Do susto ao conforto: cuidados paliativos combatem sofrimento e necessitam ser mais conhecidos
Abordagem visa qualidade de vida do paciente e deve ser oferecida a partir do diagnóstico

Receber um diagnóstico de uma doença grave é um divisor de águas. As dúvidas sobre as chances de cura se misturam às incertezas com relação à qualidade de vida. É nesse momento que uma prática da medicina atua com o objetivo de acolher o paciente de maneira integral: os cuidados paliativos.
Ainda pouco conhecidos e cercados dos tabus relacionados à finitude da vida, os cuidados paliativos são classificados como uma abordagem médica, realizada em equipe, simultaneamente, por equipe multiprofissional, como médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, nutricionistas, farmacêuticos, incluindo, lideranças espirituais e voluntários.
O ponto central para compreender o alcance da abordagem, é ter como referência a integralidade da atuação frente ao paciente, uma ideia de “cuidado por inteiro”. Nesse sentido, os princípios básicos do atendimento, segundo a Academia Nacional de Cuidados Paliativos, principal entidade do segmento, são relacionados ao cuidado, além dos sintomas físicos, a outras questões profundas de natureza social, psicológica e espiritual.
No dicionário, a palavra “paliativo” é um adjetivo que se refere a uma perspectiva de “acalmar, abrandar, atenuar, suavizar temporariamente um mal”. De maneira geral, esse significado se conecta com a ideia da abordagem paliativista na medicina, porém, as formas como esses cuidados ocorrem no cotidiano do paciente ainda merecem ser amplamente divulgadas e desmistificadas na sociedade.
Coexistência com tratamento curativo
Muitos pacientes ainda associam as palavras “cuidados paliativos” ao fim imediato da vida. O médico Joaquim Pinheiro Vieira Filho, coordenador do Centro de Cuidados Paliativos do Hospital A.C.Camargo, comenta que, em um primeiro momento, a maioria dos pacientes e familiares não recebem como uma boa notícia a entrada de uma equipe de cuidados paliativos ou a chegada de um médico paliativista no quarto.
“Quando são encaminhados, eles logo entendem que a doença está muito avançada, que irão morrer logo, que o médico talvez tenha desistido do tratamento. Infelizmente, isso ocorre por falta de conhecimento. É uma rotina nossa explicar o que são esses cuidados”, conta Joaquim Pinheiro.
O coordenador do setor hospitalar aponta que isso ocorre porque, antigamente, não havia coexistência entre os cuidados paliativos e os tratamentos para as doenças de base. Quando o profissional não tinha mais nenhuma opção de tratamento curativo, era o momento em que as pessoas eram encaminhadas para os cuidados paliativos, na maior parte das vezes, já em contextos de doença muito avançada, no fim da vida.
“Havia uma exclusão, uma barreira entre as áreas. Com o passar do tempo, houve o entendimento da necessidade de controlar o sofrimento independente do momento em que a pessoa está na doença”, diz o médico.

Segundo a literatura médica, foi na década de 60 que os cuidados paliativos aparecem de maneira estruturada como uma área distinta, com a estruturação dos hospices – termo em inglês que se refere a unidades específicas de cuidados paliativos, existentes até hoje.
Em 1990, a OMS, Organização Mundial da Saúde, definiu pela primeira vez para 90 países e em 15 idiomas o conceito e os princípios de cuidados paliativos, reconhecendo e recomendando.
“O nosso trabalho de cuidado é centrado na pessoa, é quando a gente escuta o paciente, a gente divide o cuidado com ele, ouvimos o que ele espera, as decisões são sempre compartilhadas. Temos protocolos baseados em evidências científicas, claro, mas colocamos sempre o paciente no centro”, explica Pinheiro.
Viver em cuidados paliativos
“Minha luta é para ser tratada com dignidade, com humanidade. Geralmente, sempre somos tratados a toque de caixa, mas cada corpo é um corpo, inclusive, cada tipo de câncer é um tipo de câncer”, relata Dani Louzada.
A publicitária Daniela Louzada descobriu um câncer cerebral aos 40 anos, após um período de sintomas comuns no cotidiano em grandes cidades e rotinas agitadas, as dores de cabeça, que considerava simples e tratava em casa com analgésicos, até ter a primeira convulsão e ser socorrida pelo porteiro de seu prédio. A busca por entender o que estava acontecendo com seu corpo naquele momento ocorreu três anos após ela ter perdido seu pai, vítima de câncer pulmonar.
Usuária do SUS, em 2019, passou por uma cirurgia cerebral em que relata ter sido possível apenas retirar uma amostra do tumor para classificar o tipo da doença, que já foi descoberto no segundo grau. Ela comenta que, inicialmente, ao ver os exames, já havia demonstrado preocupação com a abordagem cirúrgica, devido ao tamanho.
“Eu disse: doutor, o senhor vai mexer no meu HD assim desse jeito? De duas uma, ou eu fico uma batata em cima de uma cama ou eu não saio com vida da mesa de cirurgia”, lembra Louzada.
Do diagnóstico à decisão sobre os caminhos do tratamento com uma equipe multidisciplinar, foram cinco meses. Em 2021, a abordagem paliativista se tornou ainda mais presente porque ficou constatado que os tratamentos curativos não resultaram em melhora. Atualmente, após sete anos com idas e vindas de internações em momentos mais críticos dos sintomas, ela trata a doença em casa, toma fortes medicações, recebe injeções doloridas, e conta com o auxílio de uma cuidadora.
Dani Louzada conta com a ajuda de amigos, tanto no apoio emocional quanto financeiro, devido ao seu alto custo de vida, resultante de um câncer que progride e tem como característica ser incapacitante. Mesmo afirmando estar “cercada de amor”, lembra que viveu episódios de abandono ao longo da jornada desde a descoberta da doença. “A gente esquece que todos nós precisamos de cuidados, afeto, amor e uma rede de apoio”, diz.

