As mulheres brasileiras no início do século 21 – artigo de Gustavo Venturi e Marisol Recamán faz parte do Relatório Direitos Humanos no Brasil 2005
Por Gustavo Venturi* e Marisol Recamán**
Discriminação racial e desequilíbrios regionais: o perfil da desigualdade social
Os traços que definem o perfil sociodemográfico da mulher brasileira logo desautorizam o uso do singular, uma vez que os indicadores médios, em si ruins, tornam-se dramáticos em alguns segmentos da população feminina. Se no momento da coleta dos dados(2) ¾ das brasileiras (76%) viviam em domicílios com renda mensal até 5 salários mínimos (sendo 42% com até 2 s.m.) e somente 8% passavam dos 10 salários, entre as residentes no Nordeste 86% viviam em famílias com até 5 salários e em apenas 5% a renda mensal ultrapassava os 10 salários; entre as mulheres que cresceram e ainda viviam no campo, 93% tinham renda familiar até 5 salários mínimos e só 1% acima de 10 salários mínimos. Se entre as brasileiras com ascendência racial branca, 2/3 tinham renda familiar até 5 salários (67%), entre a maioria com ascendência negra e branca ou só negra, respectivamente 82% e 87% viviam em domicílios com até 5 salários/mês. Se entre as mulheres brancas 11% tinham renda familiar acima de 10 salários, entre as brasileiras negras apenas 2% chegavam a essa faixa de renda por domicílio.
Nacionalmente, 2/3 das mulheres não passaram do ensino fundamental (66%), mas entre as brancas essa taxa é de 62%, contra 82% entre as negras e 84% entre as mulheres que cresceram e vivem no campo; se apenas 7% das brasileiras chegaram ao ensino superior, entre as brancas 9% atingiram o 3o grau, contra 5% das que têm ascendência branca e negra, somente 2% das negras e 1% das que moram no campo. No nordeste 43% das mulheres não passaram da 4ª série fundamental e apenas 4% chegaram ao ensino superior, enquanto no sudeste essas taxas são, respectivamente, de 37% e 7%.
Outra evidência da desigualdade que demarca fortes diferenças entre as brasileiras pode ser observada no domínio de computador e no acesso à Internet. Ao final de 2001, 28% das mulheres já tinham usado computador – 9% afirmaram usar sempre e 19% disseram ter usado algumas vezes -, contra 72% que nunca tinham usado, sendo que 10% não tinham sequer visto um computador de perto. Em relação à rede mundial, apenas 14% já tinham usado (9% algumas vezes, 5% usavam sempre), sendo que 30% afirmavam ainda não saber o que é a Internet.
Trata-se, naturalmente, de fenômeno que apresenta claro contraste geracional: entre as adolescentes (15 a 17 anos), embora metade nunca tivesse usado um computador (48%) e ¾ nunca tivessem acessado a Internet (77%), apenas 5% nunca tinham visto um computador de perto (13% usavam sempre) e 21% não sabiam o que é a Internet – taxas gradualmente piores a cada faixa etária seguinte. Mesmo no segmento entre 35 e 44 anos, que apresenta o maior índice de inserção de mulheres na População Economicamente Ativa (67% na PEA), 77% nunca tinham usado um computador (9% ainda não tinham visto um de perto, apenas 8% usavam sempre) e 29% não sabiam o que é a rede mundial. E entre as brasileiras mais velhas (60 anos ou mais), 98% nunca tinham usado um computador, 23% sequer tinham visto um de perto e 57% não sabiam o que é a Internet.
Mas gerações à parte, as desigualdades regionais, de raça e de classe social, outra vez se fazem presentes: o uso freqüente do computador atingia 11% das mulheres no sul do país e 15% das residentes nas capitais, contra 5% das mulheres no nordeste e 2% das residentes no campo; chegava a 12% das mulheres com ascendência branca e a 39% das brasileiras com renda familiar mensal acima de 10 salários mínimos, contra 7% das mulheres com ascendência branca e negra e 5% só negra, e a apenas 1% das mulheres com renda familiar até dois salários. Em outubro de 2001 já tinham navegado alguma vez pela Internet 16% das mulheres do sudeste, 24% das residentes nas capitais, 17% das brancas e 60% das brasileiras com renda familiar acima de 10 salários; contra 8% das mulheres do nordeste, 3% das residentes no campo, 4% das negras e 2% das mulheres com renda familiar até dois salários.
