Inflação de alimentos, preço da desigualdade

Só problemas conjunturais não explicam os altos preços da comida no país. O fenômeno é antigo e estrutural. A concentração de terras e de canais de distribuição e a prioridade para exportação estão entre as causas, assim como o fim da política de estoques

 

 

A inflação dos alimentos é uma notícia tristemente velha no Brasil. E por aqui tem aspectos muito próprios, agravados pela condução política e econômica adotada desde 2016. O mais grave desses aspectos é o alastramento da fome, pela combinação da alta de preços com a queda do poder de compra da população. O quadro fica mais sombrio quando se sabe que o país é o maior exportador líquido de alimentos processados e de origem vegetal do mundo, e o segundo maior em alimentos de origem animal.

Em 2019, o país somou US$ 68 bilhões em exportações no setor. Os ganhos em venda para o exterior continuam se expandindo. No primeiro quadrimestre de 2022, o volume exportado pelo agronegócio brasileiro aumentou 5% e o faturamento, de US$ 48 bilhões, auxiliado pela taxa cambial desfavorável ao real, foi 34% superior na comparação com o mesmo período de 2021. Os dados são do Centro de Estudos em Economia Aplicada da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Cepea/Esalq). O Brasil prioriza a venda ao exterior, embalado pela alta de preços dos alimentos, transformados em objeto de especulação internacional.

Enquanto isso, o lucro líquido das redes de supermercados brasileiros vem batendo recordes. O dado consolidado mais recente, de 2020, alcança aproximadamente R$ 15 bilhões, segundo relatório da associação que representa o setor. É o maior da história. Ainda que isso possa refletir em parte o fato de as pessoas terem passado a comer mais em casa, no período mais agudo da pandemia da covid, é inegável o aumento das margens de lucros, na esteira da inflação. Reforçando essa hipótese, o Índice de Atividade do Comércio, divulgado pelo Serasa, apontou queda de 8,5% nas vendas de comida e bebida nos hiper e supermercados brasileiros naquele mesmo ano. Vendeu-se menos, ganhou-se mais.

Os bons resultados das redes varejistas continuam em trajetória ascendente. Relatório do grupo Pão de Açúcar mostra que, no primeiro trimestre deste ano, suas lojas registraram faturamento bruto 11,2% maior que nos três primeiros meses de 2021. A forte concentração de mercado em apenas 20 redes líderes ajuda. Inclusive na formação da inflação.

Um exemplo de como os intermediários podem ditar altos preços é que o quilo do feijão carioca era comprado nos supermercados, em média, por R$ 7 na última semana de maio. Não importam os preços junto aos produtores. Antes de chegar às prateleiras, a saca de 60 kg do feijão produzido pela cooperativa Da Terra, no sudoeste paulista, custava R$ 240 no final da safra, em janeiro. Sacas de mesmo peso, colhidas na mesma safra por outros produtores, eram cotadas em R$ 455 pelo Instituto Brasileiro do Feijão (Ibrafe), ao final de maio. Para o consumidor final, o preço se iguala.

Tais contrastes evidenciam outra notícia velha e triste, a desigualdade. Que desagua em dados como o da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Pensann), segundo a qual mais de 116 milhões de brasileiros viviam algum problema de falta de alimento no final de 2020. Um retrocesso a níveis observados em 2004, antes de o Brasil deixar o Mapa da Fome das Nações Unidas. Com a subida constante da inflação, que atingiu 12,13% em abril de 2022, o maior índice acumulado em 12 meses nos últimos 26 anos, não há sinais de que o flagelo da fome tenha arrefecido.

A gramática bolsonarista não explica a inflação de alimentos. O fenômeno no Brasil não é composto apenas por fatores conjunturais, como guerra no exterior ou alta global dos combustíveis. Uma evidência disso é que o país tem a segunda maior inflação da comida entre todos as potências agrícolas do mundo, ficando apenas atrás da Rússia, segundo levantamento do portal Trading Economics. Mas os russos estão em guerra e sofrem sanções econômicas internacionais.

O Brasil tem ainda a tradição de ostentar uma inflação de alimentos bastante superior à média geral das altas de preços. No acumulado desde 2006, segundo análise do economista e professor Valter Palmieri Junior, a alta da comida supera em 38% os índices da inflação geral no país. Trata-se já de um problema crônico. Para efeito de comparação, nos Estados Unidos, outra potência agrícola, a inflação dos alimentos no período superou a inflação geral em apenas 5%.