Ativista de diversas causas sociais, a publicitária sempre foi cuidadora de muita gente e agora vive o outro lado da situação. “A dor é inevitável, está sempre presente na minha vida, acaba sendo um amiga, nós nos respeitamos até onde dá. Eu não tinha outra opção porque eu gosto muito de viver, sou uma pessoa que sou da vida, e sou da vida mesmo, das causas justas”, define.
Louzada compara o diagnóstico com uma bifurcação em que o paciente precisa escolher entre escolher viver ou não, e que por conta disso, para ela, seguir no caminho do ativismo, mesmo com toda a adversidade e impacto em seu cotidiano, é muito importante. “Eu escolhi viver, e não saberia morrer diferente, de outro jeito, sem ser quem eu sou”, pontua.
Além do ativismo em áreas vulneráveis socialmente no centro de São Paulo, como a Favela do Moinho e a região da Cracolândia, Daniela criou um canal nas redes sociais chamado Terminal, que aborda questões da finitude e pontos específicos sobre os cuidados paliativos com informação.

Paciente do ICESP, o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, ela defende que mesmo os cuidados mais simples das equipes de enfermagem fazem a diferença para os pacientes que convivem com dores oncológicas, como evitar barulhos, portas batendo. Hoje, lamenta que setores importantes como o CAIO, Centro de Apoio a Intercorrências Oncológicas, uma espécie de pronto-atendimento da unidade, esteja em condições precárias, com problemas na estrutura, como cadeiras quebradas e falta de profissionais.
Política Nacional de Cuidados Paliativos
De acordo com o Atlas da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, de todos os serviços realizados no Brasil, 52% são feitos exclusivamente a partir da rede pública, com o SUS. A rede privada representa 32% e 15% das equipes atuam em ambas as redes.
O levantamento da entidade, divulgado em 2023, mostrou um crescimento de 32% dos serviços de abordagem paliativa no último período, em relação a 2018. O número total de serviços cadastrados na rede é de 234 pontos de atendimento espalhados pelo país.
A região Sudeste é a que mais concentra pólos de cuidados paliativos, com 41% dos serviços (98), seguida por Nordeste 25% (60), Sul 17% (40), Centro-oeste 12% (28) e a região Norte com apenas 3% dos serviços, única região que não possui esse tipo de atendimento em todos os estados.
Em maio de 2024, o Ministério da Saúde lançou uma política inédita com estratégias de avanço dos mecanismos de cuidados paliativos no Brasil. Segundo a pasta, o investimento será de R$ 887 milhões ao ano, com a perspectiva de habilitar cerca de 1,3 mil novas equipes.
A Política Nacional de Cuidados Paliativos está conectada com outras duas frentes, o Programa Mais Acesso a Especialistas e os trabalhos das Equipes de Saúde da Família.

Além de cuidar do paciente, os cuidados paliativos também abarcam familiares e pessoas próximas, que sofrem junto ao longo do tratamento. O médico Joaquim Pinheiro, coordenador do Centro de Cuidados Paliativos do Hospital A.C.Camargo, afirma que há evidências de que familiares cujos pacientes recebem cuidados paliativos acabam sofrendo um processo de luto com menor impacto.
“A gente afirma a vida e considera morte como um processo natural. Considerando a morte dessa forma, como algo natural, a gente não quer salvar ninguém dela porque ela vai acontecer, entendendo isso, que a morte não precisa ser combatida, nosso trabalho é estar ao lado da pessoa que está com a doença, que está vivendo esse processo da vida”, destaca o médico.