem desses nós podemos sentir a verdadeira dimensão da luta socialista, que encheu o século XX de esperança, oferecendo algumas das mais nobres oportunidades de conduta. Portanto, oferecendo ao homem opções de grande dignidade para preencher o seu tempo de vida. Se nos situarmos no campo das decisões éticas, não das vitórias triunfais, veremos que esta circunstância não é perturbada essencialmente pelos erros da, pois a esquerda representava e representa aspirações justas , em nome das quais militantes cheios de fé, como Apolonio de Carvalho, enfrentaram no mundo inteiro as lutas mais duras contra as forças mais retrógradas. E é preciso ressaltar que os participantes de tais lutas se caracterizaram por um timbre especial de elevação, porque não se batiam tendo em vista a própria realização, não se empenhavam na solução de seu destino pessoal, mas na busca de soluções coletivas, para que todos pudessem realizar-se um dia numa sociedade transformada.
O livro de Apolonio de Carvalho, que deve ser lido com este espírito, atrai além disso pela boa qualidade da escrita e pela franqueza despretensiosa com que tudo é narrado, denotando um espírito inquieto, capaz de perceber as contradições, sujeito às dúvidas que permitem o progresso ideológico e preparam soluções mais humanas. Graças a essa posição mental ele pôde orientar-se pela objetividade da análise e pela consciência revolucionária, mais do que pela rigidez das palavras de ordem. Assim foi na Espanha, como na França e no Brasil. E, longe de o paralisar, tal posição o levou à constância do militante que não desiste de lutar pelo ideal que um dia se tornou alvo de sua vida.
Por isso, é alentador verificar que esse militante incansável e intemerato não apenas soube renovar as fórmulas de compromisso com a transformação social, mas mantém firmes as convicções socialistas, que no momento são objeto de tanta tergiversação. Apolonio de Carvalho mostra pelo exemplo, pelas idéias, pelas opções que o socialismo é um movimento vivo, sujeito a reajustes, é claro, mas representando o que há mais alto na luta do homem para humanizar a vida. Sem o socialismo, sem outras modalidades de luta pela justiça, como o sindicalismo e o cristianismo social, o que teria sido o mundo capitalista no século passado e neste? Digo isto para lembrar que mesmo sem tornar-se fórmula política dominante neste ou naquele país, o socialismo tem sido nesses quase dois séculos força corretiva que, ao lado de outras, forçou o capitalismo a assumir formas menos insuportáveis.O que se procura freqüentemente apresentar como a “face humana” do capitalismo não é produto da sua lógica interna. É um fruto arrancado por meio de sacrifícios sem conta, de combate sangrento, de miséria revoltada que arrebata concessões, permitindo um mínimo de condições toleráveis para a massa de dominados. Nesse processo o socialismo é uma das forças mais vivas, que marca presença mesmo nos países aparentemente alheios a ele, porque enfrenta sem cessar a exploração do homem pelo homem.
Pensando nessas coisas senti a força das palavras finais de Apolonio de Carvalho, a quem a vida confere uma autoridade única para afirmar a vitalidade das idéias socialistas, às quais se dedicou com uma bravura e uma lucidez que o leitor poderá verificar nesta fascinante narrativa autobiográfica.
*Antonio Candido, professor emérito da USP, é presidente do Conselho Editor da Editora Fundação Perseu Abramo.