Em entrevista exclusiva à Focus Brasil, o economista Yanis Varoufakis defende que o capitalismo foi superado por um novo sistema de dominação digital, o tecnofeudalismo, e alerta: só uma aliança entre os BRICS e a esquerda global pode deter o avanço da exploração na era da nuvem

Tecnofeudalismo global: “O capital foi tão triunfante que matou o capitalismo”, diz Yanis Varoufakis
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Fernanda Otero*

Yanis Varoufakis é um dos intelectuais mais provocadores da economia política do século XXI. Ex-ministro das Finanças da Grécia e professor universitário, ganhou notoriedade global por enfrentar a Troika durante a crise grega de 2015, e por desmontar os mitos da tecnocracia financeira internacional. Hoje, ele propõe uma tese radical: o capitalismo não está em crise, está morto. E foi o próprio capital que o matou.

“O capital foi tão triunfante que matou o capitalismo”, afirma Varoufakis, que batizou o novo sistema de tecnofeudalismo. Nesse regime, as grandes plataformas digitais operam como senhores feudais da era da nuvem, não mais produzindo mercadorias, mas controlando o desejo humano e extraindo rendas digitais diretamente dos usuários. “Amazon.com substituiu os mercados por feudos na nuvem”, explica.

Governança econômica em tempos de crise

Em entrevista exclusiva à Focus Brasil, concedida direto da Grécia, Varoufakis faz uma análise devastadora das estruturas de governança econômica global e da crise ética da esquerda. Segundo ele, o colapso da solidariedade internacional entre os progressistas tem custado caro à classe trabalhadora. “Os banqueiros e os fascistas cooperam. Nós, progressistas, nos sabotamos.”

O ex-ministro também destaca o papel central que o Brasil pode exercer, ao lado da China, na construção de uma nova ordem financeira internacional. China e Brasil são os pilares dos BRICS. O resto é coadjuvante”, afirma, ao defender que o Sul Global assuma protagonismo na criação de um novo sistema monetário multilateral.

Voz indispensável no debate sobre o futuro do sistema econômico mundial, Varoufakis desafia o mainstream. Seu livro Adults in the Room (2017) tornou-se best-seller na Alemanha e no Reino Unido, enquanto Tecnofeudalismo (2023) entrou para o Top 10 de Economia da Amazon, organização criticada por ele, nos Estados Unidos e no Reino Unido. No Brasil, a revista Veja destacou Tecnofeudalismo como um dos livros de economia mais comentados de 2023.

Como você vê os últimos dez anos depois que o Syriza (Coligação da Esquerda Radical, partido político) assumiu o poder na Grécia? Há algo que você percebe agora que naquela época você não percebia? 

Sem dúvida, o que aconteceu dez anos atrás foi o desperdício do sacrifício, pela nossa própria liderança, de uma fantástica oportunidade que a esquerda, de modo geral, não apenas na Europa, não apenas na Grécia, mas globalmente… É o tipo de oportunidade que temos uma vez na vida inteira. E para ser direto, nós a desperdiçamos. Fomos derrotados. Nem sequer foi derrota, foi traição. Então, como gostamos de dizer na esquerda, não existe algo como vitória final e não existe algo como derrota final. Mas já que você perguntou, o que eu aprendi nos últimos 10 anos, eu aprendi, ou reaprendi algo que a geração dos meus pais, a geração dos meus avós, e tenho certeza a geração dos seus avós e pais sempre souberam. Mas, é importante aprender mais uma vez, que sempre que os movimentos populares perdem, não é porque os poderosos, as grandes corporações, os interesses, da concentração de capital são fortes. Não. Somos derrotados por causa das nossas próprias falhas. Somos derrotados porque estamos divididos, porque não temos a consciência de classe que o capital tem. Banqueiros, grandes empresas, big techs, os Rockefellers e os Elon Musk e os Deutsche Banks e os Wall Streets do mundo, eles têm muito mais consciência de classe e solidariedade do que nós, e isso é algo que deveria nos fazer refletir. Aprendi outras coisas também. Por exemplo, que os poderes estabelecidos, as grandes instituições do poder mundial, pessoas como os economistas e funcionários do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, do Banco Central Europeu, aqueles que se apresentam ao mundo como os adultos da sala, como tecnocratas, como os que detêm o conhecimento, os mestres do universo, eles são profundamente incompetentes.  Eu sou economista, passei toda a minha vida ensinando em universidades, eu presumia que grandes empresas, grandes bancos, o grande capital financeiro empregasse pessoas vindas de Harvard, Yale, Stanford, Cambridge e Oxford, que estão no topo deste jogo dos inimigos da classe trabalhadora, que são muito bons nisso, mas isso não é verdade. As pessoas que conheci eram altamente incompetentes. Eles simplesmente não seriam capazes de organizar como escapar de uma sacola de compras. Eles, tecnicamente, se você os analisar como economistas, eles eram patéticos, não entendiam economia básica. O que mais aprendi além disso? Que eles não estavam nem aí, porque não se tratava de economia, não era sobre sustentabilidade da dívida, não era sobre escolher a taxa de juros correta; não era sobre todos esses tecnicismos que eles apresentam como a “Ciência da Sociedade”, era sobre força bruta. Era sobre, como disse Lenin, quem faz o que contra quem e que poder eles têm sobre outras pessoas. E, sabe, nenhuma quantidade de capacidade intelectual da nossa parte, nenhuma quantidade de bons modelos econômicos poderia convencê-los porque eles não estavam nem aí. Eles só queriam esmagar qualquer um que desafiasse a autoridade de seus patrões, estas são coisas que no fundo, todo esquerdista sabia, mas não nessa extensão, especialmente o grau de incompetência em suas fileiras, o que também é uma boa notícia porque nós da esquerda temos uma tendência, mesmo que não admitamos, a superestimar as habilidades do inimigo, suas competências, compreensão, destrezas tecnocráticas, e de subestimar as nossas. Então camaradas, eles não são tão bons. O problema é que não estamos unidos. E quando nos aproximamos do poder, nós da esquerda, demonstramos uma tendência a falhas éticas também. E precisamos ser autocríticos sobre isso. Se perdemos, perdemos por causa do que fazemos errado, não por causa do imenso poder exorbitante do inimigo. 

