Edição n° 57 – maio de 2006: A classe média nas eleições de 2006
Diante dos números das pesquisas para as eleições presidenciais se tornou comum a afirmação de que Lula seria o candidato dos mais pobres e da região Nordeste enquanto Alckmin seria o da classe média e da região Sudeste. Tal afirmação procurava sustentação em certas tendências reveladas em algumas pesquisas, mas também na tentativa de explicar a manutenção dos altos índices de popularidade de Lula em meio à crise política. Neste raciocínio, a popularidade do presidente se manteria entre a camada da população de mais baixa renda e escolaridade e, conseqüentemente, menos informada e mais susceptível à manipulação eleitoral. Em oposição a esta situação, a classe média educada e informada apoiaria o candidato tucano.
Deixando de lado a discussão em torno das diferenças qualitativas entre a opinião política dos pobres e da classe média, a tese dos mais pobres manipulados e desinformados para explicar a popularidade do presidente Lula rapidamente foi derrubada em favor da percepção do alcance das políticas sociais do governo. O fato de que as políticas sociais alcançaram seu alvo, ou seja, exatamente aquelas camadas da população brasileira mais pobres e marginalizadas, explicaria de forma mais consistente os índices de aprovação do governo e do presidente.
Por outro lado, se analisados com mais cuidado, os números das últimas pesquisas do Datafolha revelam uma situação eleitoral mais complexa do que a simples atribuição da classe média e dos mais pobres a um e outro candidato. Assim, se é verdade que Lula encontra apoio de até 61% dos nordestinos com renda familiar até dois salários mínimos, é certo também que seu desempenho na região Sul entre os que possuem esta mesma renda é de 30%, abaixo de sua média total de 40%. Esta situação de maior complexidade já se revelava na pesquisa de fevereiro que mostrava o fortalecimento de Lula entre os brasileiros com nível superior de escolaridade e com renda superior a 10 salários mínimos, características normalmente atribuíveis à classe média. No cenário eleitoral com Alckmin e Garotinho, Lula atingia então 39% entre os mais escolarizados enquanto o candidato tucano alcançava 27%. Entre a população de maior renda Lula alcançava 30% contra 36% de Alckmin. Já na pesquisa Datafolha de abril, entre os brasileiros com renda acima de 10 salários Alckmin aparece com 40% contra 23% de Lula e entre os brasileiros de escolaridade média, 38% votariam em Lula contra 26% do candidato tucano.
Levando-se em consideração a ocupação, Lula mantém média semelhante em diversas ocupações como assalariados registrados (37%), assalariados sem registro (39%), funcionários públicos (40%), autônomos regulares (38%) e desempregados (39%). Alckmin possuiria índices melhores apenas entre os que se declaram empresários (46%).
Retrato da classe média no Brasil
Colocado nos termos anteriores, o debate em torno da estratificação social dos eleitores e suas preferências se dá a partir de uma disputa sobre a legitimidade da candidatura diante da classe média. Em grande medida, esta preocupação se justifica dada a inegável importância e influência deste setor social no país. Aceito este fato, no entanto, quem seria a classe média no país, qual seu tamanho, seus hábitos, dificuldades e realidade social?
A tentativa de responder a estas questões norteou a realização do primeiro volume do “Atlas da nova estratificação social no Brasil” (Editora Cortez, São Paulo: 2006) organizado, entre outros, pelo economista Márcio Pochmann. Conceitualmente, a classe média é definida pelo “Atlas” como “o conjunto demográfico que, embora com relativamente pouca propriedade, destaca-se por posições altas e intermediárias tanto na estrutura sócio-ocupacional como na distribuição pessoal da renda e riqueza. Por conseqüência, a classe média termina sendo compreendida como portadora de autoridade e status social reconhecidos, bem como avantajado padrão de consumo”.
Se é reconhecida a importância deste setor social, há que se destacar, no entanto, que a classe média ganha relevância para o país apenas na história mais recente. Seguindo uma série de estudos realizados sobre o tema, a origem da classe média brasileira está intimamente relacionada ao projeto de industrialização e urbanização do país a partir da década de 1930. A industrialização, a urbanização e o crescimento paralelo do Estado a partir deste período criaram uma demanda por uma burocracia de nível intermediário capacitada para dar conta das novas tarefas e necessidades surgidas com o crescimento das organizações privadas e públicas e da expansão do espaço urbano.
