Não se fazem jovens como antigamente?
“A juventude real precisa criar um novo dispositivo que lhe dê visibilidade. Precisa descobrir como representar-se em primeiro lugar diante de si mesma, e depois para o mundo.”
Por Maria Rita Kehl*
A paisagem humana do 5º Fórum Social Mundial é uma paisagem de jovens. Eles são presença majoritária em quase todas as platéias e objeto de diversos debates, pelo menos no espaço das Diversidades. Em um certo sentido, o Fórum parece feito para eles: é um evento para mochileiros, para acampadores, para easy riders generosos, ideal para quem ainda suporta bem o calor, a comida ruim, a cerveja quente e o desconforto. Mas a presença jovem, a não ser quando associada ao equipamento infernal dos carros de som que procuram promover “diversão” atravessando o espaço aéreo dos diálogos, tem sido silenciosa. São jovens “em si”, não jovens “para si”.
Os adultos que criaram os Fóruns foram jovens em uma época muito singular. Nos anos 1960/70, uma geração inventou a si mesma e selou o conceito de juventude nos países industrializados. Não fizeram isso tão sozinhos quanto se supunha: a primeira grande onda global, promovida pela expansão da Indústria Cultural – que ainda não era dominada pela televisão, e sim pelo cinema e pela florescente indústria fonográfica – participou da expansão festiva e disruptiva da geração do flower power e dos movimentos estudantis. Hoje, esta geração tenta dizer a seus filhos, alunos e orientandos quem eles deveriam ser. Esperam que os adolescentes levem adiante suas utopias, sua atitude contestadora, e chamam de conformistas os que não se sensibilizam pelos ideais criados por seus tutores. O que produz um paradoxo, pois, se ainda faz sentido falar em choque entre gerações, os filhos da geração 68 podem perfeitamente desafiar seus pais tornando-se consumistas e votando para eliminar a Juju ou o Totó no Brother Brasil – por que não?
Mas não; eles não são assim. Ou pelo menos, não são só assim. Acontece que os jovens hoje são antes objeto do discurso dos adultos do que sujeitos de um discurso próprio. Pudera: o que quer que eles tenham a dizer é imediatamente captado pelas pesquisas de marketing e devolvidos a eles na forma de imagens publicitárias. O desafio que se coloca para os jovens da terceiro milênio é o de produzir um campo de identidades que pelo menos se diferencie um pouco da bobeira aeróbica da novela Malhação, ou da festa sem fim dos comerciais de Brahma e Coca-Cola.
Mesmo porque, não é esta a realidade da maioria dos jovens brasileiros. Uma pesquisa cuidadosa levada a cabo pela Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, revela um perfil ideológico do jovem brasileiro muito diferente do das imagens publicitárias, mas também das gerações precedentes. Não é a revolução, mas o desemprego que preocupa a maioria dos entrevistados. Em segundo lugar, a violência. Por isso mesmo, não estão interessados em destruir as velhas instituições mas, ao contrário, talvez precisem desesperadamente de alguma instituição em que possam confiar. Tanto que o valor mais importante para a grande maioria, em uma lista de 18 opções, foi o temor a Deus. E a família é vista como a instituição mais confiável. Conservadorismo? Até certo ponto, sim. Mas é preciso considerar que a falta de segurança, em todos os sentidos, domina o horizonte dessa geração.
Talvez por essa mesma razão a maior parte dos entrevistados declare participar de algum tipo de agrupamento religioso, e – pasmem! – a missa, ou o culto evangélico, sejam citados com destaque entre as atividades preferidas dos finais de semana. Mas as aparências enganam: os poucos que se disseram ateus – só 1% do total – não são os mais ativos politicamente. São os mais desencantados, disse a pesquisadora Regina Novaes. A participação em atividades ligadas às diversas igrejas é que coincide estatisticamente com a participação política dos entrevistados. Isso mostra que uma disposição militante não nasce em terra devastada. É preciso pertencer a algum lugar, contar com alguma referência social estável, pisar em algum chão firme para tomar um impulso de vôo.
De minha parte, penso que a televisão, que é a grande produtora de referências para grande parte da população brasileira, não dá conta da função papel. A televisão é uma referência ao mesmo tempo onipresente e dispersiva. Ela apresenta um mundo descentralizado, no qual a mercadoria oferece-se o tempo todo, mas não produz nenhum sentido a não ser o do ato imediato, de puro alcance simbólico, do consumo.
A juventude real precisa criar um novo dispositivo que lhe dê visibilidade. Precisa descobrir como representar-se em primeiro lugar diante de si mesma, e depois para o mundo. Pois esta juventude interessada, bem intencionada, inquieta e dispersiva que enche as salas e os gramados desse quinto Fórum Social Mundial não tem um discurso próprio. Ela ignora a si mesma de maneira diretamente proporcional à sua identificação com a superabundância de imagens que lhes são apresentadas pelos gestores do espetáculo.
*Maria Rita Kehl, psicanalista, ensaísta e poeta, é autora do livro “A mínima diferença – o masculino e o feminino na cultura”.
Artigo Publicado na Agência Carta Maior, 30/01/2005