Em suma, mais que a mulher brasileira, os dados de perfil das entrevistadas logo evidenciaram que existem mulheres brasileiras, oriundas de – e vivendo em – realidades sociais bastante distintas. Herdeiras de quinhões muito desiguais de recursos materiais e simbólicos, era de se esperar que tanto sua leitura do passado e do presente, quanto suas opções de vida e expectativas em relação ao futuro, estivessem influenciadas por visões de mundo muito diferentes. De fato estão, mas como se verá, partilham também fortes traços de uma identidade comum de gênero.
Discriminação no mercado de trabalho, dupla jornada e violência conjugal: a identidade de gênero
Transversais às diferenças resultantes das desigualdades regional, de classes e racial que estruturam as relações sociais no país, as experiências cotidianas de discriminação e opressão que as mulheres brasileiras compartilham conferem-lhes uma identidade de gênero comum a sua condição feminina – experiências presentes tanto nos espaços público do mercado de trabalho e da política, quanto na vida privada, onde se desvendam as faces mais violentas do machismo enraizado na cultura nacional.
De fato, a conquista inerente à participação crescente das mulheres no mercado do trabalho remunerado – positiva ao refletir avanços em sua busca por autonomia – tem sido relativizada por três fatores: a qualidade dessa inserção, a fraca contrapartida da participação masculina na divisão do trabalho doméstico e, muitas vezes, a reação masculina violenta à desestabilização – ou ameaça de – do modelo do pátrio poder nas relações conjugais.
No momento da coleta dos dados, pouco mais da metade das brasileiras (53%) pertencia à População Economicamente Ativa: 40% estavam fazendo algum trabalho remunerado e outras 12% estavam desempregadas. Das que estavam fora da PEA (47%), a maioria já tinha feito trabalho remunerado (31%), apenas 17% nunca tinham entrado no mercado.
Indagadas se pudessem escolher livremente, se prefeririam “trabalhar fora e dedicar-se menos à casa e à família”, ou “dedicar-se mais à casa e à família, deixando o trabalho fora de casa em segundo lugar”, a maioria opta pela autonomia (55%), em detrimento do papel de gênero tradicional (38%). Essa opção majoritária pelo trabalho remunerado ocorre tanto entre as que estão na PEA (59% a 34%, chegando em 65% a 30% entre as desempregadas), quanto entre as que estão fora da PEA (51% a 42%), inclusive entre as que nunca trabalharam remuneradamente (59% a 35%); é majoritária ainda, não só entre as mulheres sem filhos (72% a 22%), solteiras (71% a 24%) ou descasadas (59% a 30%), mas também entre as que têm filhos (50% a 43%), ainda que morem com parceiro e filhos menores de 18 anos (51% a 43%). A opção pelo papel tradicional da mulher aumenta com a idade, como era de se esperar, atingindo a maioria apenas entre as mulheres com 60 anos ou mais (37% a 52%), as aposentadas (37% a 53%) ou as que não freqüentaram escola (39% a 54%) – que são segmentos superpostos, em boa medida coincidentes.
Portanto, a experiência da maioria das brasileiras no mundo público do trabalho, por um lado, é a expressão da vontade dessa maioria. Mas a pesquisa também confirmou a predominância do caráter precário da inserção das brasileiras na PEA. Das (40%) que estavam exercendo trabalho remunerado, quase 3/5 (57%) estavam no mercado informal, sobretudo como autônomas irregulares (35%) ou como assalariadas sem registro profissional (15%), enquanto menos da metade (42%) estava no mercado formal, principalmente como assalariadas registradas (22%) e funcionárias públicas (15%).
