O estopim do modernismo

O que aconteceu naquela Semana, em 1922, no Theatro Municipal? Foram apenas quatro dias, entre 13 e 17 de fevereiro, e um estrondoso fracasso de público e crítica? Ou é o marco da entrada do Brasil no modernismo? Desde o início deste ano, com a aproximação do centenário da Semana de Arte Moderna, reavivaram-se questões que, a cada efeméride importante, provocam discussões acirradas e controversas, sobretudo na mídia corporativa e nas instituições acadêmicas.

No afã de abafar uma polêmica com outra, a Folha publicou texto do biógrafo Ruy Castro, no qual “denuncia” as relações entre os modernistas da Semana com o governador Washington Luís. Segundo Castro, também há as ligações das comemorações dos 50 anos com o terceiro presidente de um dos períodos mais repressivos da ditadura, Emilio Garrastazu Médici.

Uma semana depois, José Miguel Wisnik, professor sênior de literatura brasileira na USP, publicou artigo em que rebate os principais equívocos e interpretações tortas do texto de Castro, classificando a Semana de Arte Moderna como uma “pauta cultural e midiática” que “rememora a eclosão de cenas de modernismo explícito”.

Entre elas, a exposição de Anita Malfatti no saguão do Municipal, as declamações de poemas, como “Ode ao Burguês”, de Mário de Andrade (“Eu insulto o burguês-funesto!/ O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!/ Fora os que algarismam os amanhãs!) e leitura de trechos de “Os Condenados”, de Oswald de Andrade. Ou Villa-Lobos apresentando uma peça musical que levou indígenas a dançarem no palco daquele teatro.

“Esse é o happening, o auê da Semana”, afirma Maria Augusta Fonseca, professora  sênior de literatura da USP e especialista nos dois grandes nomes da literatura modernista, Mário e Oswald. Ela conversou com a revista Focus sobre a importância cultural dos acontecimentos de 1922.

Colocados muitas vezes em oposição, por conta de trajetórias artísticas e intelectuais muito diferentes, a professora, que trabalha atualmente numa edição crítica da obra de Oswald de Andrade — a sair pela Edusp este ano com o título “Obra incompleta” —  se diz contra o “Fla-Flu”.

“Mário é grande figura, é o mentor que agrega, mas sou contra colocar o Oswald como o chutador. O Oswald trabalhava o texto literário com profundidade, acertando e errando”, aponta. “A primeira coisa que a gente deveria fazer é colocar o mérito dos dois, mas cada um a seu modo. O próprio Oswald reconhecia o Mário como a cabeça, o sujeito que já tinha com saber sedimentado, questionado, é já era um grande intelectual, inclusive no período anterior à Semana”.

E, no período anterior, havia Anita Malfatti, que em 1917 realiza uma exposição sintonizada com os movimentos na pintura europeus, como o cubismo e o expressionismo alemão. Ela foi muito mal-recebida pelos defensores da arte acadêmica e figurativa, entre eles o escritor Monteiro Lobato. Ele tinha uma coluna no jornal O Estado de S. Paulo e fez uma crítica demolidora sobre a exposição da artista: “(…) a única diferença das telas de Anita daquelas feitas nos manicômios, como terapia, é que a dos loucos é arte sincera”.

São Paulo, nas primeiras décadas do século 20, pela força do principal produto de exportação agrícola — o café —, o influxo de imigrantes e a rápida industrialização, torna-se a primeira metrópole no país. Bo censo de 1900, a cidade tinha 240 mil habitantes e alcançaria 1 milhão em 1928.

Será, portanto, no centro econômico da República Velha que as manifestações culturais e artísticas mais sintonizadas com as vanguardas europeias terão a maior possibilidade de eclodir. O grupo modernista, de fato, era não apenas recebido em salões da elite paulistana, como o de Olívia Guedes Penteado, como, muitas vezes financiado por mecenas, como Mário de Andrade o foi em uma de suas viagens etnográficas pelo Norte e pelo Nordeste, registradas em “O Turista Aprendiz”.

O “paulistocentrismo” e o elitismo da Semana de 1922, portanto, têm razões históricas que devem ser, na verdade, melhor contextualizadas à medida que a distância do tempo oferece mais pistas do que o contrário.

