Autópsia de um golpe eleitoral e a sombra do narco-estado, por Pedro Henrichs
Fraude digital e de papel, ingerência dos EUA e o perdão prometido a Juan Orlando Hernández pavimentam o caminho para o retorno do “Narco-Estado” em Honduras

O sol que se pôs sobre Tegucigalpa em 30 de novembro de 2025 não encerrou apenas um dia de votação; ele marcou o crepúsculo de uma soberania nacional que vinha sendo corroída meticulosamente por uma tempestade perfeita de pressões externas e de sabotagem interna. O recente pleito presidencial em Honduras transcendeu a definição clássica de uma disputa democrática entre esquerda e direita. O que se viu foi um autêntico campo de batalha geopolítico, no qual o voto popular foi sufocado por uma sofisticada maquinaria de fraude, legitimada por potências estrangeiras e executada por velhos atores da política doméstica que buscam, acima de tudo, a impunidade.
Embora a superfície do dia da votação tenha apresentado uma calma aparente, a tranquilidade típica de quem observa um oceano antes do tsunami, os bastidores fervilharam com uma “engenharia do caos”. O clima que precedeu as urnas foi de alta tensão, marcado por uma campanha de deslegitimação feroz, ataques cirúrgicos à candidata governista Rixi Moncada e por uma ingerência estrangeira que ecoa os períodos mais sombrios da “República das Bananas”, agora atualizada para a era da guerra híbrida digital.
Rixi Moncada, advogada de temperamento firme, ex-ministra da Defesa e Finanças no governo da Presidente Xiomara Castro e candidata do partido governista Liberdade e Refundação (Libre), tornou-se o alvo preferencial de uma campanha de ataque midiático e político implacável, desenhada para destruir moralmente a única barreira contra o retorno do conservadorismo radical.
A candidata, cuja plataforma prometia aprofundar as reformas iniciadas por Castro, notadamente a redução da violência estrutural e a democratização da economia por meio de uma reforma fiscal progressiva, foi sistematicamente desumanizada. A oposição de direita, liderada pelo Partido Nacional (PN) e amplificada por megafones internacionais, rotulou Moncada como a encarnação do “comunismo caribenho” e do “narcoterrorismo”. Essa narrativa, simplista mas devastadora, visava desqualificar sua agenda soberanista e associá-la a regimes politicamente sensíveis na América Latina, como Cuba, Nicarágua e Venezuela. Foi a reedição de uma tática clássica de Guerra Fria, aplicada com precisão cirúrgica no século XXI.
Os ataques a Moncada ultrapassaram o debate programático, descendo ao terreno do descrédito pessoal. Acusações infundadas de corrupção, que já haviam sido rejeitadas pela Justiça em instâncias anteriores, e a insistente tentativa de vincular seu partido ao narcotráfico criaram uma dissonância cognitiva no eleitorado. É fundamental notar a ironia: a administração de Castro foi creditada internacionalmente com uma redução significativa nos homicídios e avanços na segurança pública. No entanto, a máquina de propaganda da oposição conseguiu inverter a realidade, pintando o governo que combatia o crime como cúmplice dele, preparando o terreno psicológico para a tese de “fraude” caso a esquerda vencesse.
O papel da comunidade internacional, especificamente da Organização dos Estados Americanos (OEA) e de certos corpos diplomáticos europeus, merece um capítulo à parte na história deste pleito. Em tese, missões de observação existem para garantir a transparência e proteger o voto. Na prática, a postura adotada foi ambígua, para não dizer cúmplice.
A Secretaria-Geral da OEA, rompendo com a prudência diplomática, emitiu declarações de “preocupação” sobre a autonomia das instituições eleitorais hondurenhas semanas antes do voto, alinhando-se discursivamente às denúncias preventivas da oposição. A reunião extraordinária da OEA, realizada em solo hondurenho a poucos dias do pleito, serviu não como um escudo para a democracia, mas como um palanque para que congressistas da direita denunciassem, sem provas materiais, uma “intenção de fraude” por parte do Libre.
Essas ações criaram uma “profecia autorrealizável”. Ao validar as suspeitas da oposição antes mesmo de as urnas abrirem, os organismos internacionais retiraram a legitimidade do governo para conduzir o processo, enfraquecendo as instituições locais. A desconfiança semeada por Washington e replicada pela OEA poderia ter incendiado as ruas caso o resultado não agradasse ao establishment conservador. O que assistimos foi uma “crise de confiança artificial”, fabricada para justificar qualquer intervenção posterior.
O fator trump e a promessa de impunidade ao narcotráfico
O elemento mais grotesco e decisivo da ingerência estrangeira foi, sem dúvida, a intervenção aberta do governo dos Estados Unidos, personificada na figura do presidente Donald Trump. A política externa americana para a América Central, historicamente pautada pelo intervencionismo, atingiu um novo patamar de cinismo.