Com jornada média de 33 horas e 41 minutos na semana que antecedeu a pesquisa (38h55 no mercado formal, 29h49 no informal), cerca de 2/3 declararam trabalhar com regularidade, enquanto 1/3 fazia bicos ou trabalhos temporários. Somada a outras rendas eventuais, com seu trabalho remunerado 2/3 tiveram renda individual até 2 salários mínimos no mês anterior à coleta de dados (65%), sendo 40% um salário ou menos – faixa em que estavam 59% das trabalhadoras no mercado informal, 62% das residentes no Nordeste, 75% das adolescentes, 76% das que não freqüentaram escola, ou 60% entre as que não passaram da 4a série fundamental; 47% das trabalhadoras negras e 45% das com ascendência negra e branca, contra 33% das brancas.
Além desse retrato ruim – pior que o dos homens qualquer que seja o segmento focado, como demonstram dados do Censo 2000, do IBGE – a segunda questão a relativizar a conquista obtida pelas brasileiras com sua participação crescente no mercado de trabalho é a debilidade da contrapartida masculina na divisão do trabalho doméstico.
Resultado de sua participação na PEA, cerca de 1/3 dos domicílios (32%) tem uma mulher como principal responsável pelo sustento da casa(3), enquanto em 2/3 o principal responsável é um homem (66%). No momento da coleta dos dados, 21% das entrevistadas eram as principais provedoras, em 7% dos domicílios suas mães e em 4% outras mulheres residentes (em 12% dos domicílios em que havia mulheres não havia nenhum homem, incluindo 3% que moravam sozinhas).
Entre as casadas ou amigadas (57% das brasileiras), 87% residem em domicílios em que o principal provedor é um homem (em 83% são seus parceiros) e 12% em que a principal responsável pelo sustento é uma mulher (em 9% dos casos, a própria). Outras 36% são provedoras auxiliares, o que totaliza a participação na renda familiar de 45% das mulheres com parceiro. Uma vez que entre os parceiros, outros 10% são provedores auxiliares, chega-se a 93% de participação masculina, contra 45% de participação feminina, como responsáveis pelo sustento nos domicílios brasileiros em que há casais coabitando.
E como é a divisão no trabalho doméstico? Em 96% dos domicílios em que residem mulheres, uma mulher é a principal responsável pela execução ou orientação dos afazeres domésticos. Três em cada quatro entrevistadas (75%) informaram ser as principais responsáveis pelo trabalho não remunerado (em 14% dos domicílios são suas mães) e 18% declararam-se auxiliares, atingindo 93% de participação nas tarefas domésticas. Entre as 43% brasileiras sem cônjuge, 54% são responsáveis diretas pelos trabalhos domésticos (em 30% dos casos suas mães) e 35% são auxiliares, somando 89% de participação. Entre as que coabitam com marido ou parceiro, 91% são as principais responsáveis e 6% são auxiliares, subindo a participação para 97%.
Em contrapartida, em apenas 2% dos domicílios em que há mulheres o trabalho doméstico é chefiado por algum homem (1% o parceiro, 1% outro residente) e em apenas 19% os homens auxiliam nessas tarefas (sendo 10% os parceiros). Nas unidades familiares em que casais coabitam, 2% dos parceiros são os principais responsáveis pelo trabalho doméstico e 18% auxiliam. Temos, então, uma participação masculina em apenas 20% dos casos, contra a participação feminina quase absoluta (97%) na execução dos afazeres domésticos.
Em suma, entre os casais brasileiros, se quase a totalidade dos homens são provedores (93%) e praticamente a totalidade das mulheres executam ou chefiam as tarefas domésticas (97%), quase a metade das mulheres também é provedora (45%), contra apenas 1/5 dos homens que participa do trabalho doméstico (20%). Esse grau de desigualdade na divisão sexual do trabalho social torna evidente como o peso da dupla jornada, com o acúmulo dos trabalhos remunerado e não remunerado tem recaído sobre as mulheres que, por vontade ou necessidade, avançaram em direção a sua autodeterminação.