Palmieri toma 2006 como marco de sua pesquisa por ser período em que se acentuou a subida dos preços dos alimentos no mercado internacional, puxados pelo incremento do consumo chinês. De lá até 2019, o Brasil aumentou em 286% as exportações de alimentos de origem animal, e em 106% os de origem vegetal, segundo variações captadas pelo Observatory of Economic Complexity.

Essa opção por aproveitar os preços internacionais e deixar a população em segundo plano produz outro efeito negativo, bastante conhecido. Produtos mais rentáveis, como soja, ganham cada vez mais espaço nas terras destinadas à lavoura. Entre 1980 e 2019, o arroz, o feijão, os legumes e as frutas perderam mais de 60% dos hectares destinados a seus cultivos. Soja, milho e açúcar, por outro lado, ganharam mais de 50% na comparação com a área de plantio que tinham. Essa concentração de áreas em monoculturas de exportação também alimenta as altas de preços.

Outros países optam por priorizar suas populações. O Japão, por exemplo, dedica 370 mil hectares para o plantio de legumes e hortaliças, componentes importantes do cardápio nacional. O Brasil, que tem 53 vezes mais terras que os japoneses, só reserva 360 mil hectares para esses alimentos.

“É uma diferença de modelo econômico, é uma questão de se preocupar com sua própria população”, comenta Palmieri, doutor em economia pela Unicamp, professor da Strong Business da Fundação Getúlio Vargas e criador do canal Comida Economia, no Instagram. “A China também faz isso. Investe em agricultura, porém a indústria cresce em ritmo maior. Então eles usam os excedentes para comprar os alimentos que não conseguem produzir. Estão certos”, comenta.

Pela duração do processo da inflação de alimentos no Brasil, que envolve fatores já bastante antigos, os alertas de especialistas costumam se assemelhar a tentativas de cultivar terra árida e endurecida. O economista Gerson Teixeira, que compõe o NAPP Agrícola e Agrário da Fundação Perseu Abramo, tem se batido há anos pela mudança do modelo. Ex-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), ele destaca, porém, que nos governos do PT houve um movimento pendular rumo a essa mudança.

Além do maior orçamento até então destinado para o financiamento da agricultura familiar, os governos petistas também fizeram uso de mecanismos como o poder de compra do Estado, reservando cotas para as cooperativas de pequenos produtores, em iniciativas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

Lula e Dilma também mantiveram estoques públicos de alimentos como forma de equilibrar os preços por meio da oferta para o mercado interno. “É preciso considerar nesse processo que o governo Bolsonaro acelerou a crise dos alimentos ao sepultar a reforma agrária, desmontar e depois extinguir o PAA e sobretudo ter detonado a política de estoques”, aponta Teixeira.

Palmieri recorda ainda que a geração de empregos e a elevação do poder de compra dos salários, aliadas à possibilidade de pressão por aumentos reais de salários, nos governos do PT, suplantavam a inflação, inclusive a dos alimentos.

O professor acredita que a comoção atual pela alta dos preços da comida, nos meios de comunicação, deve-se em grande parte ao fato de que as carências chegaram aos setores médios. “Quando a fome atinge só os marginalizados, não é uma questão de grande preocupação pública. Isso tem a ver com uma visão meritocrática”, observa. “Mas hoje a inflação se soma à queda da renda da maioria da população. Há a insegurança alimentar grave, mas a insegurança leve também aumentou. Pessoas que conseguiam comprar o que queriam, não conseguem mais. A renda estava aumentando. Agora, não”.

Os dois especialistas concordam que será preciso mais para reverter a tendência concentradora que aprofunda a inflação de alimentos. A reforma agrária é o caminho para atacar os problemas estruturais e construir uma mudança duradoura, segundo Palmieri e Teixeira. Para problemas conjunturais, como quebras de safra ou alterações no cenário internacional, uma das medidas é estipular a cobrança de imposto sobre exportação de alimentos. Teixeira propõe a cobrança toda a vez que os estoques públicos estiverem abaixo de 10% do volume previsto para consumo interno. Se depender só do mercado, os problemas persistirão à mesa. •

Inflação de alimentos, preço da desigualdade

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