Em uma semana, mais de 80 universidades argentinas foram ocupadas por milhares de estudantes, professores e trabalhadores

Paulo Pereira*

Em uma semana, mais de 80 universidades argentinas foram ocupadas por milhares de estudantes, professores e trabalhadores
Reprodução Instagram

Buenos Aires, outubro de 2024: após enfrentar a maior marcha estudantil dos últimos anos que levou às ruas mais de 1,5 milhões de pessoas em abril deste ano contra a política econômica e o ajuste que retira investimentos do governo na educação, o congresso argentino não conseguiu reverter o veto do presidente à Lei de Financiamento das Universidades no início de outubro. O parlamento argentino não pode rever a questão por um período de um ano.

O veto ao financiamento das universidades que os deputados deixaram passar foi a ponta da lança de um movimento estudantil que está implantando diferentes medidas de força contra o ajuste libertário. A lei que Milei vetou implicava a atualização do orçamento pela inflação.

O valor projetado é muito baixo, o que significa que seu funcionamento está em perigo real. Soma-se a isso o total desfinanciamento e esvaziamento do sistema científico e tecnológico em andamento, agravado pelo recente escândalo da retenção de fundos para pesquisa científica que já haviam sido concedidos e eram provenientes de organizações internacionais, como o BID e o Banco Mundial. O que fica claro é que não se trata de falta de recursos ou de “equilíbrio fiscal”, mas de uma intenção deliberada de destruir o sistema de educação pública na Argentina.

Até agora, poucos atores conseguiram desafiar o governo do anarcocapitalista Javier Milei, mas a comunidade universitária conseguiu. De acordo com pesquisas recentes, o confronto atingiu a imagem do presidente, apesar das tentativas do governo de atacar a comunidade estudantil com acusações permanentes e fake news.

O governo Milei contra-ataca dizendo que as universidades possuem caixas-pretas, são um “ninho de comunistas”; que possuem “milhares de trabalhadores fantasmas”; que é necessário fazer auditorias nas contas das universidades, e que reitores e professores são a “casta” com salários milionários. Nada disso tem funcionado para mudar a opinião pública. A Consultora Zuban Córdoba publicou recentemente o informe “Universidade Pública, Orgulho Nacional”, onde afirma que poucos temas têm gerado tanto debate na opinião pública como as universidades na era Milei.

O consenso é majoritário e contundente: 99% dos entrevistados pela pesquisa acreditam que a educação é a ferramenta necessária para fazer crescer o país, 59,3% estão contra o veto presidencial, 86,4% estão de acordo que as universidades públicas são um orgulho nacional.

Os números da pesquisa apenas mostram o resultado das jornadas de protestos e ocupações das universidades de norte a sul do país, que geraram imagens históricas de resistência estudantil que talvez signifiquem um despertar popular contra o avanço das políticas implementadas pelo ultraliberal Javier Milei. Estamos diante de um movimento capaz de catalisar a raiva acumulada contra um governo que ofende e empobrece os trabalhadores?

Na capital federal, os estudantes da Universidade de Buenos Aires (UBA) votaram, na mesma noite que se aprovou o veto, pela realização de paralisações de 24 a 72 horas em todos os cursos. Pelo menos 20 universidades aderiram às manifestações e às aulas públicas nas universidades nacionais de La Plata, Mar del Plata, Quilmes, Moreno, La Matanza, Avellaneda, José C. Paz, General Sarmiento, San Martín, Rosario, San Luis, Córdoba, Salta, Tucumán, Jujuy, San Juan, La Pampa, Patagônia Austral, Comahue y Tierra del Fuego.

A Federação Nacional de Professores Universitários (CONADU) confirmou uma greve de 48 horas a partir da segunda-feira, 21, que faz parte de uma semana inteira de protestos. Na quarta-feira, 23, por exemplo, haverá aulas públicas em frente ao Congresso Nacional a partir das 12 horas.

As “tomas de universidades” como forma de luta estudantil não é nova – como o Ministro-chefe de gabinete, Guillermo Francos, afirmou em tom ameaçador – mas agora assumiu um caráter maciço, nacional e modernizado: exames finais são permitidos, as aulas são ministradas e até mesmo alguns documentos são produzidos ou até mesmo formaturas com as celebrações clássicas.

No território, cada universidade enfrenta suas próprias realidades, com organização e diferentes acordos entre as faculdades e as autoridades. Mas os jovens nos surpreendem mais uma vez ao vermos um movimento estudantil que parece ter ressurgido inesperadamente.

Os estudantes universitários são “um bando de esquerdistas”, como o presidente e seus seguidores os definem? Eles são uma elite minoritária? Os estudantes que, há um ano, o senso comum afirmava que votariam em Milei, de repente se tornaram esquerdistas? Existem “estudantes de verdade que querem estudar e não são permitidos por alguns autoritários” que assumem o controle das faculdades? Há algo de novo nesse conflito e por que estamos surpresos? O movimento estudantil estava adormecido? Se sim, desde quando? Quando ele acordou?

Oitenta por cento das matrículas universitárias na Argentina pertencem às universidades nacionais. Cinquenta por cento estão concentrados nas universidades “tradicionais” (como as de Córdoba, Buenos Aires, La Plata, Rosário e Tucumán) e a outra metade está distribuída entre as universidades de todo o país – 18 delas localizadas na região metropolitana de Buenos Aires – e quase todas foram criadas recentemente (trinta anos ou menos) ou muito recentemente (entre 2009 e 2022).

Muitas províncias tiveram uma universidade pela primeira vez nos últimos anos: 13 novas universidades foram criadas entre 1989 e hoje, e isso inclui todas as regiões: nordeste, noroeste, centro, interior da província de Buenos Aires e Patagônia. No ano de 2024, a Argentina terá pelo menos uma universidade por província.

É claro que esse cenário mostra atores, trajetórias e experiências que têm pouco a ver com o cenário que ocorreu no final da década de 1990, quando as grandes universidades nacionais e as federações de estudantes foram os protagonistas do último conflito nacional realmente maciço ligado a cortes orçamentários. Em termos mais claros: naquele ciclo de protestos, a maioria das universidades de hoje não existia ou tinha apenas cinco ou seis anos de existência.

A última ditadura militar (1976-1983) avançou e implementou o sistema de pagamento de mensalidades para os estudos de graduação na Argentina com os mesmos argumentos que hoje o governo e o presidente Javier Milei usa nas redes, na imprensa ou através do seu exército de trolls: que os pobres não devem subsidiar a

universidade para os ricos; que aqueles que podem pagar devem pagar e, em todo caso, aqueles que não podem, devem pedir uma bolsa de estudos. Durante a ditadura, o movimento estudantil resistiu a essa medida e conseguiu gerar um consenso social de que a universidade da Argentina democrática seria de acesso livre e gratuito.

É possível que o conflito seja desativado a médio prazo, pois, como em todos os conflitos, há um ciclo de expansão e retração. No entanto, o que permanece é um marco importante na socialização política dessas novas gerações de estudantes, um aprendizado político que ocorre não apenas nas assembleias, protestos e aulas públicas, mas também nas duas mobilizações de massa que eles viram e das quais participaram. O governo de Javier Milei encontrou nos estudantes a oposição nas ruas que não tem no congresso nacional e nos setores da política tradicional.


Paulo Pereira é jornalista e mestre em cinema documentário. É coordenador do Núcleo do PT na Argentina