O cenário é de uma ironia mordaz e trágica. O ex-presidente de Honduras, Juan Orlando Hernández (JOH), figura central do Partido Nacional, cumpre pena de 45 anos em uma prisão federal nos EUA por narcotráfico e uso de metralhadoras para proteger carregamentos de cocaína. A lógica ditaria que qualquer candidato associado a JOH seria “persona non grata” em Washington. Contudo, a realpolitik de Trump atropelou a ética.
O presidente americano não apenas endossou abertamente Nasry “Tito” Asfura, o herdeiro político de JOH, como foi além: prometeu conceder indulto a Juan Orlando Hernández caso o Partido Nacional retornasse ao poder. Em uma declaração que chocou juristas e ativistas de direitos humanos, Trump afirmou: “Tito e eu podemos trabalhar juntos para lutar contra os narcocomunistas. Juan Orlando foi um parceiro, e parceiros merecem justiça, não perseguição política.”
Além da promessa de soltura do narcotraficante condenado, Trump utilizou a chantagem econômica como arma de voto, ameaçando cortar remessas e ajuda humanitária caso Rixi Moncada vencesse. A mensagem subjacente foi clara e brutal: o combate ao narcotráfico é apenas uma ferramenta retórica. Para os EUA sob Trump, um “narco-amigo” é preferível a um governo soberano de esquerda. Essa promessa de anistia para JOH energizou a base do Partido Nacional e sinalizou às máfias locais que os “bons tempos” de impunidade estavam prestes a retornar.
Enquanto a geopolítica operava nas manchetes, a fraude operava no chão de fábrica da eleição. A tranquilidade nas ruas contrastava com a atividade frenética nos centros de votação e nos servidores de dados, onde a vontade popular começou a ser distorcida.
1. A prisão em San Pedro Sula: a ponta do iceberg
O primeiro sinal concreto de que o processo estava viciado surgiu em San Pedro Sula, o coração industrial de Honduras e, historicamente, um reduto disputado. Autoridades policiais prenderam em flagrante uma mulher, vinculada à estrutura de campanha do Partido Nacional, enquanto alterava fisicamente as actas (atas) eleitorais.
Segundo relatos do El Heraldo e fontes locais, a mulher possuía dezenas de atas originais e estava, com uma caneta e corretivo, modificando os números finais para inflar a votação de Nasry Asfura e anular votos válidos do Libre. Este incidente não foi isolado; ele representa a materialização do que os especialistas chamam de “fraude formiga”: pequenas alterações em milhares de mesas que, somadas, viram o jogo. A prisão em San Pedro Sula expôs a vulnerabilidade do sistema físico de custódia dos votos e confirmou que a máquina partidária do PN, a mesma que sustentou JOH por anos, ainda operava com total capilaridade e audácia.
2. O colapso “conveniente” do CNE
Se a fraude física era a tática do século XX, a fraude digital foi a do século XXI. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE), pressionado a entregar resultados rápidos, admitiu publicamente, horas após o fechamento das urnas, que enfrentava “problemas técnicos severos” e “inconsistências” na contagem e transmissão de votos.
O sistema de Transmissão de Resultados Eleitorais Preliminares (TREP), que deveria garantir a transparência, sofreu “apagões” intermitentes em regiões onde o Libre possuía vantagem histórica. A justificativa oficial variou de falhas de conectividade a sobrecarga de servidores.
Aqui entra o temor pré-eleitoral sobre a Starlink. O uso da tecnologia de satélites de Elon Musk, um aliado declarado da nova direita global para a transmissão de dados em áreas rurais, foi denunciado por especialistas como um ponto cego de auditoria. Com o CNE admitindo falhas na contagem, a suspeita de que algoritmos ou interrupções seletivas de sinal foram usados para manipular a totalização ganhou força. A “falha técnica” tornou-se o álibi perfeito para o atraso na divulgação de dados reais e para o súbito salto nos números da direita durante a madrugada.
3. Rixi Moncada e as atas fantasmas
Diante do cenário de manipulação, a candidata Rixi Moncada convocou uma coletiva de imprensa urgente e dramática. Visivelmente indignada, mas com a frieza de uma ex-ministra, Rixi apresentou à nação e aos observadores internacionais uma relação de centenas de Atas de Fechamento que estavam sendo computadas pelo CNE, mas que possuíam uma falha grotesca: não continham as impressões digitais dos membros das mesas receptoras.
