“Seu eleitorado também não debate sobre o Brasil, não apresenta projetos para o país nem oferece soluções para os problemas nacionais. Eles não querem discutir política” diz o advogado e ex-deputado

Fernanda Otero

O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh é o entrevistado da Revista Focus desta semana e nos ajuda a compreender os movimentos e a personalidade do capitão e investigado pela Polícia Federal, Jair Messias Bolsonaro.

'Para entender o bolsonarismo sem Bolsonaro'’: as análises de Luiz Eduardo Greenhalgh

Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo em 1973, Luiz Eduardo Greenhalgh dedicou-se à advocacia focada em causas humanitárias, defendendo presos políticos durante o período da ditadura civil-militar no Brasil, além de representar sindicatos e organizações políticas. Nessa época, também prestou assessoria jurídica a jornais alternativos que combatiam o regime. Como ativista dos direitos humanos, teve papel ativo em várias iniciativas da sociedade civil contra a ditadura, incluindo a criação do Comitê Brasileiro pela Anistia em 1976, do Comitê Brasileiro de Solidariedade aos Povos da América Latina em 1980 e a coordenação do projeto “Brasil Nunca Mais” entre 1979 e 1985. 

Foi vice-prefeito de São Paulo na gestão de Luiza Erundina de 1989 a 1993. Além de fundador do Partido dos Trabalhadores foi membro do Diretório Nacional, da Executiva, Secretário de Relações Internacionais e Terceiro-Vice-Presidente. Foi deputado federal por quatro mandatos, autor de projetos que se transformaram em emendas constitucionais e relatou mais de três dezenas de projetos transformados em normas jurídicas. Concorreu à presidência da casa em 2005 e foi derrotado por Severino Cavalcanti, que renunciou ao mandato de deputado alguns meses depois para escapar de uma cassação por envolvimento em pagamento de propina no restaurante da Câmara. 

Durante seu mandato no Congresso, fez parte da Comissão de Direitos Humanos e Minorias e da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Foi o relator do Estatuto do Armamento.

No ano que marca os 60 anos do golpe, Greenhalgh destaca a necessidade de o Brasil revisitar e resolver questões pendentes de sua história política recente para verdadeiramente transitar da ditadura para uma democracia robusta, sublinhando que a mera reconstrução pós-Bolsonaro não é suficiente sem uma transformação substantiva.

– O que significa o silêncio de Bolsonaro?

– Conheço muito bem o Bolsonaro. Fui deputado com ele por pelo menos dois mandatos e conheço sua trajetória. O adjetivo adequado para descrevê-lo seria “mediocridade”. Ele é timbrado pela mediocridade, tendo sido um militar medíocre e um deputado medíocre ao longo de diversas legislaturas. Você não é capaz de mencionar um projeto de lei dele que tenha sido transformado em lei. Como presidente, sua atuação foi medíocre. Ele é uma pessoa medíocre. O que alçou Bolsonaro foi a prisão do presidente Lula. Contudo, mesmo sob essas circunstâncias, havia dúvidas de sua capacidade de vencer as eleições. Não acreditava-se que ele venceria, pois não se sairia bem em debates sobre os problemas brasileiros ou na discussão de um projeto para o Brasil. Na minha opinião, o que realmente salvou Bolsonaro foi a facada. A facada deu a ele um habeas corpus preventivo, pois ele não participou de nenhum debate. Ele virou vítima diante da população, e isso o elegeu.

Enquanto fui deputado, tivemos embates graves. Ele falava mal do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, eu era advogado do MST. Ele falava mal da anistia, eu defendia os anistiados. Ele defendia a tortura, eu era contra a tortura. Ele apoiava o regime militar de 1964, eu era contra. Ele pertencia ao baixo clero, mas nem nesse grupo ele era ativo. Era, na verdade, escanteado até pelo próprio baixo clero. É uma pessoa que não dialoga com ninguém. Costumo brincar que o único dia em que o Bolsonaro era importante, era quando os deputados se reuniam para jogar futebol. Um deputado em Brasília, que havia sido jogador de futebol no Rio de Janeiro, alugava uma chácara onde promovia, com certa regularidade, um jogo de futebol. Convidava os deputados para jogar, e Bolsonaro também era convidado. Portanto, a demanda que os deputados tinham para com ele era apenas para que ele participasse do jogo de futebol na chácara, uma vez por semana. Mas ele não tinha amigos.

