Encontro para debater políticas públicas surge como novidade no Brasil: era 1941, em pleno Estado Novo

Isaías Dalle

Ferramenta de participação social bastante utilizada nos governos federais sob o PT – foram 103, entre 2003 e 2014, e sete, em 2023 – as conferências nacionais vêm de muito antes. A 1ª Conferência Nacional de Educação e Saúde aconteceu em 1941, convocada por Getúlio Vargas.

Em 10 de novembro daquele ano, no quarto aniversário do Estado Novo, o presidente recebeu no Palácio do Catete os representantes dos estados para a Conferência, iniciada sete dias antes.

Em reportagem sobre aquele encontro, o Jornal do Brasil de 11 de novembro descreveu o presidente ao centro, enquanto representantes dos Estados, “administradores e técnicos”, louvavam a iniciativa de coordenação em busca de um modelo educacional e de saúde mais eficaz. “Coesão e ordem, a verdadeira integração política em que vive o Brasil”, diz um trecho.

Essa era parte da ideia. A fragmentação administrativa e política ainda era uma das marcas do país. Com o objetivo de alinhar e fortalecer a relação com estados e municípios, Getúlio pretendia trazer os outros entes federativos para perto e em torno de si, como ferramenta de gestão e de política. E, na ausência de mediação partidária, constitutiva do Estado Novo, o presidente precisava construir outras pontes.

Em diversos aspectos, a organização do Estado era outra, como se pode notar pelo fato de educação e saúde serem agrupadas não apenas em um único ministério, à época sob comando de Gustavo Capanema, mas também debatidas em uma única conferência. Desde a garantia de acesso gratuito ao ensino básico e mecanismos de combate a endemias, um enorme leque de propostas foi analisado sem a setorização que seria adotada tempos depois.

A convocação da 1ª Conferência Nacional de Educação e Saúde tinha também um objetivo de ordem prática: reunir dados sobre o que acontecia nessas áreas nos diversos pontos do país. Uma das medidas que antecederam a realização da conferência foi o envio de longos questionários aos gestores municipais e estaduais, solicitando informações a respeito do número de equipamentos, tipo de atendimento prestado, público atendido e práticas em curso, “cujas respostas servirão de base ao estudo dos assuntos a serem debatidos”, conforme comunicação do governo.

O Jornal do Brasil, tomado aqui como referência das reações na imprensa, dividiu-se entre o louvor demonstrado em novembro de 1941 e a crítica ácida à proposta de abrir um debate amplo, como fizera em julho daquele ano, ao comentar o questionário enviado a estados e municípios: “Em vez de se fornecer instruções, pedem-se informações, e essa interessante inversão da exigência da lei prova que não há um roteiro seguros das finalidades que se pretendem atingir com essas reuniões”. 

À parte o estilo do texto, nada muito diferente de críticas feitas no século 21 às conferências convocadas por Lula e Dilma, vistas por muitos como desperdício e improdutivas.

Já na segunda metade dos anos 1980, quando o processo de redemocratização aguçava, até mesmo em setores da imprensa, o desejo por participação popular, o clima era outro. Naquela quadra, algo de muito definidor aconteceu: a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, lançou as bases para conferências com real espaço para a voz das camadas de baixo. 

Coube ao médico sanitarista Sérgio Arouca, que presidia aquela conferência, encaminhar proposta para que os usuários da saúde e os trabalhadores do sistema pudessem participar, como observadores. Foi uma resposta à pressão de movimentos organizados que, mesmo sem direito formal, enviaram delegações e garantiram afluência numérica inédita. O ginásio Nilson Nelson, em Brasília, sediou o encontro.

Dois anos depois, a 8ª Conferência dava frutos, com forte influência na redação do capítulo de Direitos Sociais da Constituição Federal. Em 1990, nascia o SUS (Sistema Único de Saúde). E, nas conferências de Saúde seguintes, a participação de usuários e trabalhadores do SUS passou a ser norma, com direito a voto. A prática se estendeu às demais conferências temáticas.

Nos tempos de Getúlio e até a redemocratização, as conferências tinham perfil elitista, sendo espaço preferencial para especialistas e integrantes de governos. Isso não significou, no entanto, que não tenham produzido transformações importantes a partir dos debates que geraram, inclusive pela atuação de pesquisadores e especialistas de vocação progressista. 

Um exemplo foi a criação do Ministério da Saúde, proposta que entre idas e vindas se consolidou em 1953, na terceira versão governamental de Getúlio – pós-1930 e pós-Estado Novo. Mais um exemplo importante, entre outros, vem da 5ª Conferência, em 1975, que apontou a necessidade de construção de um sistema realmente nacional de saúde.

O que se pode afigurar como uma deficiência desse mecanismo é sintetizado pelos longos períodos entre os tempos em que as propostas são apresentadas e sua efetiva implementação como política pública, quando esta ocorre. No entanto, os tempos da política podem diferir do conceito, muitas vezes imaginário, da eficácia produtiva. Outra distorção crítica se dá quanto à necessidade redentora de mediação e decisão de especialistas e intelectuais, sem as quais as camadas populares ficariam inevitavelmente à mercê da cegueira.

Os sentidos desses processos são mais complexos e ricos. Não é incomum que práticas e soluções adotadas pelas populações já estejam maduras quando governos se apercebem delas e as adotam, dando-lhes suporte político e financeiro. Um caso recente, ainda na área da saúde, é o projeto Brasil Saudável – Programa Nacional para Eliminação de Doenças Determinadas Socialmente, lançado pelo governo federal no início de fevereiro. 

A pomposa designação de “doenças determinadas socialmente” refere-se, na prática, à categoria de “doenças de pobre”, aquelas que, apesar de tão antigas, em alguns casos, quanto o Brasil Colônia, perduram por não atingirem camadas mais abastadas: doença de Chagas, tracoma, malária e esquistossomose, entre outras. 

Precedendo o lançamento do programa, por décadas, movimentos organizados de vítimas e familiares, com apoio de instituições de ensino e pesquisa, não apenas pressionaram por atuação governamental, mas desenvolveram alternativas à precariedade que apontam ao poder público modos de enfrentar os problemas. A reivindicação de uma política de Estado semelhante, inclusive, foi objeto de resolução da Conferência Nacional de Saúde mais recente, a 17ª, realizada no ano passado.

A política, portanto, transcende o calendário oficial, não começa nem deve se esgotar nele. E depende de mobilização e pressão sobre o poder público. Por falar nisso, há 16 conferências nacionais já agendadas para os próximos dois anos. Programe-se.

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