Descriminalização para quem?
O julgamento do STF que descriminalizou o porte de maconha foi provocado por um recurso da Defensoria Pública de São Paulo em favor de um réu condenado por ter sido flagrado com 3g da planta
Fernanda Otero
Após mais de 12 anos, foi concluído, no Supremo Tribunal Federal (STF), o julgamento do processo que, por fim, descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal. Por 6 votos a 3, a decisão fixou a tese de que “não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa”.
O julgamento foi provocado por um recurso apresentado pela Defensoria Pública de São Paulo em favor de um réu flagrado com três gramas de maconha na prisão e condenado a prestar serviços comunitários.
A posse da droga continua sendo ilegal, mas o indivíduo não incorreria em crime e as punições para o ato passam a ter natureza administrativa, e não criminal. O colegiado também definiu o limite de 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas fêmeas.
No seu voto em favor da descriminalização, o ministro Alexandre de Moraes argumentou que a quantidade de drogas seria, na maioria das vezes, o único critério para diferenciar o usuário do traficante. “Na capital de São Paulo, se considera tráfico, em média, o porte de 33g de cocaína, 17g de crack e 51 g de maconha. No interior do estado, 20g de cocaína, 9g de crack e 32g de maconha. Não é possível que haja tanta variação dentro do mesmo estado”, disse o ministro na ocasião.
Guerra às drogas
Em 2015, em uma das sessões sobre o Recurso Extraordinário, o advogado Rafael Custódio, que já atuou no instituto, Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), Pastoral Carcerária e Instituto Sou da Paz, declarou que “a guerra às drogas é, na verdade, uma guerra às pessoas […] traz consigo, como elemento central, a necessidade da expansão ininterrupta do poder punitivo do Estado”.
Um estudo realizado pela Associação Brasileira de Jurimetria sobre os impactos da Lei Antidrogas 11.343/2006 revelou que a população de presos por tráfico de drogas chega a mais de 150.000 pessoas, um terço de toda a população prisional.
Álcool é mais nocivo que maconha, aponta especialista em dependência
De acordo com o National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism (NIAAA), aproximadamente 5.1 milhões de jovens entre 12 e 20 anos relataram consumir bebidas alcoólicas.
Globalmente, a faixa etária de consumidores de maconha varia, mas pesquisas indicam que jovens adultos entre 18 e 34 anos são os principais usuários. Um estudo da UNODC (United Nations Office on Drugs and Crime) de 2021 destacou que o consumo de maconha é maior entre indivíduos de 15 a 24 anos. Na Europa, o relatório do European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction (EMCDDA) confirma que cerca de 15% dos jovens adultos (15-34 anos) relataram uso de maconha no último ano.
Para a psicóloga e psicanalista Margarete Simas Ramos Marques, especialista em acompanhamento de pacientes com dependência de álcool e drogas, a partir dos 14, 15 anos, acontece uma fase de experimentação. “Às vezes a pessoa deixa de usar por um tempo até acontecer algum evento social como uma festa, uma viagem, onde pode haver novo contato”, explica a psicanalista.
Margarete considera o uso do álcool, uma droga lícita socialmente tolerada, muito mais nociva do que a maconha. A maconha não causa uma dependência química, explica ela. “Tem um atraso cognitivo, mas não uma coisa grave como acontece com o uso do álcool. A gente chama de químico quando é uma dependência orgânica. Mas tem uma dependência psicológica. Conforme a pessoa faz o uso de maconha muito cedo, isso eu observei na minha clínica, com 12, 13 anos, existe um atraso na parte cognitiva e emocional dessa pessoa, existe um dano psicológico”.
A psicanalista enfatiza que o álcool tem um efeito colateral muito mais grave. A iniciação precoce ao álcool pode levar a sérios problemas de saúde física e mental, incluindo o aumento do risco de desenvolver dependência na vida adulta.
Diversos estudos internacionais apontam essa tendência e Margarete pôde comprovar essas teses em sua especialização na Escola Paulista de Medicina.
“Existem estudos da Escola Paulista de Medicina que comprovam que o álcool destroi muitos neurônios levando a problemas neurológicos gravíssimos, ao ponto dos indivíduos não terem controle dos esfíncteres”, descreve. “A síndrome de abstinência ao álcool provoca, ainda, delírios e psicose alcoólica, onde pessoas fazem coisas que nem se lembram depois. Isso não existe no efeito da cannabis, do THC.”, explica a especialista.