Ele é uma pessoa recalcada, medrosa, que nutre ódio contra as mulheres. Veja a forma como ele se dirigiu a Dilma, a Maria do Rosário, as agressões à ex-mulher, a ameaça de morte à ex-mulher, que fugiu, registrou um boletim de ocorrência e deixou o país. A gente esquece essas coisas. Essa é a figura do Bolsonaro. Quando estava na ativa, ele concedeu uma entrevista à revista Veja e desenhou, de próprio punho, um esboço do atentado que planejava realizar no Rio de Janeiro, com o uso de uma bomba em Guandu. Por isso, sofreu um processo na Justiça Militar e foi afastado. O general Geisel, em suas memórias, o considera um mau militar. Bolsonaro é uma pessoa que… Bem, vejo o Bolsonaro com muitos problemas psicológicos e pessoais. Ele tenta se mostrar como machão, mas diante de qualquer situação, foge da polícia. Os depoimentos que prestou acerca de processos e inquéritos na Polícia Federal e no Supremo são risíveis. Na quinta-feira, dia 22, ele entrou e saiu da PF sem pronunciar uma palavra. Foi questionado sobre as joias e se confundiu. Ao falar sobre vacinas, também se confundiu. O que sabe fazer é usar fake news para se promover. Ele é produto de uma circunstância: Lula preso, Dilma afastada pelo impeachment e o PT em uma situação de cerco. Nesse contexto, lançou-se como candidato, veio  a facada e isso o colocou em evidência, culminando em sua eleição. Mesmo assim, não venceu no primeiro turno; a vitória veio no segundo. Sua gestão foi caracterizada pelo ultraliberalismo econômico, com o (Paulo) Guedes na economia, aliando-se ao Trump, Steve Bannon… ele não tem ideologia. A família criou uma unidade em torno de figuras como Steve Bannon e no uso de fake news, que o levou à presidência, o que foi uma tragédia para o Brasil. Se, no governo Juscelino Kubitschek, dizia-se que o Brasil avançaria 50 anos em 5, no governo Jair Bolsonaro, retrocedemos 50 anos em 5. Veja a dificuldade que o presidente Lula está tendo de corrigir o país e reconstruir as coisas.

– Quando você fala da personalidade do Bolsonaro, de que ele era um deputado do baixo clero, uma pessoa rejeitada, ainda assim, ele atraía multidões e tem uma influência na sociedade que é significativa, gostemos ou não. Ele reuniu multidões, reúne multidões e se elegeu.

– Ele é produto de uma época. Ele é o espelho fiel de uma circunstância. Que circunstância? O PT sob cerco e aniquilamento, Dilma alvo de impeachment, Lula preso. Essas circunstâncias todas, com a Operação Lava Jato no auge, propiciaram o surgimento da antipolítica, levando muitos a votarem contra o status quo. E “contra tudo o que está aí”, surge Bolsonaro. Assim, ele se posicionou como o anti-Estado, o defensor do armamentismo, prometendo liberar armas para colecionadores e atiradores, etc. Essa é a circunstância. Outra circunstância é sua associação com o público evangélico. Ele foi até o Rio Jordão, entrou no Rio Jordão, se jogou para trás, e o Malafaia o batizou. Isso conquistou o público evangélico. Ele conquistou o baixo clero. E não tinha solução, as pessoas não queriam ouvir reflexões mais aprofundadas. O que ele fez? Ele viajou de capital em capital, atraindo milhares aos aeroportos, todos aclamando o “mito”.  O que é o “mito”? O “mito” é o tudo que não é nada. Seu eleitorado também não debate sobre o Brasil, não apresenta projetos para o país nem oferece soluções para os problemas nacionais. Eles não querem discutir política. Assim, adotaram o “mito” como ídolo, foi assim que ele se elegeu.

A eleição dele é fora da curva, tenho estudado e observado isso. A eleição dele se assemelha, até certo ponto, à do Jânio Quadros. Um pouquinho, entende? Jânio era advogado formado pela São Francisco, onde também estudei, foi vereador, deputado, prefeito e governador. Assim, quando Jânio se apresenta, é pela postura anti-Estado, combatendo a corrupção; seu slogan era “varre, varre, vassourinha”. Então, era alguém contra a corrupção. Jânio era um tanto histriônico. No entanto, a estroinice de Jânio não chega perto da de Bolsonaro. Às vezes, me pego pensando: que crimes Bolsonaro cometeu? Ele usou documentos falsos para tratar da vacinação da família antes de viajar para os Estados Unidos. Corrupção de menores, certo? A autorização da filha dele foi falsificada, ele se envolveu em associação criminosa.