Com o forte crescimento econômico que ocorreu nas décadas seguintes a 1930, com a expansão das empresas e do Estado empregando uma nova classe média, este grupo atingiria rápido crescimento e representatividade social. Desta forma, a expansão da classe média no país dependeu fundamentalmente do crescimento econômico realizado através da industrialização e da ampliação dos serviços nas grandes cidades. Este processo consolidaria uma classe média baseada no emprego e dependente do contrato de trabalho no país.
Mas, qual o perfil da classe média no Brasil de hoje? Este perfil é traçado pelo “Atlas” através dos dados do Censo demográfico 2000 e da POF 2003 (Pesquisa de Orçamentos Familiares) do IBGE. A partir destes dados, registra-se no país cerca de 15,4 milhões de famílias de classe média, o que equivale a 31,7% do total de famílias existentes no Brasil. Em valores de 2005, o piso e o teto da renda mensal das famílias de classe média equivaleria a R$ 1.556,00 e R$ 17.351,00 respectivamente. Convertendo-se este mesmo número de famílias em número de pessoas, chega-se ao contingente de aproximadamente 57,8 milhões de pessoas pertencentes à classe média brasileira. A renda familiar per capita da classe média no país variaria entre 1,7 salário mínimo e 19,4 salários mínimos por membro familiar.
Em relação à distribuição da classe média pelo país, 33,8% dessas famílias encontram-se no estado de São Paulo seguido do Rio de Janeiro com 11,9% e Minas Gerais com 9,8%. Das famílias de classe média, 57,2% estão localizadas na região Sudeste seguida da região Sul com 18,3%. Desta forma, 3 em cada 4 famílias da classe média brasileira vivem nas regiões Sul e Sudeste.
Ponderada a participação das famílias de classe média no total de famílias nos respectivos estados, observa-se que o Distrito Federal possui uma porcentagem superior a 50% das famílias situadas na classe média. Em seguida aparecem São Paulo (46,9%), Santa Catarina (41,3%), Rio de Janeiro (39,9%) e Rio Grande do Sul (36,5%). Por outro lado, destaca-se a baixa participação da classe média na região Nordeste, uma vez que somente 15,3% das famílias nordestinas podem ser classificadas neste grupo social.
Em termos demográficos, a classe média brasileira é predominantemente branca, o que revela a desigualdade de cor na definição da classe média brasileira. Praticamente 70% dos chefes de família de classe média são brancos sendo que na população total o porcentual de brancos é de 54%.
Em termos educacionais os números confirmam a percepção geral. Os chefes de família de classe média possuem uma escolaridade bastante superior à encontrada na população como um todo. 97,3% dos chefes de família da classe média estudam ou já estudaram sendo que 27,7% estudam ou concluíram pelo menos o ensino médio e nada menos que 48% estudam ou concluíram o ensino superior. Desta forma, o chefe de família de classe média possui uma escolaridade média quase 40% superior ao do conjunto dos chefes de família que trabalham.
Outro fator decisivo para a compreensão da classe média é seu padrão de consumo, aspecto definidor deste setor social em relação às camadas mais pobres. Apenas para se ter uma idéia, embora a classe média no Brasil represente cerca de 31% da população, seu consumo responde por 50% de todo o mercado consumidor do país segundo dados da POF 2003. Neste sentido, uma das características do consumo da classe média observada no “Atlas” é o comprometimento de parcelas significativas de sua renda em gastos “inversionais”, como roupas, diversões, educação, bem acima das despesas com “autoconservação” como alimentação e saúde. Desta forma, enquanto a alimentação responde por 16,5% das despesas totais da classe média, estes gastos ocupam 31% dos gastos da população pobre. Esta relação se inverte quando os temas são educação e lazer. Enquanto a classe média dedica 3,9% de suas despesas para a educação os mais pobres dedicam apenas 0,9%. Se com recreação e cultura as famílias de classe média investem 2,2% de suas despesas, as famílias mais pobres gastam 1,0% com estes itens.