E qual seria o tamanho da dupla jornada? Indagadas sobre o tempo dedicado aos cuidados da casa e da família na semana que antecedeu a coleta dos dados, as entrevistadas informaram uma jornada semanal média de 39 horas e 36 minutos (23h52 nas tarefas de limpar a casa, cozinhar, lavar e passar roupas; 13h57 no cuidado de filhos e 1h47 no cuidado de idosos e doentes). A média cai para 27h42 entre as mulheres não casadas, e sobe para 48h30, entre as que moram com cônjuge – contra, segundo estas, apenas 5h36 de seus parceiros. Para as que estavam fora da PEA, a média atinge 43h42, caindo para 35h48 entre as da PEA – sendo 27h para as que estavam no mercado formal, 35h24 para as do mercado informal (51h entre as desempregadas). Somadas às horas de trabalho remunerado, a dupla jornada aferida foi de, respectivamente, 66h para as mulheres na PEA formal e 65h para as na PEA informal.
Como todo fenômeno de opressão, no entanto, sua reprodução social não ocorreria se não contasse com a internalização dos valores e práticas dominantes, por parte dos/as oprimidos/as. Assim, mesmo tendo como maior reclamação a exploração vivida no mundo doméstico, as mulheres não deixam de expressar opiniões hegemônicas da sociedade da qual fazem parte. Se por um lado a maioria das brasileiras (87%) concorda que “homens e mulheres deveriam dividir igualmente o trabalho doméstico” (71% de concordância total, 17% em parte), ao mesmo tempo acha que a mulher deve ter a palavra final ao definir como deve ser feito (71% de concordância, 47% total e 24% em parte), e acredita que “mesmo que queiram, os homens não sabem fazer o trabalho de casa” (55%, 35% e 20%, respectivamente). Essas atitudes podem revelar uma (auto)valorização de um conhecimento adquirido no mundo feminino, um elemento importante neste momento de transição do papel social da mulher – mas podem também contribuir para reproduzir a baixa participação dos homens das tarefas domésticas.
Confirmando ainda a força da reprodução desigual dos papéis na sociedade, a pesquisa revela que nos domicílios pesquisados com filhos menores de idade, filhas aparecem como 29% dos auxiliares, contra 9% de filhos; e mesmo entre as que não vivem com parceiro, filhas e irmãs auxiliam mais (11% e 15%, respectivamente) que filhos e irmãos (3% cada).
A transversalidade da violência contra a mulher
A outra faceta do padrão machista que caracteriza as relações de gênero predominantes em todo o país se expressa nos dados referentes à violência conjugal contra as mulheres – um fenômeno cuja existência é sabida, mas sobre o qual fala-se pouco, contribuindo para que se reproduza sob o sigilo e em nome de uma privacidade criminosa.
Cerca de uma em cada cinco brasileiras (19%) declara espontaneamente ter sofrido algum tipo de violência por parte de algum homem: 16% relatam casos de violência física, 2% citam alguma violência psíquica e 1% lembra do assédio sexual. Porém, quando estimuladas pela citação de diferentes formas de agressão, o índice de violência sexista ultrapassa o dobro, alcançando alarmantes 43%. Um terço das mulheres admite já ter sido vítima, em algum momento de sua vida, de alguma forma de violência física (24% desde ameaças com armas, ao cerceamento do direito de ir e vir; 22% de agressões propriamente ditas e 13% de estupro conjugal ou abuso); 27% sofreram violências psíquicas e 11% afirmam já ter sofrido assédio sexual, 10% dos quais envolvendo abuso de poder, recentemente tipificado em lei(4).
Dentre as violências mais comuns destacam-se a agressão mais branda, sob a forma de tapas e empurrões (sofrida ao menos uma vez por 20%), e a ameaça através de coisas quebradas, roupas rasgadas, objetos atirados etc. (15%); as violências psíquicas, com xingamentos e ofensas à conduta moral (18%), críticas sistemáticas à atuação como mãe (18% entre as que têm ou tiveram filhos), e a desqualificação constante do seu trabalho, dentro ou fora de casa (12%). Mas 12% também declaram ter sofrido ameaça de espancamento a si próprias e aos filhos e 11% chegaram a sofrer espancamento, com cortes, marcas ou fraturas. Há ainda 11% que viveram relações sexuais forçadas (em sua maioria, o estupro conjugal, ainda inexistente na legislação penal brasileira); 9% já ficaram alguma vez trancadas em casa, impedidas de passear ou trabalhar; 8% foram ameaçadas por armas de fogo e 6% sofreram abuso, forçadas a práticas sexuais que não lhes agradavam.
