Morre o cineasta Silvio Tendler, aos 75 anos: uma vida dedicada a documentar o Brasil nas telas
Conhecido como o “cineasta dos sonhos interrompidos”, Tendler se guiava pelo compromisso com a memória. São mais de 70 produções a trajetória de personagens da política e da cultura brasileira

Morreu hoje, sexta-feira (5), no Rio de Janeiro, o cineasta Silvio Tendler, aos 75 anos. O diretor estava internado no Hospital Copa Star, no Rio de Janeiro. A Caliban, produtora fundada por Tendler, confirmou a informação nesta manhã.
Conhecido como o “cineasta dos sonhos interrompidos”, Tendler construiu uma carreira marcada pelo compromisso com a memória nacional, registrando em mais de setenta produções a trajetória de personagens centrais da política e da cultura brasileira.
Obras como Jango, Os Anos JK e Marighella tornaram-se referências obrigatórias para quem busca compreender os processos históricos que moldaram o país no século XX, assim como sua mais ambiciosa realização, Utopia e Barbárie, em que explorou as contradições de um mundo em permanente transformação.
O cineasta também produziu filmes sobre intelectuais, pesquisadores e artistas brasileiros como Josué de Castro – Cidadão do Mundo (1994), Milton Santos – Pensador do Brasil (2001); Glauber o Filme, Labirinto do Brasil (2003).
É dele documentário “O Mundo Mágico dos Trapalhões” produzido em 1981 e até hoje reconhecido por ter atingido a maior bilheteria para filmes nacionais no segmento: 1,8 milhão de espectadores.
Homenagens
Pelas redes, a Casa Rui Barbosa (ligada ao Ministério da Cultura) assinala que Tendler teve “uma vida inteira dedicada a contar a história recente do país com coragem, compromisso e denúncia.”
Silvio Tendler foi condecorado duas vezes pelo governo federal: a primeira vez pela Ordem de Rio Branco em 2006 (Presidência da República); e a segunda vez, este ano, como comendador da Ordem do Mérito Cultural (Ministério da Cultura).
O enterro de Silvio Tendler será no domingo (7), às 11h, no Cemitério Comunal Israelita do Caju, localizado na zona portuária do Rio. Ele se descrevia como “um utopista” que acreditava “que a vida vai melhorar.”
Tendler e FPA
Em diversos momentos, Silvio Tendler construiu e contribuiu com a Fundação Perseu Abramo, espaço em que encontrou afinidade com debates sobre memória, democracia e justiça social.
Em março de 2024, lançou, na sede do PT do Rio de Janeiro, o filme “Memória e Exílio”, e participou de uma roda de conversa com os presentes. Na ocasião, discutia-se no país os 60 anos da Ditadura Militar do Golpe de 1964. Homenageado em dezembro de 2023 pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, durante a 13ª Mostra de Cinema e Direitos Humanos, Tendler havia exibido na ocasião apenas um trecho do filme.
Participou de encontros, palestras e exibições promovidas pela instituição, sempre reforçando a importância do cinema documental como ferramenta de resistência e formação política. Nessas ocasiões, costumava defender que preservar a memória era também um ato de luta contra o esquecimento e a manipulação da história, princípios que marcaram não apenas sua obra, mas também sua militância intelectual.
Em agosto de 2021, em plena pandemia da Covid-19, o cineasta concedeu entrevista à Focus Brasil. Você pode ler aqui: Silvio Tendler: “Você tem hoje um governo genocida, com uma estratégia do mal”. Testemunha e estudioso da História, Tendler afirmou na entrevista que a censura às artes e ao cinema é algo que se repetia durante o governo Bolsonaro, “porque os conservadores são incapazes de realizar produções que tenham a mesma qualidade dos filmes que nós realizamos”, disse ele.
“Eu aceitaria o confronto de bom grado”: o cineasta ainda falou sobre a figura de Jair Bolsonaro e do quão inacreditável foi a sua eleição para a presidência da República. Aos 71 anos, à época, estava prestes a lançar o filme “A Bolsa ou a Vida”, que mostra a necessidade de se repensar a forma de lidar com o planeta no futuro. O filme está disponível na plataforma “Box Brazil Play”.
Silvio Tendler: uma vida de arte e luta de resistência
Silvio Tendler (Rio de Janeiro RJ 1950). Cineasta, professor e historiador. Aproxima-se do cinema em 1965 pela atividade cineclubista e, em 1968, torna-se presidente da Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro. Trabalha como assistente de direção na produtora Mapa Filmes. Em 1968, entrevista o marinheiro João Cândido (1880 – 1969), líder da Revolta da Chibata (1910), mas não realiza o projeto cinematográfico. Após o Ato Constitucional nº 5 (AI-5), de 1968, viaja para o Chile no fim do ano de 1970, e se inicia em fotografia e edição, participando de produções de cunho popular.
Seus três primeiros longas-metragens marcam o alcance do diálogo que estabelece com o público, até hoje as melhores bilheterias de documentários no Brasil: 1 milhão com Jango (1984), 800 mil com Os Anos JK, uma Trajetória Política (1980) e 1,8 milhão de espectadores com O Mundo Mágico dos Trapalhões (1981). O primeiro trabalho, Os Anos JK, além de boa recepção do público, é premiado pela crítica. Para o crítico de cinema Jean-Claude Bernardet (1936), em Os Anos JK é clara a opção do diretor pela valorização da imagem de um “presidente liberal”, na articulação entre cenas de cinejornais e os comentários do locutor.
O sociólogo José Mário Ortiz Ramos, ao comparar Os Anos JKa Jango – filme mais premiado de Tendler -, identifica no primeiro a marca de uma narrativa fria (acentuada pela voz off) pontuada pelo eixo “desenvolvimento e democracia” e, em Jango, o papel da montagem que expressa o posicionamento político do diretor na composição de imagens, fotografias, depoimentos, textos e trilhas musicais que tornam a narrativa mais dinâmica.
Em Encontro com Milton Santos ou o Mundo Globalizado Visto do Lado de Cá (2006) e Utopia e Barbárie (2010), Tendler muda a forma de suas abordagens. No primeiro, resgata o momento histórico da virada do século não mais pela trajetória política de um personagem, mas pelas próprias ideias do geógrafo; em Utopia e Barbárie, apresenta importantes eventos políticos dos últimos 50 anos, enfatizando sua experiência e observação pessoal, a partir da reinterpretação de sequências de obras cinematográficas incorporadas e de depoimentos.