Essa reunião que veio à tona recentemente, ocorrida em 5 de julho de 2022, é o planejamento escancarado de um golpe. O nível da reunião é lamentável. Reflete, na minha opinião, a verdadeira essência da personalidade de Bolsonaro. Não concatena sujeito e predicado e com objeto direto. Não desenvolve ideias de forma coesa. Usa e abusa do número de palavrões. Salta de um assunto para outro deixando as pessoas perplexas. E fica perguntando: “Nós vamos deixar isso? Nós vamos deixar isso? Nós vamos deixar isso?”  Assim, ele estimula, incita. Afinal, aquela reunião seria o plano para um golpe, para não deixar o Lula assumir se ganhasse a eleição. Esse era o plano: “Se perdermos, não deixaremos o homem assumir”. Ele põe em marcha essas ideias, mas quando chega 27, 28, 29 de dezembro, ele envia R$ 800 mil reais para os Estados Unidos e foge para lá. É por isso que digo que ele é uma pessoa medrosa, covarde. Ele deixa todo mundo aqui e diz: “Vocês cuidem disso!”, enquanto que ele pessoalmente, fica lá, à espera do golpe do 8 de janeiro. Porque ele queria retornar, carregado nos ombros da população, nos braços do povo? Não, esse é o Bolsonaro, assim que ele é, entendeu?

– Agora, quando estamos perto de completar 60 anos do golpe, você consegue ver paralelos entre este momento e aquele de 1964?

– Não, ao fazer essa comparação, vejo que naquele golpe havia, por assim dizer, uma ideologia, preparação, intelectualidade. Desculpe-me, mas nem Bolsonaro, nem no seu entorno, nem em seu governo, houve alguém com o tipo de figura como Golbery do Couto e Silva. Não havia, não tinha ideólogo, não havia nada. É como o quinto time de segunda categoria… Quem é esse general Heleno…

– Eu queria que você comentasse sobre esses personagens também…

– Esse general Heleno é muito interessante, porque ele é uma espécie de alter ego, é uma pantomima, o time do Bolsonaro é uma pantomima. Heleno é um alter ego do Bolsonaro. Eu me lembro que na campanha se falava que o Bolsonaro, se eleito, não ia transacionar com o parlamento e que não ia dar vez ao centrão. E eu me lembro de uma reunião em que esse Heleno levantou-se e começou a cantar uma música referindo-se ao centrão “se gritar pega ladrão, não sobra um meu irmão”. Quer dizer, em uma reunião de deputados do centrão, ele se levanta e começa a cantar “se gritar pega ladrão, não sobra um meu irmão”. O general Heleno foi ao Haiti e o que se fala no Haiti é de um repressor, um capitão-do-mato, um vigilante de quarteirão. Aliás, eu tenho muita preocupação com as forças armadas. Porque se o general Heleno, o Braga Neto, o ex-ministro da Defesa, que são pessoas com este jaez, com esse nível de intelectualidade, que se predispõe a ter como líder o Bolsonaro, onde estão essas forças armadas? Onde está a formação intelectual das instituições militares? É uma questão digna de consideração… Figuras como Castelo Branco, Costa e Silva, nenhum deles se assemelha a Bolsonaro. Bolsonaro é pífio, e ainda assim tornou-se presidente da República. É algo completamente insano. 

A entrada do juiz Sérgio Moro, impulsionada pela Lava Jato, contribuiu para a ascensão desse cidadão à presidência. A Lava Jato o ajudou. Ostensivamente! prendendo Lula, estigmatizando o PT. O general Mourão, que se tornou vice-presidente, teve várias reuniões com Sérgio Moro. Além disso, o primeiro ministro indicado pelo governo Bolsonaro foi Sérgio Moro, para a pasta da Justiça. Compreende? Dessa forma, a Lava Jato desempenhou um papel significativo. Eu acompanhei a eleição de Bolsonaro de dentro da cadeia, ao lado de Lula, e sofri junto com Lula. Estávamos assistindo a um filme, algo desproporcional, cheio de horror, onde todas as engrenagens anti população se uniram. Uma alimentou a outra e assim tudo progrediu. De tal maneira que humilharam o Lula, negando até mesmo o direito dele de ir ao enterro do irmão. Além disso, não tenho dúvidas de que a minha companheira, a nossa companheira, Marisa Letícia da Silva, fundadora do Partido dos Trabalhadores, faleceu devido à pressão causada pela Lava Jato sobre a família de Lula.