“Estamos diante de um roubo descarado”, declarou Moncada, segurando os documentos. A ausência de digitais e assinaturas válidas nas atas indica que esses documentos foram preenchidos longe dos olhos dos fiscais, provavelmente em “centros de contagem paralelos”, e inseridos no sistema oficial para diluir a votação do governo. Essas “atas fantasmas” correspondem a milhares de votos que, estatisticamente, destoam da tendência das urnas auditadas. A denúncia de Rixi expôs que o problema do CNE não era apenas técnico, mas criminoso.
Apesar das evidências de manipulação física em San Pedro Sula, das falhas sistêmicas do CNE e das denúncias documentais de Rixi Moncada, a narrativa oficial, impulsionada pela pressão americana, começou a consolidar um resultado que desafia a lógica de um governo que mantinha altos índices de aprovação social.
Com pouco mais de 40% das urnas processadas (uma lentidão justificada pelas “falhas técnicas”), o cenário desenhado é o seguinte:
Nasry “Tito” Asfura (Partido Nacional): Lidera com aproximadamente 40 a 42% dos votos. O ex-prefeito de Tegucigalpa, conhecido como “Papi a la Orden”, capitalizou não apenas o voto conservador, mas a eficácia da fraude estrutural. Sua liderança é celebrada prematuramente por Washington como a “volta da liberdade”.
Salvador Nasralla (Partido Liberal): Surge como uma força auxiliar, capturando o voto de protesto não ideológico e fragmentando a oposição ao golpe.
Rixi Moncada (Libre): Aparece estagnado em terceiro lugar, com cerca de 20 a 22%. Um número que analistas independentes consideram estatisticamente improvável dada a mobilização popular vista durante a campanha, sugerindo que seus votos foram os principais alvos da anulação via atas fraudadas.
Como as eleições em Honduras são definidas por maioria simples, sem segundo turno, a tendência atual, se mantida (e validada pelas autoridades internacionais cúmplices), entregará a presidência a Asfura.
A iminente vitória de Nasry Asfura, sob as bênçãos de Trump e a complacência da OEA, não representa apenas uma alternância de poder partidário. Ela sinaliza o desmantelamento do Estado de Direito em Honduras e o retorno ao status de “Narco-Estado”.
A promessa de soltura de Juan Orlando Hernández é o símbolo máximo dessa regressão. Se concretizada, ela enviará a mensagem de que o crime compensa, desde que o criminoso seja politicamente útil aos interesses norte-americanos. A estrutura de poder que permitiu a JOH transformar Honduras em uma plataforma de exportação de cocaína, envolvendo militares, juízes e políticos, permaneceu latente durante o governo de Xiomara Castro e agora se prepara para retomar o controle total do aparato estatal.
Além disso, a fraude exposta em San Pedro Sula e a manipulação no CNE indicam que as instituições democráticas hondurenhas foram recapturadas pelas elites corruptas. O Tribunal Eleitoral, o Ministério Público e as forças de segurança, ao permitirem ou ignorarem tais flagrantes, mostram-se novamente cooptados.
As eleições presidenciais de Honduras em 2025 entrarão para a história como um estudo de caso sobre como desmantelar uma democracia progressista no século XXI. Não foram necessários tanques nas ruas nem o bombardeio do palácio presidencial. Bastou uma combinação de lawfare, ameaças econômicas externas, manipulação tecnológica de dados e a velha fraude de caneta e papel nas províncias.
A prisão da fraudada em San Pedro Sula e as atas sem digitais denunciadas por Rixi Moncada são as “armas fumegantes” de um crime contra a soberania popular. No entanto, o peso geopolítico dos Estados Unidos, prometendo perdão a narcotraficantes em troca de lealdade política, parece, por ora, ter abafado o clamor por justiça.
O povo hondurenho, que compareceu pacificamente às urnas na esperança de consolidar sua independência, vê-se agora diante de um abismo. A tranquilidade do dia da votação foi traída pela turbulência da apuração. A verdadeira batalha por Honduras começa agora: não mais nas urnas, que foram violadas, mas na resistência contra a normalização de um governo que nasce sob o signo da fraude e que promete abrir as portas das prisões para os arquitetos da destruição nacional.
Honduras merece mais do que ser um peão no tabuleiro de xadrez de Donald Trump ou um refúgio para cartéis protegidos pelo Estado. A comunidade internacional honesta deve exigir uma auditoria forense completa das atas denunciadas por Rixi Moncada e investigar as falhas do CNE. Aceitar este resultado sem contestação é decretar a morte da democracia na América Central e aceitar que a vontade de um império vale mais do que a dignidade de uma nação.
* Pedro Henrichs – Mestrando em Relações Internacionais no IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), gestor público, CEO da Henrichs Consultoria, Sec. Executivo Regenera Brasil, Ex-presidente do Fórum de Juventude dos Brics, Observador eleitoral há 15 anos, 18 países na América, 4 países na Europa, 1 na África, e 3 na Ásia.
