A separação das eleições legislativas, uma lista consensuada com dificuldade e o escândalo de corrupção envolvendo a irmã de Milei abriram caminho para a vitória histórica de Axel Kicillof, celebrada por Lula, Boric e Yamandú Orsi. Um resultado que o projeta como presidenciável para 2027

O futuro da Argentina passa pela unidade do peronismo, por Paulo Pereira
Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante reunião com o Governador da Província de Buenos Aires, Axel Kicillof, no Palácio do Planalto.

Axel Kicillof não é apenas mais um nome na política argentina. Economista formado na Universidade de Buenos Aires, ex-ministro da Fazenda de Cristina Fernández de Kirchner, professor de teoria econômica, ele construiu uma trajetória marcada por rigor técnico, disciplina e oposição às políticas neoliberais. 

Hoje, como governador da província de Buenos Aires — o maior colégio eleitoral do país — Kicillof celebrou uma vitória retumbante sobre Javier Milei nas eleições legislativas do último domingo, 7 de setembro, e acendeu debates sobre seu potencial para disputar a presidência em 2027.

Na noite da vitória, quando subiu ao palco, as ruas vibravam com gritos da militância que ecoavam entre prédios e avenidas: “¡Se siente, se siente, Axel Presidente!”. Não era apenas uma celebração local: era um prenúncio de esperança, a percepção de que Kicillof poderia encarnar uma nova liderança em meio ao vácuo deixado pelo desgaste de Cristina Kirchner e o fracasso eleitoral de Sérgio Massa. 

O “duplo triunfo” — sobre Milei e sobre a influência kirchnerista — reposicionou o tabuleiro político. Com 47,3% dos votos, conquistados pela lista da Fuerza Patria, Kicillof consolidou hegemonia em Buenos Aires e demonstrou que é possível disputar espaço no peronismo sem depender da bênção da ex-presidente. Transformar essa legitimidade em alcance nacional será, porém, o verdadeiro teste.

Kicillof já provou que tem visão política aguçada. Isso ficou evidente em 2023, quando entrou em rota de colisão estratégica com Cristina Kirchner. 

A ex-presidente queria lançar o senador Eduardo “Wado” de Pedro como candidato presidencial do kirchnerismo, o que exigiria que Axel abrisse mão da província — sua base de poder e principal capital político. Ele recusou. A decisão frustrou os planos de Cristina e acabou levando Sergio Massa à candidatura, formalmente apoiado pela ex-presidente, mas derrotado por Javier Milei. O resultado reforçou que a aposta de Kicillof era a correta.

Apesar de ter se tornado conhecido no cenário nacional da política argentina pelas mãos de Cristina Kirchner, Kicillof não se submete incondicionalmente ao poder e à influência da família Kirchner dentro do peronismo. Isso ficou bastante evidente ainda durante a campanha presidencial de 2023, quando explodiu o escândalo de Martín Insaurralde — chefe de gabinete e aliado de Máximo Kirchner. Máximo, filho de Cristina, deputado nacional e presidente do Partido Justicialista da província de Buenos Aires, lidera a La Cámpora, grupo juvenil kirchnerista que exerce grande peso sobre o núcleo duro do movimento. 

Quando Insaurralde foi flagrado em um luxuoso iate na Espanha em plena campanha eleitoral, Kicillof exigiu sua renúncia imediata. O gesto simbolizou independência: o governador não se curvaria à tutela kirchnerista, afirmando autonomia sem romper formalmente com o movimento.

O distanciamento ficou mais evidente quando Kicillof falou publicamente que era “tempo de compor novas canções”, uma metáfora para a necessidade de renovar o peronismo e buscar consensos mais amplos. Para o kirchnerismo duro, porém, a frase soou como uma traição: não apenas sugeria autonomia de Axel, mas também questionava a centralidade de Cristina e de Máximo no projeto político do movimento.