-Você acha que haveria um risco de instabilidade no Brasil?

– Não, nenhum. Ele não fará isso. Agora, temos eleições este ano. Ele se apresenta como uma alternativa, mas é o bolsonarismo sem Bolsonaro. Esse também será um tema interessante. Bolsonarismo sem Bolsonaro, o que seria? Seria o Tarcísio (governador de São Paulo), a esposa (Michele Bolsonaro) de Bolsonaro? Quem representa o bolsonarismo? Bolsonaro poderia coexistir com um bolsonarismo sem ele? Acredito que não. Então, parece que precisa ser ele; caso contrário, ele não oferecerá apoio, pois não possui essa articulação política. Muito difícil. Há a possibilidade de ele ser tragado pelas raposas da política, como o presidente do PL, indivíduos oportunistas. Porque ele não articula, não é proativo; digamos, ele é conduzido. Valdemar Costa Neto o manipularia e ele seguiria adiante. Não estou dizendo que ele não trabalhe, não é essa a conotação que desejo dar, mas ele não é inclinado à articulação política, nunca foi. Ele realmente… não é um articulador, alguém que… toma a liderança. E o mais incrível é o depoimento que ele deu, uma entrevista essa semana a uma rádio, afirmando que na casa de Angra dos Reis, onde ocorreu a busca e apreensão, havia um cofre do qual ele não sabia. Meu Deus! Ele diz não saber, soube somente quando a polícia chegou lá. Disse que foi pescar. Pescar onde? De jet-ski. Onde está o jet-ski? Não encontraram o jet-ski. Entende?

É um verdadeiro drama. Visto de fora, ele é um tipo cantinflas, certo? No meio disso tudo. Mas isso nos causa dor, porque ele passou quatro anos no governo, gente. Como você disse, ele tem… muitos apoiadores. Ele tem uma multidão que o segue. Esse é o perigo. Quero entender o que essas pessoas que o seguem pensam. Esse é o problema, não é?

– Com relação ao processo, como é que a gente pode diferenciar o que está acontecendo agora da Lava Jato, mesmo porque pode haver uma interpretação de que quem está conduzindo essa operação é a Polícia Federal do Lula, que cuidados devemos tomar?

– Acredito que o Lula não deve interferir nesse assunto, assim como o governo não deve se envolver. Esta questão está nas mãos do Supremo Tribunal Federal, e especificamente, do ministro Alexandre Moraes. Ponto final. É ele quem está lidando com isso, quem está progredindo nisso. Sempre defendi a ideia de respeitar o devido processo legal. Desejo que todas as pessoas envolvidas nos atos golpistas de 8 de janeiro, na reunião criminosa, essa associação criminosa do dia 5 de julho de 2022, tenham o pleno direito de se defender e que o processo transcorra dentro dos marcos da legalidade. Por essa razão, às vezes, e na semana passada tive essa visão e continuo mantendo, penso que determinadas decisões do Supremo podem contaminar esse assunto. Por exemplo, na semana passada, várias pessoas foram presas e os detidos foram privados de se comunicar para evitar ajustarem suas versões. Essa restrição também foi aplicada aos seus advogados. Negativo, não façam isso! O direito de defesa requer a presença do advogado. Os advogados podem conversar entre si. Os advogados não devem ser confundidos com seus clientes. Foi positivo que a Ordem dos Advogados recorreu ao Supremo para que o ministro Alexandre Moraes esclarecesse esse ponto. E ele esclareceu: “Houve uma interpretação incorreta. Não quero que os acusados, os indiciados, se articulem entre si, se comuniquem para evitar que eles possam alinhar versões. Porém, os advogados têm liberdade. Eles podem fazer o que desejarem”. Portanto, em determinadas situações, devemos estar extremamente atentos a esses assuntos para evitar excessos. Não precisamos de exageros. Não precisamos inventar. As coisas estão escancaradas. Recentemente, obtive a transcrição dos áudios da reunião do dia 5 (de julho). É um escândalo. Compreende? A própria reunião é criminosa, claramente configurando a preparação de um golpe de Estado, a clara intenção de abolir violentamente o Estado de Direito Democrático. Essas pessoas serão indiciadas, disso não tenho dúvidas. Na minha opinião, a família Bolsonaro, em um regime democrático verdadeiro e justo, será criminalmente condenada. Considerando o caso da “rachadinha”, que inclusive atinge Bolsonaro. É muito significativo que o assassino de Marielle morasse no mesmo condomínio que a família Bolsonaro. Há, portanto, relações intrínsecas entre milícias, Rio de Janeiro e bolsonarismo. Compreende? Em algum momento, este assunto exigirá uma análise aprofundada, incluindo efetivamente prisões.

