Nós mobilizamos mais de três centenas de milhares de militantes realizando assembléias em todas as regiões do país, debatendo publicamente os graves problemas do partido e expondo nomes para compor uma nova direção, numa demonstração de força que surpreendeu nossos aliados.

Por Hamilton Pereira*

Na primeira metade do século XX, Mário de Andrade escreveu o verso da diversidade. Da vocação multitudinária que carregamos na laboriosa construção de uma cultura que ainda não encontrou os códigos de sua plena expressão. Um verso que me acompanhou em muitos momentos durante a tormenta de 2005: “Eu sou trezentos/eu sou trezentos e cinqüenta…”

Herdeiro das mais distintas vertentes das esquerdas do país, o PT contribuiu fortemente para incluir na dinâmica da vida dos partidos brasileiros o mais saudável, talvez, dos elementos formadores da cultura sindical que lhe deu berço: o respeito à vontade da assembléia. Antes da emergência do PT na vida política aqui em Pindorama, os partidos políticos – mesmo dentro da tradição da esquerda – carregavam uma forte marca de caciquismo e centralismo na tomada de decisões. Herança que o próprio PT não conseguiu superar inteiramente, como revelaram os fatos ao longo do ano passado.

Muitos de nós, durante os debates sobre a crise que nos humilhou diante do Brasil nos perguntávamos: mas em nome de quem falaremos agora ao país? Em nome de que sonhos e esperanças? Em nome de qual projeto de nação? Em nome de que classes, setores ou segmentos sociais? A melhor resposta – demorada, sofrida, árdua, mas vigorosa – pelo que revelou para dentro e para fora, nos foi dada pela militância do PT no momento das eleições diretas para a direção nacional, em outubro. Para os dirigentes, ainda sob o impacto das denúncias e da confusão política que se estabeleceu em razão da gravidade da crise veio o recado: “aqui estamos e não abriremos mão da história que construímos nesse quarto de século de lutas. Queremos recuperar o espaço de participação nas decisões partidárias”; para nossos companheiros dos movimentos sociais e da intelectualidade e aqueles que sempre partilharam das nossas lutas com solidariedade e simpatia e indagavam, no esforço de compreender as raízes da crise, para além do linchamento público promovido pela mídia, veio outro: “há reservas de energia social e política acumuladas ao longo de décadas, suficientes para defender o governo Lula e o que ele significa para as grandes maiorias dos trabalhadores, no sentido de combater as desigualdades sociais, retomar a perspectiva de desenvolvimento ecologicamente sustentável e socialmente justo e fazer frente ao apetite da direita de voltar ao centro do governo por meio do golpe ou pela via democrática eleitoral, para retroceder ao modelo privatista e concentrador de renda e de riqueza.” Podemos afirmar que a direita brasileira mesmo tendo montado um impressionante aparato de poder midiático de controle social e “hegemonia das idéias”, não conseguiu traduzir aquele aparato em mobilização social concreta capaz de ir às ruas e interpelar o governo democrático e derrubá-lo como alguns setores chegaram a explicitar em alguns momentos.

Podemos, por outra parte, afirmar que o Partido dos Trabalhadores foi salvo por sua militância em 2005. A realização do Processo de Eleições Diretas sob o fogo sem tréguas da direita revelou o desassombro de um partido que teve expostas suas vísceras, mas não permitiu que lhe quebrassem a espinha dorsal e não abriu mão do lugar conquistado na cena política do país. Alguns imaginaram que era hora do tiro de misericórdia na mais vigorosa construção política que as esquerdas brasileiras erigiram ao longo da nossa história. Que estavam dadas as condições para “acabar com essa raça” para utilizar a expressão de um notório senador habituado a falar como se estivesse no ambiente ideológico de certa cervejaria de Munique, dos anos vinte…

É evidente que não podemos comparar os métodos que praticamos nos processos internos do PT com os demais partidos. Os tucanos escolhem seus dirigentes numa reunião entre meia dúzia de patrícios. Eles herdaram esse método da tradição oligárquica que receberam da direita e a fizeram sua. Nós mobilizamos mais de três centenas de milhares de militantes realizando assembléias em todas as regiões do país, debatendo publicamente os graves problemas do partido e expondo nomes para compor uma nova direção, numa demonstração de força que surpreendeu nossos aliados, nossos adversários e frustrou nossos inimigos de primeira hora que, vinte e cinco anos depois, ainda não engoliram a existência do PT na cena política do Brasil.

Mas, é evidente também que os vinte e cinco anos do PT encerraram um ciclo. Nesse 10 de fevereiro, quando alcançamos os 26 anos sob o impulso renovador do PED, temos de estar à altura de desafios que superem o marco do empirismo e da intuição que nos caracterizou ao longo do período anterior. O PT sem se afastar do que acumulou com sua grande pragmática para utilizar a expressão do companheiro Juarez Guimarães, deve avançar para apresentar ao país uma proposta programática que estabeleça com clareza as diferenças entre o que propõe a direita articulada no PSDB-PFL-MÍDIA CONSERVADORA e o que os socialistas democráticos oferecem para o país a partir das conquistas alcançadas no primeiro governo Lula. Uma proposta programática que estabeleça com igual clareza nossas diferenças com os nossos aliados para que possamos reunir as condições necessárias para compor um Bloco Histórico capaz de sustentar um processo de transformações sociais de longa duração. Transformações que incorporem os elementos fecundos do nacional desenvolvimentismo, que realizem, na gestão do estado, a crítica aos fundamentos do modelo neoliberal, recuperando as funções republicanas do espaço público e que apontem para a produção de uma síntese capaz de supera-los e abrir uma nova etapa histórica de desenvolvimento para o nosso país. É para essa tarefa que os socialistas democráticos do Brasil organizados no Partido dos Trabalhadores devem voltar seus esforços na preparação do Encontro Nacional marcado para fim de abril e III Congresso previsto para 2007.

Nesses 26 anos o reconhecimento e o aplauso devem se dirigir ao maior patrimônio que o PT erigiu ao longo de sua história: sua militância. É para ela que devolvo os versos que dela vieram e o poeta simplesmente organizou:

…em que fragmento se oculta agora
a verdade da estrela que acendemos
no coração da tempestade?

Ou já não importa a verdade da estrela antiga?
Para que serve afinal a verdade da estrela antiga?
A verdade da estrela antiga se multiplica
na vasta quinquilharia rejuntada com resinas
de sonhos que não se renderam.
E brilha com uma luz espantada,
recolhida na eterna tensão
entre um e outro fragmento de sonho
capaz de capturar a força oculta
que os olhos dos inimigos não decifram
.”


*Hamilton Pereira (Pedro Tierra) é presidente da Fundação Perseu Abramo
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