A projeção da taxa de espancamento (11%) para o universo investigado (61,5 milhões) indica que pelo menos 6,8 milhões, dentre as brasileiras vivas, já foram espancadas ao menos uma vez na vida. Considerando-se que 31% declararam que a última ocorrência foi no período dos 12 meses anteriores à pesquisa, chega-se ao escândalo de cerca de 2,1 milhões de mulheres espancadas por ano no país, 175 mil/mês, 5.800/dia, 243/hora ou 4/minuto – uma a cada 15 segundos.
Entre as mulheres que declaram já ter sofrido espancamento, 32% afirmam que isso só aconteceu uma vez, mas outras 20% dizem ter ocorrido 2 ou 3 vezes e 11% foram espancadas mais de 10 ou “várias vezes”, além de 15% que não sabem dizer a quantidade, mas o tempo em que ficaram expostas a esse tipo de violência – dentre elas, 4% espancadas por “mais de 10 anos”, ou “durante toda a vida” (outras 4%). Naturalmente, estamos falando das sobreviventes. E se somarmos a isso o fato de que, a despeito dos procedimentos metodológicos adotados para gerar um clima de confiança nas entrevistas, certamente uma parcela das entrevistadas não deve ter superado o medo ou o constrangimento da confissão, pode-se concluir que o índice de uma mulher espancada a cada 15 segundos no Brasil ainda oculta parte da real extensão do problema.
O mesmo pode-se dizer sobre as demais expressões da violência contra a mulher que foram investigadas, as quais apontaram índices igualmente obscenos: a cada 15 segundos uma brasileira é impedida de sair de casa, também a cada 15 segundos outra é forçada a ter relações sexuais contra sua vontade, a cada 9 segundos outra é ofendida em sua conduta sexual ou por seu desempenho no trabalho doméstico ou remunerado. Esses dados evidenciam que a violência contra a mulher no Brasil, longe de ser um problema que deva estar restrito ao âmbito privado dos casais, constitui um fenômeno social amplamente difundido, a requerer políticas públicas de ampla difusão e acesso – uma demanda a que a criação da Secretaria Especial da Mulher, por parte do governo Lula, e o programa de combate à violência doméstica anunciado no início de 2004, vêm mais que oportunamente ao encontro.
A responsabilidade do marido ou parceiro como principal agressor varia entre 53% (ameaça à integridade física com armas) e 70% (quebradeira) das ocorrências de violência em qualquer das modalidades investigadas, excetuando-se o assédio. Outros agressores comumente citados são o ex-marido, o ex-companheiro e o ex-namorado, que somados ao marido ou parceiro constituem sólida maioria. O ciúme (muitas vezes da mulher) desponta como a principal causa aparente detonadora da violência, assim como o fato de o homem estar alcoolizado no momento da agressão – ambos mencionados espontaneamente por 21%.
Atestando a transversalidade do fenômeno, de modo geral as violências declinam com o aumento da renda familiar e da escolaridade, mas longe de desaparecerem: sob a forma explícita de agressão, caem de 27%, contra as mulheres com renda familiar até 2 salários, para 14% contra as com renda superior a 20 salários; sob formas sexuais (estupro conjugal e abuso) variam de 17% a 10%, nesses mesmos segmentos, e sob a forma de ameaças e cerceamento vão de 29% a 16%; e a violência psíquica pouco cai, indo de 30% para 21%, considerando-se os extremos da escala de renda familiar.