– Bolsonaro tem se dado bem, tem saído ileso. Será que a sensação de impunidade não influencia o comportamento das pessoas ao seu redor? Há algo que ficou para trás e que não resolvemos, qual a sua opinião?

– Com certeza, acredito que nós… Nesse ponto, já não se trata apenas do PT, mas sim da sociedade brasileira como um todo. Quando conquistamos a anistia, passamos pela Assembleia Constituinte, pelas eleições diretas para presidente, deveríamos ter estabelecido, desde a anistia até a Constituinte, os parâmetros legais a que ficariam compelidas as Forças Armadas, que deveriam ter sido incluídas nesses marcos legais.

No entanto, naquele momento, fizemos uma negociação com o centrão. Vale ressaltar que esse centrão não se assemelha ao centrão atual; naquela época, havia representantes da direita e da esquerda no parlamento, além de um centrão, que difere do atual centrão, que só se sacia ao devorar o Estado. Na ocasião, chegamos a um acordo. Dissemos: “as Forças Armadas são importantes, inclusive para a garantia da lei e da ordem”. Considero que o artigo 142 da Constituição foi uma concessão que fizemos na Constituinte e que ajudou a resolver a situação dos militares, permitindo, duas ou três décadas depois, a ascensão de Bolsonaro. Acredito que devemos reavaliar essa situação. Até hoje, não implementamos um processo de justiça de transição eficaz, não completamos a transição efetiva da ditadura para a democracia. Compreende? Ainda estamos sob a tutela dos militares e agora sob a tutela de militares medíocres. O que é ainda pior, pois eles ultrapassam limites em suas pretensões, como vimos claramente nessa reunião em 5 de julho.

Quando a gente fala do bolsonarismo no Brasil, ele está, obviamente, aliado à extrema-direita do mundo todo. Qual a sua análise do avanço do golpismo como prática política desses personagens? 

– Todos esses, são cinco ou seis no mundo inteiro, mas dentre todos, o mais medíocre é o Bolsonaro, ele é o campeão, invencível, imbatível. Trump, às vezes, pode parecer exótico, mas ao menos conhecemos seus pensamentos e desejos. Já Bolsonaro é uma incógnita. (Recep Tayyip) Erdogan e até mesmo figuras de esquerda como Gabriel Ortega, na Nicarágua… não tenho nenhum compromisso com o erro, eu defendi a Frente Sandinista por muitos anos, mas acredito que Daniel Ortega não reflete mais os ideais originais do movimento, hoje temos essas personalidades. Um vento de extrema-direita e ultraconservadorismo sopra pelo mundo, quase roçando o fascismo. Bolsonaro é fascista? Não, ele não é. Contudo, suas atitudes têm tons fascistas. Acredito que, talvez, ele não compreenda teoricamente o fascismo, mas seu comportamento tende para tal. Muitas vezes, esses líderes, ao assumirem o poder e o perderem depois de uma eleição, deixam um legado de destruição para seus sucessores repararem antes de progredir. No Brasil, tenho criticado a abordagem baseada apenas em reconstrução. Não basta apenas reconstruir. Devemos almejar transformação. Se nos limitarmos a reconstruir, ficaremos eternamente presos no ciclo onde um líder extremista destrói, voltamos e reconstruímos novamente, o Lula tem que fazer a reconstrução e também a transformação. Devemos promover uma guerra cultural, uma batalha ideológica, para esclarecer nossos ideais, nossos objetivos, o significado da democracia, do Estado de Direito, e da conquista de direitos para os trabalhadores e para o bem-estar social que almejamos. Devemos expressar claramente nossas opiniões. Abrir o debate é essencial e sem hesitar.  Não devemos evitar debates. No dia 8 de janeiro, se Lula tivesse convocado as Forças Armadas para uma operação de lei e ordem, ele teria sido removido do poder, ele seria o primeiro alvo. Ele foi sábio ao perceber as intenções e agir com cautela. Em vez de decretar a garantia da lei e da ordem, optou por uma intervenção na segurança pública do Distrito Federal, nomeou o interventor. Os responsáveis estão sendo investigados e punidos com condenações severas. Agora, precisamos avançar, especialmente na esfera cultural, ideológica e no âmbito do convencimento político.