A crise energética que o Brasil enfrenta é a mesma pela qual atravessou em 2001. A diferença é que, na época, o governo Fernando Henrique Cardoso desistiu de privatizar a Eletrobrás porque compreendeu o papel fundamental da empresa para contornar o problema e permitir que o Brasil aumentasse a sua capacidade de gerar energia. No entanto, na crise atual, Bolsonaro avança com a privatização da estatal e vai fazer com que o Estado perca todos os instrumentos para contornar a crise.

Outra coincidência entre o apagão de 2001 e a crise atual é que, nos dois períodos, houve subinvestimento em grandes linhas de transmissão de energia. “Isso impede resolver o problema, transferindo energia de uma região do país para outra. Afinal, o problema hidrológico não é generalizado pelo Brasil. Ele se concentra na Bacia hidrográfica do Paraná”, analisa o ex-presidente da Petrobrás José Sérgio Gabrielli.

Cada vez mais, os serviços de distribuição e transmissão de energia estão sendo repassados para o setor privado e a capacidade de intervenção do Estado está muito reduzida, inclusive, para o uso das usinas termoelétricas que estão sendo fundamentais para alimentar o país.

Gabrielli lembra que a maioria das usinas, dos gasodutos e toda a estrutura para funcionamento das termoelétricas foram construídos pela Petrobrás. Mas, após a nova Lei do Gás, e o desmonte da empresa nos últimos 5 anos, a estatal está praticamente fora do setor. O resultado, segundo o ex-presidente da Petrobrás, é uma situação dramática para o Brasil.

 

Focus Brasil O processo de desmonte da Petrobrás afeta, tem ligação com a crise de energia que o Brasil vive hoje?

José Sérgio Gabrielli — No futuro muito próximo terá. Uma das formas de evitar o ciclo hidrológico é ter outros tipos de fontes primárias de energia elétrica, como as usinas termoéletricas que utilizam gás natural, óleo combustível e biomassa. Depois de 2001, a Petrobrás entrou fortemente no setor de gás natural expandindo a capacidade de geração termoelétrica, a rede de gasodutos, unidades de processamento de gás natural, viabilizando a oferta de gás natural para a geração termoelétrica. Hoje, o país tem quase 20 GigaWatts de capacidade de geração elétrica do total de 230 a 240 GigaWatts. Então, um pouco menos de 10% da geração elétrica brasileira vem de termoelétricas.

E o que aconteceu? O Congresso Nacional, em 2021, aprovou a nova Lei do Gás. O principal objetivo dessa lei é retirar a Petrobrás do setor de gás. A empresa já está praticamente fora das distribuidoras estaduais de gás natural, já vendeu os terminais de transporte de gás natural, está vendendo todas as suas termoelétricas e está saindo totalmente do setor de energia elétrica. Após a nova Lei do Gás não tem hoje nenhum instrumento que substitua a Petrobrás para viabilizar os investimentos estratégicos necessários para evitar a continuidade da crise do modelo elétrico brasileiro.

Outra fonte de substituição que também cresceu nos últimos 20 anos são as fontes renováveis: eólica e solar. A energia eólica cresceu muito mais, principalmente, no Nordeste. Hoje responde por 9,6% da geração elétrica brasileira. E quase metade da expansão prevista vem de fontes renováveis. O problema da fonte renovável é que ela tem geração elétrica intermitente. Então, é necessário que se tenha armazenamento em baterias e linhas de transmissão – volta à crise das linhas de transmissão. E não se pode basear o crescimento da oferta de eletricidade apenas em fontes intermitentes. Por isso, não se pode abandonar a termoelétrica. Isso aumenta a dependência do gás, mas não existem mais instrumentos de Estado para intervir nesse setor.

A Petrobrás é a grande produtora de gás natural, utiliza muito do seu gás para reinjetar na produção do próprio pré-sal. Os gasodutos de transporte dos campos de produção para o continente estão no seu limite. Isso significa que se a economia sair desse marasmo dos últimos cinco anos e voltar a crescer, aumenta o consumo de energia e aumenta o risco de uma crise no sistema.

 

Ou seja, as termoelétricas são fundamentais e não temos recursos, atualmente, para fazer com que essas usinas possam dar conta do que o país precisa de energia.

— Hoje, usa-se 100% da capacidade das termoelétricas — veja, 100%. As termoelétricas não foram projetadas para operar o tempo todo, o que significa que vai começar a ter problemas operacionais de gestão dessas usinas. Vai começar a ter máquinas que vão precisar parar. É necessário manutenção. Portanto, trabalhar com 100% de capacidade é um risco extraordinário.

Se “São Pedro” não aumentar as chuvas até setembro e se a economia se recuperar, podemos ter um problema grave. Com certeza, imediatamente, teremos um aumento na tarifa. Mas o risco de se utilizar intensamente as termoelétricas e as linhas de transmissão aumenta o risco de problemas operacionais. Isso faz com que se tenha uma crise em potencial.

Analistas do setor de energia elétrica mostram que grande parte dessa crise ocorreu por um erro operacional do sistema a partir de setembro, outubro do ano passado. Os reservatórios estavam cheios e isso não gera receita para as grandes empresas hidroelétricas.

Eles desligaram as termoelétricas antecipadamente, esperando que a chuva viesse, apostaram que a chuva viria em março, abril desse ano, e diminuíram os reservatórios aumentando as receitas das grandes hidroelétricas. Ao fazer isso, criaram um problema. Agora, o aumento da tarifa vai remunerar, exatamente, as mesmas empresas que ganharam com a operação no período de cheia.

A situação é tão dramática que o preço médio do megawatt das hidroelétricas deve estar hoje em torno de R$ 65, R$ 70. Mas tem termoelétrica sendo despachada hoje pagando R$ 1.000, R$ 1.500 por megawatt. Essa é a diferença de custo para o sistema por utilizar as termoelétricas nesse momento.

 

Se as termoelétricas estão funcionando com 100% da capacidade e não foram feitas para isso, se elas tiverem e vão ter que parar, nós teremos que passar por um racionamento de energia?

— Sim. Se a demanda continuar crescendo, se a chuva não vier, provavelmente, a consequência vai ser algum tipo de racionamento. Ou seja, se o país crescer, a energia não vai segurar esse crescimento.

 

No curto prazo?

— Em curto prazo. E o país vai perder o último instrumento que tem: a Eletrobrás. É o instrumento para intervir de forma a acelerar a possibilidade de oferta de outros tipos de fonte primária de energia. Porque, veja, a termoelétrica a gás vai ficar ao sabor do mercado. Hoje, existem cinquenta e poucas termoelétricas em construção no Brasil, cada uma com capacidade de gerar cerca de 80 MegaWatts, 90 MegaWatts, o que é muito pouco.

A partir de 2015, o país teve uma contração bastante intensa dos investimentos no setor na esperança de que a Lei do Gás mudaria substancialmente a realidade. No que se refere às energias alternativas, que há um grande volume de projetos novos em construção, também pode haver um impacto em função da privatização da Eletrobrás.

O Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica pode ser ameaçado e pode-se ter limitações do crescimento da energia eólica pelo mercado. O problema de depender totalmente do mercado é que, dificilmente, ele assume riscos para mudar a realidade antes que a realidade mude.

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