De acordo com o National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism (NIAAA), aproximadamente 5.1 milhões de jovens entre 12 e 20 anos relataram consumir bebidas alcoólicas.
Países que descriminalizaram o uso
Na América Latina, o Brasil foi um dos últimos países a deixar de tratar o usuário como criminoso. Agora, apenas o Suriname e as Guianas consideram crime o porte de drogas para uso pessoal.
Nos últimos anos, a legalização da maconha tem ganhado força, refletindo mudanças significativas em políticas públicas e atitudes sociais. Vários países têm avançado no sentido de regulamentar o uso medicinal e recreativo da droga, alegando benefícios econômicos e de saúde pública.
Nos Estados Unidos, a maconha é legal para uso recreativo em 23 estados e para uso medicinal em 38 estados e em Washington D.C. Alguns dos estados mais recentes a legalizarem a substância incluem Nova York e Virgínia.
O Canadá foi um dos primeiros grandes países a legalizar a maconha para uso recreativo em 2018, sob o governo do primeiro-ministro Justin Trudeau. De acordo com um estudo da Statistics Canada, os jovens adultos de 18 a 24 anos representam a maior faixa etária de consumidores, seguidos pelo grupo de 25 a 34 anos.
Na Europa, a situação é mais variada. Países como Holanda e Portugal têm políticas liberais de longa data em relação ao uso de drogas e a quantidade está limitada a 25 gramas. Na Holanda, as “coffee shops” podem vender pequenas quantidades de maconha de maneira legalizada desde 1976, porém novas regras implementadas em março deste passado impuseram novas restrições ao funcionamento dos tradicionais bares do Red Light District.
Portugal, por sua vez, descriminalizou todas as drogas em 2001, focando em uma abordagem de saúde pública em vez de criminal. Mais recentemente, Luxemburgo anunciou a intenção de legalizar o uso recreativo da maconha, enquanto a Itália está considerando reformas semelhantes.
Na Alemanha, os maiores de 18 anos estão autorizados a portar até 25 gramas de cannabis para uso pessoal. O consumo em locais públicos é permitido, com exceção de áreas próximas a escolas, playgrounds e instalações esportivas. Além disso, está vetado o uso em zonas de pedestres das 7h às 20h.
No âmbito doméstico, adultos podem armazenar até 50 gramas de cannabis e têm o direito de cultivar até três plantas para uso pessoal. Com a chegada do mês de julho, clubes de cannabis com até 500 membros poderão oficialmente cultivar e distribuir a planta entre seus associados. Apesar dessas permissões, a comercialização da cannabis em estabelecimentos comerciais segue proibida, além da restrição de uso para menores de idade.
Implicações Econômicas e campanhas educativas
A legalização do uso de maconha em diversas jurisdições tem implicações profundas. Economicamente, ela gera receitas significativas através de impostos. Em termos de saúde pública, a legalização permite a regulamentação da qualidade e potência da droga, além de financiar campanhas de educação e prevenção.
Enquanto a legalização da maconha em países da Europa e América do Norte representa uma mudança paradigmática nas políticas de drogas, continua a ser um tópico polarizador, com debates acirrados sobre seus benefícios e riscos. Acompanhando essas mudanças, é crucial monitorar e adaptar as políticas para equilibrar a liberdade de uso com a proteção da saúde pública.
O STF fez constar na decisão um apelo aos Poderes Legislativo e Executivo. Os ministros pediram que fossem adotadas “medidas administrativas e legislativas para aprimorar as políticas públicas de tratamento ao dependente, deslocando o enfoque da atuação estatal do regime puramente repressivo para um modelo multidisciplinar que reconheça a interdependência das atividades de prevenção ao uso de drogas; atenção especializada e reinserção social de dependentes; e repressão da produção não autorizada e do tráfico de drogas”.
Os ministros conclamaram os poderes “a avançarem no tema, estabelecendo uma política focada não na estigmatização, mas no engajamento dos usuários, especialmente os dependentes, em um processo de autocuidado contínuo que lhes possibilite compreender os graves danos causados pelo uso de drogas”.
A decisão recomenda ainda a criação de órgãos técnicos na estrutura do Executivo, compostos por especialistas em saúde pública, para viabilizar a concretização de uma política pública sobre o uso da cannabis.