O artista chileno que se tornou um dos símbolos mais trágicos dos horrores do regime de Pinochet só agora, 50 anos depois do golpe, teve seus assassinos condenados e presos  

Dias antes de completar 40 anos, o músico e professor Victor Jara foi preso na Universidade Técnica do Chile, em Santiago. Foi levado ao famigerado Estádio do Chile, que à época, setembro de 1973, estava funcionando como centro de detenção provisória desde que um golpe de Estado, liderado pelos militares, tirou o socialista Salvador Allende do poder. Era o dia seguinte do golpe. A universidade foi cercada e centenas de estudantes, professores e funcionários foram presos. 

Victor Jara, então um dos principais nomes da Nueva Canción Chilena, foi reconhecido pelos policiais. Nos dias seguintes, Jara seria barbaramente torturado. Em 16 de dezembro, seu corpo coberto de marcas de balas seria abandonado numa estrada ao sul de Santiago. Quase 50 anos depois do golpe chileno, nos últimos dias de agosto deste ano, sete militares foram responsabilizados, condenados e presos pelo seu assassinato. Um deles optou por meter uma bala na cabeça para não ser preso. 

O general reformado Hernán Chacón, condenado juntamente com outros militares pelo assassinato de Jara, suicidou-se aos 85 anos, pouco antes de ser preso. A informação foi confirmada pelo Ministério Público chileno. O general havia sido condenado pelo Supremo Tribunal, juntamente com outros ex-militares, a penas de até 25 anos de prisão, pelo sequestro e assassinato de Jara.

O assassinato de Victor Jara pelas forças da repressão chilena se tornou um dos emblemas da ferocidade da ditadura chilena e do regime de Augusto Pinochet. Artista carismático e talentoso, Jara era uma das principais vozes do movimento musical que resgatou sonoridades populares e tradicionais chilenas, dando-lhes roupagens mais contemporâneas que ficou conhecido como Nueva Canción Chilena.  

Na esteira dos ventos democráticos que levaram à eleição de Salvador Allende em 1970, a cultura do Chile de então vivia um período de renovação e esperança — e a música de protesto de Jara, da família Parra (Violeta, Ángel e Isabel) e de grupos como Quilapayún e Inti-Illimani tornou-se uma espécie de porta-voz das profundas transformações pelas quais passava a sociedade chilena. 

Nesses anos de intensa mobilização, era nas peñas folclóricas, eventos de apresentações de música, dança e teatro, que se reuniam artistas, intelectuais e a juventude. Uma das mais influentes foi a Peña de Los Parra, fundada nos anos 1960 no centro de Santiago, da família da cantora, poeta e artista plástica Violeta Parra, que se tornou um pequeno centro de cultural, com ateliê, estúdio de gravação etc. E foi na Peña de Los Parra que  Victor Jara fez sua transição definitiva para a música.

Nascido em 1932 em uma pequena cidade no sul do Chile, a família Jara migrou para Santiago em busca de mais oportunidades de trabalho quando ainda Victor ainda era uma criança. Antes de ingressar na Universidade do Chile, ele teve uma passagem breve pelo seminário e trabalhou como operário. 

Na universidade, o jovem passa a estudar música e teatro e inicia suas pesquisas sobre a cultura popular chilena. Como estudante e profissional de teatro, Victor dirige grupos, escreve e dirige espetáculos e compõe para a trilha sonora. 

Em 1966, torna-se diretor artístico do Quilapayún, grupo musical que combinava a musicalidade dos povos originários do Chile e dos países andinos (o nome vem da língua mapuche, principal etnia indígena do Chile) e as letras de intervenção. 

Também compõe e trabalha como solista (ele tocava guitarra acústica) na Peña de Los Parra. Lança seu seu primeiro LP em 1966 e, no a seguinte, é lançada a compilação ‘Canciones Folclóricas de América’, junto com o Quilapayún. 

A obra autoral de Jara vai acompanhando a agitação política e ganhando o público.  Em 1969, “Plegaria a un Labrador” recebe o primeiro prêmio do Primeiro Festival da Nova Canção Chilena. Sua música corre o mundo e incendeia os espíritos revolucionários ao redor do mundo quando Jara participa do Comício Mundial de Jovens pelo Vietnã na Finlândia.

O disco “Canto Libre”, gravado no ano da campanha eleitoral que leva a uma vitória maciça do candidato do Partido Socialista Salvador Allende, numa frente ampla que reúne toda a esquerda chilena (Jara era militante do Partido Comunista Chileno), torna-se uma das principais referências musicais do período. No governo Allende, a partir de 1971, tornou-se embaixador cultural e passa a lecionar na Universidade Técnica do Chile, com  Violeta Parra e o grupo Inti-Illimani. 

Até 1973, Jara estará envolvido em múltiplas atividades culturais e políticas relacionadas à defesa do governo de Unidade Popular. Mesmo com a vitória eleitoral expressiva em 1970, a direita tentava boicotar as reformas de cunho nacionalista e as medidas para redução da desigualdade social. A mobilização permanente das forças populares, que envolvia também os artistas e intelectuais, tentava resistir à crescente pressão interna e externa comandada pelos serviços de inteligência norte-americanos. 

Em setembro de 1973, as Forças Armadas ocuparam o país, atacaram o palácio presidencial de La Moneda e iniciaram um ciclo sangrento e brutal de repressão aos movimentos sociais e populares. Allende, cercado, ainda fez um último discurso e preferiu se matar a ser capturado.

Nas ruas, milhares de apoiadores e militantes estavam sendo caçados, capturados, torturados e mortos nos dias seguintes. Dois estádios foram usados como centros de prisão improvisada e tortura, como o Estádio Nacional e o Estádio do Chile. Victor Jara, e centenas de outros que estavam reunidos na Universidade Técnica do Estado, foram para este último. 

Antes de ser morto, Jara ainda escreveu um último poema, que denunciava o terror: “Somos cinco mil/ nesta pequena parte da cidade/ Somos cinco mil/  quantos seremos no total/ nas cidades e em todo o país?/ Só aqui dez mil mãos semeiam/ e tocam as fábricas/ Quanta humanidade/ com fome, frio, pânico, dor/ pressão moral, terror e loucura!”

Mesmo ainda sob o regime de Augusto Pinochet, as marcas de tortura em seu corpo atirado numa vala comum, eram evidentes. Antes da redemocratização, dizia-se que suas mãos teriam sido cortadas pelos torturadores, mas o que a comissão da verdade revelou foi que os ossos de sua mão foram esmigalhados por coronhadas. 

O destino dramático de Victor Jara foi semelhante ao de cerca de 40 mil pessoas durante os 17 anos que durou a ditadura chilena. Sua música permanece como um farol de inventividade, lirismo e inspiração revolucionária. •

`