O voo da coruja e o destino do dólar
Ao anunciarem sanções e congelarem as reservas internacionais da Rússia, a Europa e os Estados Unidos desenham um cenário preocupante. Para a economia global, a perspectiva no curto e médio prazo é de mais inflação e dificuldades para a retomada do crescimento econômico
A declaração conjunta dos líderes da Comissão Europeia, França, Alemanha, Itália, Reino Unido, Canadá e Estados Unidos, em 26 de fevereiro, é clara. Anunciaram medidas adicionais de restrições econômicas visando isolar a Rússia do sistema financeiro internacional e das relações com as economias. A segunda das quatro medidas anunciadas se compromete a impor medidas restritivas que impeçam o Banco Central da Rússia de empregar suas reservas internacionais de forma a mitigar o impacto das sanções.
Moedas e títulos emitidos por um país constituem um passivo e um ativo para seus detentores. Mesmo dentro da ortodoxia econômica, em modelos para precificação do prêmio de ativos, os juros pagos por títulos de dívida emitidos pelo governo são denominados como de risco soberano ou livre de risco de crédito. Isso ocorre justamente pela capacidade da autoridade monetária de emitir o meio de pagamento capaz de liquidar suas obrigações e dívidas dentro de suas próprias economias.
Se dentro de cada Nação o Estado e sua moeda são soberanos, nas relações internacionais a lógica é distinta. Há no sistema financeiro internacional uma hierarquia entre moedas nacionais. Os Estados Unidos desfrutam o privilégio (exorbitante) de sua moeda nacional desempenhar o papel de unidade de medida de valor, meio de pagamento e reserva de valor internacional.
Outras moedas de economias centrais também exercem, em um patamar inferior, a condição de liquidar contratos internacionais. As demais economias, por vezes denominadas como emergentes, em desenvolvimento ou subdesenvolvidas, sofrem as limitações de emitirem moedas não aceitas como meio de pagamento no mercado internacional.
A história econômica do Brasil torna fácil a identificação com as diversas formas de crise desencadeadas pelas restrições de acesso à moeda internacional. Dos estrangulamentos externos decorrentes da redução na demanda por produtos exportados pelo Brasil nas economias centrais, com consequente diminuição da receita em divisas internacionais e depressão da capacidade de importar, descrita por Celso Furtado; passando pelas crises da dívida externa associadas ao “descasamento” entre passivos em moeda estrangeira, contraídos para financiar projetos e investimentos voltados para o mercado doméstico e, portanto, geradores de receita (ativo) em moeda doméstica; até a estabilidade monetária condicionada à sombra de dolarização, que recorre a elevações na taxa básica de juros para aumentar o prêmio aos detentores de posições em reais e conter a desvalorização ante o dólar que provoca a inflação, limitando a política monetária.
Durante os anos 1990, sucessivas crises internacionais levaram diversos países a recorrerem ao Fundo Monetário Internacional para conseguirem acessar recursos e honrar seus pagamentos em moedas internacionais. O apoio do FMI é usualmente condicionado à adesão ao receituário econômico “sugerido”.
Durante os anos 2000 o cenário de liquidez internacional abundante permitiu o acúmulo de reservas internacionais e para alguns países, como o Brasil, a reversão da posição de devedores para credores líquidos internacionais. Como nas ameaças de conflitos bélicos, as reservas internacionais funcionam como uma defesa das moedas domésticas, inclusive para desencorajar ataques especulativos.
As tensões da Rússia com os EUA, acentuadas a partir do conflito que resultou na anexação da Criméia, em 2014, ampliaram os esforços russos em tentar mitigar a influência dos americanos em sua economia. Reportagem de maio de 2015 da revista The Economist sugere um abraço do urso (Rússia) com o dragão (China). Também em julho daquele ano, o jornal The Guardian apresentou a manchete “China e Rússia: O novo superpoderoso eixo mundial”. A reportagem exibia o exponencial crescimento do comércio da China para a Rússia a partir de 2009 e a elevação dos investimentos no mesmo sentido, especialmente a partir de 2013.