Em quase todos os tipos de violência, mais da metade das mulheres não pede ajuda. Somente em casos considerados graves, como ameaças com armas de fogo e espancamento, pouco mais da metade das vítimas (55% e 53%, respectivamente) recorre a alguém para ajudá-las – pedido que recai, via de regra, sobre outra mulher da família, mãe ou irmã, ou sobre uma amiga próxima. Os casos de denúncia pública são ainda menos frequentes, ocorrendo mais diante de ameaça à integridade física por armas de fogo (31%), espancamento (21%) e ameaças de espancamento (19%). O órgão público mais utilizado para denúncias é a delegacia de polícia comum. A Delegacia da Mulher atinge a 5% nos casos de espancamento.
Dentre seis propostas para uma política pública de combate à violência contra a mulher sugeridas na pesquisa, a criação de abrigos para mulheres agredidas e seus filhos foi a que mereceu maior adesão (43% na primeira escolha, 74% na soma de três respostas). A criação de Delegacias Especializadas no atendimento às vítimas apareceu como segunda principal medida (21% e 60%, respectivamente), seguida por serviços de atendimento psicológico (12% e 51%), por um serviço telefônico gratuito, tipo SOS Mulher (13% e 44%) e por serviços de orientação jurídica para as mulheres agredidas (5% e 40%). Em último lugar ficou a proposta de campanhas na TV e no rádio contra a violência sofrida pela mulher (5% e 26%), curiosamente a única de caráter preventivo, entre as medidas investigadas, uma vez que as demais só intervém depois do leite derramado.
É certo que outras propostas poderiam ter sido testadas, como a abordagem do problema nas escolas, desde o ensino fundamental, seja em disciplina específica sobre direitos humanos e cidadania, seja transversalmente em outras disciplinas. Mas o fato de campanhas educativas na mídia terem sido a última escolha das entrevistadas parece refletir não só a legítima dramaticidade que o fenômeno desperta (ao menos quando sucitado), favorecendo a opção da opinião pública por alternativas “curativas”, como também a pouca maturidade da discussão do problema em nossa sociedade. A dimensão do fenômeno captada na pesquisa indica que, por necessárias e importantes que sejam, as medidas de acolhimento das vítimas, mesmo se implementadas em larga escala, serão insuficientes se não for combatida a base moral que legitima e confere naturalidade à violência contra a mulher, o que demanda uma política educacional ativa de desconstrução/construção de valores.
Uma voz diferente (5)
Em suma, erra muito quem, ao pensar nas mulheres brasileiras hoje, visualiza a dona-de-casa, conformada e satisfeita com sua dependência e submissão ao marido, ou a espera de um. Não é assim que elas se vêem, não é assim que elas vivem. A inserção no mercado de trabalho, conquista ou meta da maioria das mulheres, é valorizada sobretudo por possibilitar a construção de sua autonomia, ou ao menos por trazer independência econômica em relação aos (seus) homens. Mas também erra quem pensa só na trabalhadora, ou seja, na condição da mulher apenas do ponto de vista das classes sociais. Como vimos, já no mercado ou buscando entrar, a maioria das brasileiras acumula o trabalho fora, remunerado, ao trabalho doméstico não pago, a contragosto, suportando a experiência estafante da dupla jornada – um dos traços mais característicos de sua identidade de gênero.
Indagadas, ainda no início da entrevista, sobre a primeira coisa que fariam para que a vida de todas as mulheres melhorasse, despontaram como principais respostas espontâneas o fim das discriminações no mercado de trabalho (47%), a igualdade de direitos (10%), o combate à violência contra as mulheres (9%); maior liberdade (5%), menos machismo e mais reconhecimento por parte dos homens (5%). Essas respostas constituem uma pauta específica de preocupações, trazendo uma combinação de demandas que a visão masculina hegemônica, vinda de outro lugar, tem dificuldade de enxergar – demandas que só a experiência concreta do universo feminino, em que cotidianamente se entrelaçam um mundo público restrito e um mundo privado opressor, poderia criar.
