Lula gasta menos que FHC, segundo Marcio Pochmann
A força da visão ideológica neoliberal
Políticas sociais
Muitas vezes, a crítica de que o governo Lula perdeu o controle do gasto público não se sustenta à luz da realidade. Basta fazer a simples comparação entre o conjunto de despesas dos dois últimos anos do governo FHC com os dois primeiros da atual administração.
Uma nova etapa no campeonato nacional de oposição ao Estado brasileiro foi recentemente aberta. Nos últimos meses, a visão anti-Estado tornou-se bem mais virulenta com o destampar de críticas ao governo Lula, justamente em decorrência ao que se chamou pejorativamente de farra dos gastos públicos.
Em grande parte das vezes, têm sido versões que quase nada se sustentam à luz da realidade. O que se identifica, por exemplo, como sendo farra do gasto público, desfaz-se rapidamente diante da simples comparação entre o conjunto de despesas dos dois últimos anos do governo FHC com os dois primeiros anos de governo Lula. Entre 2003 e 2004, o governo Lula apresentou uma despesa total média anual de 468,7 bilhões de reais, enquanto o governo FHC, entre 2001 e 2002, terminou comprometendo o valor médio anual de 477,8 bilhões de reais. Ou seja, as contas públicas do governo Lula foram 1,91% menores do que as de FHC, quando atualizadas pela inflação.
Há ainda as velhas e recorrentes críticas ao apelo efêmero do “absurdo” gasto com pessoal. Também aqui não há como prosperar, por hora, qualquer consistência que resista à luz da realidade. Nos dois últimos anos do governo FHC, por exemplo, a despesa com funcionário público foi de quase 96 bilhões de reais. Nos dois primeiros anos do governo Lula, o gasto com o funcionalismo público conseguiu ser, por incrível que possa parecer, 21,8 bilhões de reais a menos, atingindo apenas R$ 74,1 bilhões.
Frente ao corte de quase 23% no total das despesas de pessoal entre 2003 e 2004, torna-se difícil compreender a crítica contra o gasto público federal. Mas, mesmo assim, prossegue a febre anti-Estado, sinalizada pela constatação de que os municípios brasileiros teriam contratados 630 mil novos funcionários durante os três últimos anos do segundo governo FHC.
Com o maior número de funcionário público, o conjunto de municípios brasileiros passou a ter, em média, um servidor municipal a cada 42,3 habitantes. Acrescentando-se a isso, a parte de funcionários referentes às esferas estaduais e federal, o Brasil passou a ter cerca de um empregado do Estado para cada 20 habitantes.
Se comparado com outros países, o Brasil teria ainda muito que avançar. Na França, por exemplo, há menos de 9 habitantes para cada um servidor público, enquanto na Inglaterra a relação é de 1 para 16.
Se considerada a quantidade de empregados públicos em relação à população ocupada, a discrepância é ainda mais elevada. Enquanto o Brasil possui 1 empregado público a cada 10 ocupados, países como Estados Unidos e Inglaterra possuem a mesma relação de 1 servidor público para cada 6 ocupados e na França e Itália, a situação seria de 1 para 4.
Insatisfeitos com a realidade tal como ela se apresenta, sobram para alguns representantes dos interesses privados, as críticas em relação às despesas comprometidas com a contratação de serviços terceirizados. De fato, a reforma trabalhista branca que ocorreu no Brasil desde 1990 apontou para a substituição de empregados públicos por terceirizados do setor privado.
No município de São Paulo, por exemplo, a privatização do serviço público foi levada ao limite durante os anos 90. Praticamente, quase tudo foi terceirizado, da segurança ao transporte de pessoal, passando pela limpeza, varrição, conservação, fiscalização e até cobranças. Assim, a capital paulista, com quase 11 milhões de habitantes, passou a dispor de menos de 140 mil funcionários ativos municipais, com cerca um empregado público local para cada 80 habitantes.
Em contraposição, na capital mexicana há um funcionário público municipal a cada 24 habitantes. Apesar de possuir menos habitantes que a capital paulista, a cidade do México detém 2,5 vezes mais servidores municipais, descontando-se ainda o fato de que os professores da rede pública que atuam na capital mexicana pertencerem à esfera federal.
Se analisada com cuidado a evolução do gasto com terceirizados no governo Lula percebe-se uma leve expansão no que diz respeito às chamadas outras despesas correntes. Nos dois primeiros anos do governo Lula, esse tipo de gasto foi 4% maior do que o verificado nos dois últimos anos do segundo governo FHC.
Nesse caso, justifica-se plenamente a ampliação dos concursos públicos para que seja possível interromper a verdadeira farra da privatização do Estado brasileiro imposta pelos anos de chumbo do neoliberalismo. A despeito disso, há sempre aqueles que procuram amenizar a dilapidação do Estado no Brasil desde 1990, utilizando-se do argumento de que houve, simultaneamente, o aumento da carga tributária e do gasto público.
Dessa forma, não haveria como identificar a presença do neoliberalismo no Brasil. Esquecem-se, todavia, que a natureza do neoliberalismo não está dada pela dimensão da arrecadação e do gasto público, conforme ocorria no século 19, diante do chamado Estado mínimo.
Nos dias de hoje, o neoliberalismo pressupõe a presença de um Estado com um forte papel de mobilização e concentração do excedente econômico. Ao contrário do Estado social-democrata, cuja função dos fundos públicos era de fortalecer o compromisso com o pleno emprego e favorecer a igualdade de acesso aos serviços universais de bem estar social, observa-se que, sob o neoliberalismo, o Estado utiliza-se cada vez mais do seu poder fiscal para arrancar recursos de camadas pobres da sociedade para poder assumir a condição de mero repassador de recursos a determinados segmentos privilegiados do setor privado.
No Brasil, o aumento da arrecadação tributária se deu justamente em cima da população mais pobre, em função da estrutura regressiva de absorção fiscal, enquanto o aumento do gasto público ocorreu progressivamente maior para os mais ricos. Nesse sentido, os dois primeiros anos do governo Lula não diferiram muito dos dois últimos anos do governo FHC, uma vez que os pagamentos com serviços decorrentes do endividamento público permaneceram em torno de 8,3% do Produto Interno Bruto (PIB) como média anual.
Por concentrar 4/5 do total da dívida pública em apenas 20 mil clãs de famílias muito ricas, o Estado não deixa de contribuir fortemente para a maior desigualdade de renda. Mesmo com os avanços dos recentes programas de garantia de renda, que atualmente chegam a transferir 0,4% do PIB a quase 8 milhões de famílias muito pobre, o país está muito longe do gasto público adequado e eticamente decente.
* Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp. Foi secretário do Trabalho na gestão de Marta Suplicy (PT) na Prefeitura de São Paulo (2001-2004).
Artigo publicado em 20/04/2005, em www.agenciacartamaior.com.br