Como está a esquerda na Grécia neste momento? Você pode nos dar uma breve explicação sobre o que é a Troika e o que é o “keynesianismo militar” que você tem falado ultimamente?

Meus amigos e camaradas no Brasil sabem o que precisam saber sobre a Grécia. A Grécia é uma colônia, no sul da Europa, dos grandes bancos europeus e do grande capital europeu, isso é tudo que vocês precisam saber. A razão pela qual vocês sequer se interessam pela Grécia é porque toda a União Europeia, a economia capitalista europeia, foi organizada como um vassalo dos Estados Unidos, como um apêndice dos Estados Unidos. Os europeus adoram retratar a União Europeia como um grande feito europeu, mas não é nada disso: a União Europeia foi projetada pelos americanos, era parte do plano americano, do plano global, começando em 1944, mesmo antes do fim da Segunda Guerra, pela hegemonia mundial. E eles precisavam de uma Europa que funcionasse como coadjuvante dos Estados Unidos, precisavam que a Europa absorvesse as exportações dos Estados Unidos, porque naquela época a América, ao contrário de agora, era exportadora líquida. A Europa estava em ruínas por causa da guerra, e assim esta União Europeia foi projetada como um cartel de grandes empresas que era funcional aos interesses da acumulação de capital americano. Isso funcionou muito bem por duas décadas nos anos 1950 e 1960, enquanto os Estados Unidos eram um país superavitário, eles eram os exportadores líquidos. Essencialmente, eles nos davam o dinheiro, eles nos dolarizaram aqui na Europa, como dolarizaram os japoneses e em troca, o que obtiveram foi que comprávamos seus produtos, seus aviões e suas máquinas de lavar e seus refrigeradores e assim por diante. Até o final dos anos 1960, quando deixaram de ser exportadores líquidos e se tornaram importadores líquidos, então explodiram aquele sistema das primeiras duas décadas chamado Bretton Woods (para quem se lembra como era chamado, com taxas de câmbio fixas) e criaram um sistema completamente diferente: inverteram o sistema. Enquanto entre os anos 1950 e 1960 os Estados Unidos, estavam enviando para a Europa, Japão, Ásia, dinheiro, dólares para continuar vendendo aos europeus e aos japoneses suas exportações líquidas, quando se tornaram importadores líquidos, enviaram dinheiro (dólares) na forma de seu próprio déficit comercial. O déficit comercial funcionava como um aspirador que sugava para o território dos Estados Unidos, as exportações líquidas da Alemanha, Itália, Japão e posteriormente da China, e eles eram pagos com dólares. Como conseguiram manter isso? Porque os dólares que os capitalistas alemães, japoneses, franceses, italianos (e depois chineses) ganhavam retornavam aos Estados Unidos da América. Eram reciclados, não ecologicamente, mas num esquema de reciclagem macroeconômica: o dinheiro voltava para financiar os déficits do governo americano, seu exército, a bolsa de valores e o mercado imobiliário. Essa era a situação. A União Europeia, e especialmente a Zona do Euro, nossa moeda comum, foram projetadas para ser parte desse sistema. Mas esse sistema colapsou em 2008 e a arquitetura europeia simplesmente não tinha capacidade de lidar com isso e começou a desmoronar. Quando você tem um prédio de apartamentos, que é arquitetonicamente, estaticamente frágil, e acontece um terremoto, como a grande crise financeira, ele começa a tremer e começa a desmoronar, certo? É o apartamento mais fraco que vai desabar primeiro, essa é a Grécia. Não que a Grécia não fosse importante por ser a Grécia, mas era porque era a parte mais frágil da frágil arquitetura da Europa capitalista.