Em abril de 2021, o Washington Post publicou artigo intitulado “China e Rússia anunciaram uma promessa conjunta contra a hegemonia do dólar”, criando alternativas ao sistema atual com um plano de três etapas. Em primeiro lugar, ambos os países começaram a reduzir a proporção de seu comércio bilateral faturado em dólares, privilegiando a liquidação em suas próprias moedas. Em segundo lugar, eles procuraram aumentar o papel do renminbi como moeda internacional para pagamentos e reservas. Para incentivar uma adoção mais ampla de sua moeda, a China deu acesso ao renminbi a mais de 30 países por meio de acordos de swap bilaterais. China e Rússia reduziram suas participações em títulos do Tesouro dos EUA, com a Rússia canalizando dinheiro para participações em renminbi.
A China intensificou o impulso da moeda digital que começou em 2014, com o objetivo de facilitar a retenção do renminbi. A terceira e última etapa desses esforços, ainda em andamento, visa criar sistemas alternativos de pagamentos e mensagens que permitam aos países usar moedas domésticas e de parceiros, em vez de dólares ou euros, para fechar acordos comerciais e de investimento.
Dados do Banco Central da Rússia, de 30 de junho de 2021, apontavam que suas reservas internacionais eram compostas 32% em euros, 16% eram dólares americanos, cerca de 7% eram libras esterlinas, 13% renminbi chinês, 22% ouro e o restante mantido em outras moedas.
Segundo o Financial Times, cerca de US$ 300 bilhões dos
US$ 630 bilhões de reservas internacionais mantidas pela Rússia foram bloqueados pelas sanções. Já a União Europeia declarou que as sanções bloqueiam mais da metade das reservas do Banco Central da Rússia. Ambos revelam os limites no alcance, por exemplo, aos ativos tangíveis como reservas em ouro ou emitidos por países que não aderiram às sanções.
Jim O’Neill, que ocupa desde 2001 o cargo de chefe de pesquisa em economia global do Goldman Sachs, afirmou que “o efeito imediato das sanções à Rússia foi destacar a continuidade do domínio dos EUA. Mas também pode forçar muitas economias emergentes a reconsiderar a abordagem de livro texto na construção de reservas em moeda estrangeira para se protegerem contra crises econômicas”.
Falando no podcast Odd Lots, da Bloomberg, o chefe global de estratégia de taxas de juros de curto prazo do Credit Suisse observou que as guerras tendem a transformar as conjunturas para as moedas globais. E a perda da Rússia do acesso às suas reservas em moeda estrangeira enviou uma mensagem a todos os países: “eles não podem contar com esses estoques de dinheiro como seus, em caso de tensão. Pode fazer cada vez menos sentido para os gestores de reservas globais reter dólares por segurança, já que eles podem ser retirados quando são mais necessários”.
Os efeitos imediatos das sanções são mais óbvios para a economia russa. Hoje a leitura do mercado é de seu isolamento, com desvalorização da moeda, ativos e risco de insolvência de bancos. Para a economia global a perspectiva no curto e médio prazo é de mais inflação, expressa nas elevações dos preços de petróleo, gás, minério e alimentos no mercado internacional, e um cenário mais adverso para a retomada do crescimento econômico, o que sugere maior complexidade na gestão das autoridades monetárias. A tendência é que a retirada dos estímulos monetários por parte dos bancos centrais dos EUA e Europa, previstos para este ano, tenham de esperar por maior clareza dos impactos da guerra.
A complexidade das sanções decorre justamente do êxito da globalização em inserir a economia russa no mercado global. A dificuldade em circunscrever seus efeitos, e implementar medidas chamadas de “cirúrgicas”, é o que tem demandado a análise cuidadosa do ocidente dos impactos de cada sanção.
A atenção em preservar a capacidade de oferta do setor de óleo e gás russo sugere o reconhecimento da interdependência das economias, e a dificuldade dos trade offs: quanto mais efetiva for a sanção, mais ela propaga seus impactos no ocidente, quanto mais se mitiga o impacto ao ocidente, menor a eficácia das sanções. Congelar ativos financeiros guarda potencialmente efeitos semelhantes. Em momentos de perdas, quando não se pode vender determinados ativos, são vendidos os ativos possíveis de se vender, e é assim que as crises se tornam sistêmicas.
Os impactos econômicos de longo prazo ainda serão conhecidos. Só a maturidade do tempo revelará as consequências do exercício ostensivo do poder do dólar. •