Boletim informativo do partido, publicado pouco antes do centenário da Abolição, está disponível no Centro de Memória da Fundação Perseu Abramo

Em 1988, movimento negro do PT já mostrava sua força ao desmistificar 'fim da escravidão' no país
Reprodução: CSBH

A edição de abril de 1988 do Boletim Nacional do Partido dos Trabalhadores antecipou em sua capa o marco de 100 anos da Abolição da Escravatura no Brasil. Longe de qualquer celebração, a publicação já questionava no título o próprio processo abolicionista, que não poderia ser considerado um “milagre” de salvação da população negra ocorrido em 13 de maio de 1888.

Com o título “Um século de lutas pela abolição de preconceitos”, o boletim deixava claro o posicionamento crítico da legenda e antecipava debates que hoje permanecem centrais na política racial brasileira. O material está disponível no Centro de Documentação e Memória Sérgio Buarque de Holanda (CSBH), da Fundação Perseu Abramo.

“O movimento negro do PT pretende participar ativamente dos ‘festejos’ do Centenário da Abolição. Mas irá participar de forma crítica e desmistificadora. O que significa abolir? Extinguir, acabar ou revogar?”, questiona o sociólogo Florestan Fernandes em artigo publicado na edição.

O texto segue apontando que “o 13 de maio foi um ato de romantismo político (do ponto de vista da Casa Imperial) e jogou contra o trono a fúria dos últimos senhores de escravos. De fato, a escravidão esgotara-se como modo de produção”, ao mesmo tempo em que a mão de obra nas lavouras já vinha sendo substituída por trabalho livre.

Florestan também propõe que seria necessário realizar uma nova abolição, desta vez voltada para os reais interesses da população negra, com igualdade de oportunidades e inserção plena na sociedade. “Daí ser imperioso o desmascaramento da história – a começar pelo 13 de maio e pela realidade concreta de uma República que só é democrática para os de cima. A emancipação coletiva dos de baixo, no estágio atual, exige que o PT se volte para o passado e descubra qual era a essência do 13 de maio. Como outras manifestações históricas similares, o 13 de maio foi uma revolução social dos brancos, pelos brancos e para os brancos dos estratos sociais dominantes.”

Leia o boletim na íntegra: Boletim Nacional do PT – Abril de 1988 (PDF)

Farsa racial

Em outro artigo, o advogado Hédio Silva Júnior entrevista o ex-governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra, então um dos principais porta-vozes das lutas antirracistas dentro do partido. Já no título, a crítica à narrativa oficial sobre a Abolição é direta: “A democracia racial no Brasil é uma farsa”.

“O PT entende que a população negra – que, aliás, é maioria em nosso país – não tem o que comemorar no Centenário. Isso porque a lei assinada pela princesa Isabel foi a grande saída encontrada pela monarquia para manter sua base de dominação e, na prática, transformou milhões de escravizados em despossuídos, marginalizados e discriminados”, afirmou Dutra.

Sobre as comemorações previstas para aquele ano, ele reforçou que o partido teria uma postura crítica: “O PT vai participar do Centenário com uma posição crítica e não festiva. Neste sentido, a Secretaria Nacional de Movimentos Populares criou um grupo de trabalho que está preparando uma série de atividades para este ano, as quais serão desenvolvidas juntamente com as diversas Comissões e Secretarias de Negros organizadas nos estados.”

O boletim também destaca o pioneirismo do PT na mobilização de movimentos negros e na inclusão de lideranças negras no partido. Em 1988, foram realizadas reuniões preparatórias para o II Encontro Nacional “O PT e a Questão Racial”, que aconteceria em setembro daquele ano em Vitória, no Espírito Santo. Antes disso, foram promovidos encontros regionais para a escolha de delegados e definição da pauta.

A publicação ainda resgata a trajetória política de Benedita da Silva, uma das primeiras mulheres negras a conquistar espaço na política institucional. Ela foi eleita vereadora do Rio de Janeiro em 1982, tornando-se a primeira mulher negra a ocupar esse cargo na cidade. Em 1986, foi eleita deputada federal constituinte, sendo uma das poucas mulheres e a única mulher negra na Assembleia Nacional Constituinte de 1987–1988, responsável pela elaboração da atual Constituição Federal.

Benedita é reconhecida como uma figura histórica na luta por igualdade racial, de gênero e justiça social no Brasil.