A crise contemporânea da classe média
Outra tese de certa forma consolidada no senso comum nacional, a idéia de que a classe média vive uma crise no Brasil contemporâneo, também é discutida e corroborada através dos números do IBGE. Se a classe média se expandiu num período que vai de 1930 a 1980 na esteira do alto crescimento econômico associado à políticas estatais que lhe foram favoráveis, esta situação se modifica a partir da década de 1980.
A partir da década de 1980, o avanço do emprego assalariado, importante elemento para a criação da classe média nacional, foi sendo praticamente contido diante do abandono do projeto de industrialização nacional. Passou-se a assistir um misto de desassalariamento de postos de trabalho de classe média e expansão de micro e pequenos empreendimentos.
Neste sentido, os constrangimentos vividos pela classe média assalariada apontam para uma crise ampla de reprodução social já que a mobilidade e a ascensão social se reduziram drasticamente para importantes segmentos identificados com a classe média. Ao longo dos anos 1990, a ênfase num modelo econômico sustentado na financeirização da riqueza e na exportação de bens primários de consumo terminou por contribuir para a crise da classe média brasileira. Os postos de trabalho tradicionais identificados com este setor social foram profundamente afetados pelo contexto econômico enquanto o processo de financeirização da riqueza abriu oportunidades reduzidas para a alta classe média. Esta situação teria levado a uma polarização interna à classe média uma vez que setores dependentes da expansão econômica, da prestação de serviços públicos e da diversificação produtiva vê seu espaço reduzido enquanto, de outro lado, uma classe média alta se aproxima das elites.
Esta situação de dificuldades para a classe média se reflete nas recentes pesquisas do IBGE em relação ao mercado de trabalho. Pesquisa divulgada pela Folha de S. Paulo de 30 de abril mostra que as perdas salariais dos setores com alta escolaridade, normalmente associados à classe média, para o período 2002-2006 foram os maiores se comparados com níveis de mais baixa escolaridade, cerca de 12,3%. Mesmo a recuperação dos rendimentos dos trabalhadores verificada entre 2005 e 2006 foi em menor percentual entre os de mais alta escolaridade, cerca de 2,7%. Reflete-se também nas mudanças no padrão de consumo da classe média se comparados os dados da POF 1987 com os da POF 2003 que revelam o corte de gastos em itens como vestuário e aumento de ativos com o aumento de gastos com transporte e habitação.
Originada do esforço de desenvolvimento econômico e urbanização da sociedade brasileira, a classe média aparece estritamente vinculada às dificuldades vivenciadas pelo país nas últimas décadas. Os caminhos trilhados a partir daqui se refletirão diretamente no futuro da atual classe média brasileira. Uma agenda eleitoral que procure atrair os setores de classe média do país deve ser sensível a esta condição.
Se é assim, seria possível indicar três fatores de definição de votos das classes médias nestas eleições. Em primeiro lugar, a maioria de seus membros certamente apostará em um candidato que apresente as melhores perspectivas para a superação desta crise econômica e social. Certamente elas viveram, em sua maior parte, as ilusões trazidas pelo Plano Real e pelo neoliberalismo nos anos 1990. E se solidarizariam com uma proposta clara de superação deste paradigma no Brasil rumo a novos padrões de desenvolvimento.
Além dos interesses materiais imediatos, relacionados a emprego, renda e oportunidades, pode ser forte junto a estes setores o que uma vez se chamou de “egoísmo solidário”. Isto é, setores de grande porosidade e contiguidade social com os pobres, as classes médias brasileiras sofrem muito mais do que a minoria que pode, pela força do dinheiro, criar áreas de “apartheid social”, as conseqüências da criminalidade e da insegurança urbana. Programas de inclusão social e, principalmente, a recuperação de uma perspectiva de construção de um Estado do Bem-Estar Social que solidarize o futuro destes setores médios com a uma perspectiva de vida melhor para os pobres terão certamente forte impacto em sua definição de voto.
Por fim, setores ponderáveis destes setores médios participaram ativamente das grandes jornadas políticas democráticas da sociedade brasileira nestas últimas décadas. Desenvolveram uma consciência democrática progressista, receptiva à promoção dos direitos e à ética pública. É muito provável que a definição de voto de uma parcela importante destes setores seja bastante influenciada pelas respostas que se derem à crise política vivida pelo país em 2005.
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