Segundo Fonseca: “São Paulo tinha uma situação que era mais de acontecer, ainda antes mesmo da Semana. O próprio Mário em ‘O Movimento Modernista’ afirma que  os tempos de ouro estão antes da semana, quando eles discutiam, debatiam, se encontravam para fazer conferências. A exposição da Anita em 1917 alavanca e, a partir dela, as questões formuladas ali vão desaguar na Semana”.

Desse grupo, também faziam parte outros escritores e poetas, como Cassiano Ricardo, Menotti De Picchia e Guilherme de Almeida e intelectuais como o historiador Sérgio Buarque de Holanda e o ensaísta Paulo Prado.

E, se a Semana foi um happening artístico e estético, ela acabou se desdobrando e ganhando profundidade. Ao choque estético nas artes e no pensamento sobre as artes, seguem vários desdobramentos.

Maria Augusta Fonseca explica: “Pela ordem, Oswald publica em 1924 as ‘Memórias Sentimentais de João Miramar’ e o ‘Manifesto Pau-Brasil’, do Oswald. Mário sai com ‘Macunaíma’, em 1928. E vem em vários formatos, ou seja, poesia, manifesto, romance, conto, ensaio. Chega uma série de produções literárias mais maduras, que inclusive já começam a fazer uma revisão crítica da Semana. (…) São vários períodos, se não fica uma balbúrdia, uma barafunda e muita gente na mídia  está fazendo isso. A Tarsila, que não estava na semana, aparece na Semana”.

A pintora Tarsila do Amaral, de fato, estava em Paris em fevereiro de 1922 e só chega ao Brasil alguns meses depois. Apresentada a Oswald, Mário e Menotti Del Picchi por Anita Malfatti, a pintora estabelece uma ateliê que se torna ponto de encontro dos modernistas. Em 1926, casa-se com Oswald e vão morar em Paris, onde Tarsila vai estudar com o pintor francês Pierre Léger.

É justo em 1926 que Fonseca identifica o racha dos modernistas: “O grande divisor de águas vai ser ideológico. Vem o ultranacionalismo patriótico do  ‘verde-amarelismo’ como resposta ao movimento Pau-Brasil, de Oswald. E forma-se o grupo da Anta, do qual farão parte Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia e Plínio Salgado, o fundador do integralismo no Brasil. Tudo isso, no entanto, se dissolve com o crash da Bolsa de Nova York. Vai tudo por água abaixo”.

A quebra da bolsa de Nova York terá impacto global e, na Europa, os anos 1930 prenunciam o fascismo na Espanha, na Itália e na Alemanha. Os diversos grupos modernistas nas artes continuarão produzindo e, ao mesmo tempo, engajando-se na luta política.

Tarsila, Oswald e a escritora e poeta Patrícia Galvão, a Pagu, se filiam ao Partido Comunista. Pagu, autora de “O Parque Industrial”, um romance sobre operários, seria presa 33 vezes. São desse período também telas de Tarsila como “Nossa Gente” ou “Operários”, no qual o olhar da artista torna-se mais realista e até mesmo próximo do muralismo mexicano.

No entanto, nos anos 1930, a educação tem um impulso grande, com a criação da Universidade de São Paulo, em 1934, que reuniu as faculdades isoladas de direito, medicina e engenharia, e criou cursos modernos, como os de Sociologia, Letras, História Natural, Química para os quais, muitas vezes, eles tinham de importar professores estrangeiros.

Dessa geração que irá se formar na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas que a Semana passará  por uma revisão crítica com rigor acadêmico, sobretudo na revista Clima, formada por Antonio Candido, Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Rui Coelho, Gilda de Mello e Souza e Lourival Gomes Machado.

“O Oswald dado a boutades e brincalhão chamava mesmo esse grupo saído da universidade de ‘os chato boys’. Ficou amicíssimo de Paulo Emílio Salles Gomes, mas no entanto chamava ele de o ‘piolho da revolução’. Ainda assim, eles começam a pensar o Brasil a partir do  movimento modernista. O Antonio Candido é um crítico modernista. E o Oswald, que implicava pelo jeito que eles escreviam”, conta Fonseca.

Nas décadas seguintes do século 20, sobretudo no pós-Segunda Guerra, o modernismo dos anos 1920 tornaria-se um norte na trajetória cultural e intelectual brasileira. As explicações redutoras e polêmicas fáceis, no entanto, deveriam ir para a lata de lixo da história.