O fato de que o movimento intenso das mulheres em direção ao mercado de trabalho, constituindo-se como (co)provedoras das famílias, não tem encontrado a contrapartida da equivalência masculina na divisão do trabalho doméstico, bem como a permanência de estigmas que reforçam a idéia de inferioridade/incapacidade da mulher em diferentes âmbitos do espaço público, sugerem que o conjunto da sociedade brasileira e suas instituições não têm caminhado, ao menos não com a mesma intensidade, que (parcelas amplas da) sua metade feminina. Nesse sentido as mulheres têm sido o sujeito ativo da mudança nas relações de gênero, beneficiárias privilegiadas de suas conquistas, ao mesmo tempo em que arcam com os principais custos que ela implica – a exemplo da violência conjugal sofrida, muitas vezes claramente uma reação masculina à perda de poder no âmbito da família.
Se a pesquisa mostra que as brasileiras estão decididas a não dar a volta atrás, recolhendo-se de novo em suas casas, ela também indica que o horizonte do mundo público das mulheres tem muito a ser ampliado. A inserção no mercado de trabalho ainda é o principal caminho que leva às experiências públicas, quando não o único, e caracterizado pela precariedade (vínculo informal e baixos salários). O mundo do poder político, mesmo o das artes e do conhecimento, são pouco citados como espaços concretos de ação feminina, ainda distantes da realidade da maioria das mulheres no Brasil, ainda que os dados indiquem disposição em conquistá-los. A concentração de obrigações e responsabilidades no mundo privado, repostas a cada dia, certamente dificulta a que se aventurem por outros caminhos públicos, que exigem dedicação e experiência. Para que as mulheres possam exercer sua cidadania com igualdade de condições, portanto, ainda há muito que percorrer e romper.
Ao perseguirem sua autonomia, o respeito a sua dignidade e a sua integridade física; ao tentar rearticular os espaços privado e público em outros termos, transformando o primeiro e ampliando sua inserção no outro; em suma, ao reivindicarem o fim da opressão de gênero, sendo esta tão onipresente, certamente as mulheres apontam não só para uma sociedade em que elas possam viver melhor, mas para um Brasil potencialmente menos injusto no conjunto de suas relações sociais. Quanto aos homens, sobretudo como majoritariamente responsáveis pela maioria das instituições sociais, podem optar pelo status quo ou contribuir para acelerar essas mudanças. O que os dados sugerem é que não conseguirão resistir às transformações nas relações de gênero que as mulheres brasileiras provavelmente conquistarão muito antes de acabar o século que se inicia.
Conheça a pesquisa “A Mulher Brasileira nos Espaços Público e Privado”, realizada pelo Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo
* Gustavo Venturi é Mestre em Sociologia e doutor em Ciência Política pela USP. Diretor da Criterium Consultoria – Avaliação de Políticas Públicas e coordenador do Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo
** Marisol Recamam é Socióloga, formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Diretora da Criterium Consultoria – Avaliação de Políticas Públicas e coordenadora-assistente do Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo
Notas de rodapé:
1 – Uma versão anterior e mais sintética deste texto foi publicada na Revista Teoria & Debate no 50, fev-abr/2002, sob o título “Afinal, o que querem as mulheres?”. Este artigo é uma síntese da pesquisa “A Mulher Brasileira nos Espaços Público e Privado”, realizada pelo Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo
2 – Em que pese a distância de quase dois anos e meio entre a coleta dos dados e a redação desta introdução, os resultados aqui analisados mantêm essencialmente sua atualidade, posto que refletem traços estruturais da realidade da condição feminina no Brasil e as percepções das mulheres sobre essa realidade, pouco alterada nesse período. Optamos, assim, como regra geral, por manter as con jugações verbais do texto no modo presente, excetuando-se a referência a dados sensíveis a mudanças conjunturais, a exemplo da precisão da distribuição da renda familiar medida em salários mínimos ou do acesso a computador e Internet.
3 – Não confundir com a totalidade dos domicílios brasileiros, uma vez que, sendo as mulheres o universo desta pesquisa, ficaram de fora os domicílios em que não há mulheres.
4 – Lei 10.224, de 15 de maio de 2001, introduziu no Código Penal a seguinte redação: “Assédio sexual – art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.”
5 – Título de livro da psicóloga social norte-americana, Carol Gilligan, In a Different Voice (Harvard Univ. Press, Londres, 1982), publicado no Brasil pela Editora Rosa dos Tempos.