A reeleição em Buenos Aires consolidou Kicillof como novidade e ponto de ruptura. Parte de sua força política se apoia na base consolidada de prefeitos em todo o território que governa, que garantem sustentação local e mobilização do eleitorado. Em 2025, ao separar pela primeira vez em quase quatro décadas as eleições legislativas provinciais, em setembro, das nacionais, em outubro, ele assumiu um risco calculado: caso o peronismo fracassasse em seu próprio reduto, o desempenho nacional estaria ameaçado. 

Cristina discordou publicamente: em abril publicou um texto no X(antigo Twitter) onde dizia que “o melhor para os bonaerenses em geral e para o peronismo em particular é votar apenas uma vez, no dia 26 de outubro. Ou seja, eleições simultâneas, como vem sendo feito há mais de 40 anos”. 

Em junho, em meio à sua condenação judicial — atualmente em prisão domiciliar —, alertou que o resultado de setembro seria determinante para outubro, lembrando que um peronismo enfraquecido no nível provincial comprometeria as chances nacionais.

Nos últimos momentos antes do fechamento das candidaturas, a lista Fuerza Patria foi construída para equilibrar interesses divergentes. Gabriel Katopodis, ministro do governo provincial e ex-prefeito do município de San Martin, assumiu a cabeça de lista — neutro e aceito por todos. A escolha simbolizava mais do que estratégia: Kicillof podia liderar sua base mantendo narrativa de unidade.

O peronismo chega de cara a 2027 fragmentado em quatro correntes por hora: o kirchnerismo duro, centrado em Cristina e Máximo; o massismo, enfraquecido, mas ainda relevante; o kicillofismo, alternativa geracional em busca de renovação; e Juan Grabois, com seu partido Pátria Grande, que embora próximo a Cristina, atua como força autônoma dentro do movimento. Cada bloco carrega feridas antigas, ressentimentos acumulados e disputas internas que evidenciam a dificuldade de se unir em torno de um projeto coerente.

Kicillof possui fôlego político, base popular e legitimidade de duas vitórias consecutivas. Mas os dilemas são claros: como expandir sua imagem nacionalmente? Como dialogar com setores independentes e de centro, essenciais para uma vitória presidencial? E, acima de tudo, como reconstruir unidade em um peronismo marcado por rivalidades históricas?

Transformar Axel em presidenciável implica superar obstáculos significativos. Seu entorno ainda é pouco profissional, carece de capacidade de articulação política robusta e as forças que o apoiam não se consolidaram em bloco próprio, mas sim em oposição ao kirchnerismo. 

A construção de uma equipe qualificada, capaz de enfrentar desafios nacionais e negociar alianças estratégicas, será decisiva para que seu nome transcenda Buenos Aires e se torne uma alternativa viável à presidência.

A história ensina: o peronismo sobreviveu às crises quando conciliou contradições internas — Perón equilibrando sindicatos e militares, Menem integrando aparato partidário e neoliberalismo, os Kirchner unindo direitos humanos e reconstrução pós-2001. Hoje, essa síntese não existe. O risco é que o movimento se transforme em uma federação de caciques, incapaz de oferecer alternativa de poder — exatamente o cenário que Milei deseja.

O futuro de Kicillof — e, em grande medida, da Argentina — dependerá de sua habilidade em liderar a recomposição do peronismo. A vitória de setembro mostrou que ele possui fôlego político, mas o caminho até 2027 será marcado por confrontos internos, negociações estratégicas e testes de liderança. 

Cristina Kirchner, embora atualmente impedida de disputar eleições e sob prisão domiciliar, não é carta fora do baralho; seu peso político permanece, moldando decisões e alianças dentro do movimento. Para derrotar o mileísmo e a extrema-direita em 2027, a estratégia passa obrigatoriamente pela construção da unidade peronista — uma responsabilidade que, agora, talvez recaia sobre as costas de Axel Kicillof. A Argentina, assim, observa atentamente: o futuro do país passa, mais do que nunca, pela capacidade de unir o peronismo.

*Paulo Pereira é jornalista brasileiro, mestre em Cinema, e vive na Argentina há 12 anos.