Opinião pública e projetos de poder
Em dois artigos recentes (“Tendências/Debates”, pág. A3, 7 e 19/8), J. A. Guilhon Albuquerque faz previsões sobre a disputa presidencial que constituem exemplos úteis do quanto na ciência política os números podem ser enganosos, a despeito de sua exatidão aparente, travestindo de cientificidade interpretações politicamente enviesadas.
Dizendo se basear nas “prévias eleitorais até aqui disponíveis”, o autor sustenta que elas permitem “prever o ocaso de mais um sonho; (..) trata-se do possível adiamento do sonho de um PT finalmente amadurecido em sua vocação eleitoral e governativa”. E arrisca-se além: “creio que se pode mesmo falar em sepultamento” desse sonho.
A evolução do quadro atual e as pesquisas presidenciais de 1994 e 1998 apontariam como “tendência mais significativa”, acredita, “a trajetória aparentemente definitiva de Lula em direção a um patamar equivalente ao eleitorado tradicional do PT nas eleições precedentes”. A análise de Guilhon embute uma série de falácias. A primeira: não existe um patamar equivalente ao eleitorado tradicional do PT. Lula recebeu 11,6 milhões de votos no primeiro turno em 89, 17,1 milhões em 94 e 21,5 milhões em 98. Essa evolução assemelha-se antes a uma rampa que a um patamar. Se houvesse uma tendência lógica a extrair honestamente dessa curva, seria a de que, em 2002, crescerá mais uma vez a votação em Lula e no PT.
Guilhon lembra que Lula atingiu 42% em maio e diz que “logo começou a declinar”, o que apontaria a uma situação em que “Lula fica confinado ao eleitorado petista, mostrando-se incapaz de ampliar sua base eleitoral para incorporar o setor moderado da oposição”.
O autor ignora o efeito evidente do pico da exposição de Lula na TV em abril, depois dá a entender que Lula teria entrado em declínio ininterrupto, quando, na verdade, em junho e início de julho apenas retorna gradualmente ao patamar anterior, observando a seguir intenção de voto estável, em torno de um terço do eleitorado.
Mais sutil, trata-se de outra falácia factual que a votação em Lula tenha, em algum momento, se confinado ao eleitorado petista. Eleitoralmente Lula sempre foi maior que o PT: quando passou para o segundo turno em 89, com 15% dos votos, o PT tinha menos de 10% de preferência partidária; quando teve 22%, em 94, o PT tinha cerca de 12%; em 98, com o PT em torno de 15%, Lula recebeu 26% dos votos. E hoje, quando o PT é líder em preferência nacional, com 20%, Lula está além, com cerca de 35% das intenções de voto.
Para ilustrar seu argumento, Guilhon cita Ibope de julho em que “apenas 44% dos entrevistados que desaprovam o governo votariam em Lula”, o que revelaria “total incapacidade para alcançar 60% do eleitorado insatisfeito com o governo”. Ora, primeiro que 100 – 44 = 56, e não 60. Segundo, excluindo-se os indecisos (7%) e os desalentados do voto em branco ou nulo (8%), a conta é outra: entre os que optam por um candidato, Lula tem a maioria das intenções de voto (52%, na mesma pesquisa) dos que desaprovam FHC, mais que o dobro que Ciro e o triplo de Garotinho.
Terceiro, e sobretudo, o fracasso do governo FHC aos olhos da opinião pública e o desejo de mudança são tais que, como se tem visto, nem o candidato governista se anima a defendê-lo. E todos os demais tratam de parecer de oposição, sendo previsível a divisão do eleitorado descontente – o qual, de resto, não é homogêneo nem decide seu voto apenas pelo grau de antagonismo ao governo que identifica nos candidatos.
Em flagrante briga com a evidência empírica de que Ciro só cresceu com a queda de Serra, Guilhon sugere que Serra pode crescer sem que Ciro caia, ficando Lula fora do segundo turno. Não bastasse a obviedade dessa gangorra, também a série histórica indica a forte chance de que este ano haja segundo turno, e com Lula, já que o petista entrou no horário eleitoral gratuito com intenção de voto maior (35%) que nos momentos equivalentes das disputas de 98 (23%), 94 (28%) e 89 (5%).”
Em suma, a “análise” de Guilhon mais se assemelha ao que seus ex-colegas do Reino Unido chamariam de “whisfull thinking”, expressando antes como ele desejaria que as coisas fossem.
Se o provável crescimento da votação em Lula irá romper a barreira dos 50%, elegendo-o presidente, ninguém, neste momento, sinceramente sabe. Mas é uma possibilidade real, mesmo que a Guilhon não agrade. E, ainda que seja derrotado no segundo turno, de novo o PT deverá crescer eleitoralmente, inclusive no Congresso Nacional, o que de forma nenhuma indica seu sepultamento – de todas as “previsões” do autor, certamente a mais ficcional.
Já sobre a sorte da candidatura governista, Guilhon retorna à realidade. Lembra que o fim da coalizão de centro-direita que sustentou os governos Fernando Henrique coloca o projeto tucano sob sério risco, quiçá em direção ao seu ocaso. De fato, as tendências reais da opinião pública expressam forte disposição da maioria do eleitorado a mudar os termos do pacto social vigente.
Artigo publicado no jornal Folha de São Paulo de 28/08/2002 na seção Tendências e Debate.
*Gustavo Venturi, 44, mestre em sociologia pela USP, é diretor da consultoria Criterium Pesquisas de Opinião e Avaliação de Políticas Públicas e coordena o Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo. Foi diretor do Datafolha (1992-95).