Tecnofeudalismo global: “O capital foi tão triunfante que matou o capitalismo”, diz Yanis Varoufakis
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Quando tudo começou a desmoronar, correram para a Grécia, que virou um laboratório distópico. O que eles queriam era garantir que, nesta crise, não houvesse nada que pudessem fazer. Eles a criaram: o grande capital financeiro, Wall Street, os bancos. Era uma crise bancária, a crise de 2008, não se engane, não era uma crise de dívidas, era uma crise dos bancos, do capitalismo, que depois se transformou em crise da dívida quando os Estados Unidos assumiram todos os prejuízos dos bancos. A prioridade número um dos formuladores de políticas era garantir que a classe trabalhadora pagasse o custo da própria crise, da crise bancária, da crise do grande capital. Isso significou austeridade, redução de salários, de pensões, previdência social e assim por diante, para salvar os criminosos, os que criaram a crise. Então, a Grécia, como fomos os primeiros a cair, se tornou um laboratório distópico. Eles chegaram em 2010 supostamente para nos socorrer. Quer dizer, a América Latina sabe muito bem o que significam esses “resgates”. Significam socorrer a si mesmos, os banqueiros de Wall Street, de Frankfurt, de Paris, a classe dominante local, não para o país, é exatamente o oposto. É sangrar o país. Eles vieram e dedicaram todos os esforços para esmagar o povo grego. Foi uma demonstração efetiva, dizendo aos irlandeses, italianos, o proletariado francês e alemão: “Isto acontece se vocês resistirem. Serão esmagados como os gregos”. Só fomos azarados por sermos os primeiros a cair. Por isso, falamos da Grécia, eles nos esmagaram. Em 2010, em 2015, após anos de protestos e movimentos sociais e de solidariedade, algo extraordinário aconteceu em janeiro de 2015: vencemos as eleições, a esquerda radical venceu. Fomos de 4% para 40% em poucos anos, isso é incrível. Aceitei o cargo de ministro das finanças por um único motivo: parar os resgates financeiros, impedir a transferência das perdas dos financistas para os ombros dos cidadãos mais vulneráveis, da classe trabalhadora, dos aposentados, das pessoas que não podiam se defender. E isso significava, na prática, reestruturar, reduzir, diminuir massivamente a dívida pública, e acabar com a austeridade. Foi para isso que fomos eleitos. E lutamos durante cinco meses, e foi uma luta magnífica. Infelizmente, dentro do nosso governo, percebi logo, que havia forças que estavam basicamente tentando se render ao sistema financeiro, ao grande capital. Eu não acreditava que fariam isso, então continuei lutando. Até que dez anos atrás, em 5 de julho de 2015, o primeiro-ministro, meu camarada na época, Alexis Tsipras, convocou um referendo. Eu realmente esperava que vencêssemos aquele referendo. Infelizmente, como descobri depois, ele queria perder esse referendo para ter uma desculpa para se render. E vencemos o referendo porque o povo grego realmente enfrentou o desafio. Lembrem, fomos de 4% para 40%, e no referendo obtivemos 62%. Tínhamos um mandato para lutar, mas naquela noite entrei no escritório dele, no gabinete do primeiro-ministro, e ele disse: “É hora de nos rendermos”. Eu disse: O quê? Não, é hora de lutar e honrar essas pessoas lá fora. Enfim, não deu certo. Renunciei naquela noite. E, desde então, tivemos dez anos de destruição da esquerda. Porque quando ele impôs termos e condições que foram catastróficos para a maioria do povo, especialmente a classe trabalhadora, foi em nome da esquerda, certo? Uma coisa é ter austeridade sendo imposta por Bolsonaro, outra completamente diferente é tê-la imposta pela esquerda, quando a esquerda a impõe, a esquerda morre, ela comete suicídio. Só os fascistas se beneficiam disso, é onde estamos agora:  a Grécia está totalmente esmagada. Não acreditem em quem diz que a Grécia se recuperou, 80% da população está em pior situação hoje do que há 15 anos. A média salarial, o poder de compra da renda real média disponível é 44% menor do que era em 2009, 44% é impressionante! Se acontecesse no Brasil, haveria uma revolução, haveria sangue nas ruas.Este é um lugar derrotado e esmagado. Sei que esta é uma resposta longa, mas deixe-me conectar isso com o que acontece na Europa. Como a Grécia foi um laboratório distópico, onde fizeram isso não por odiarem os gregos, como eu disse antes, fizeram para levar este pacote de austeridade para muitos e socialismo para os banqueiros, esta impressão de dinheiro para banqueiros e austeridade para muitos, esta guerra de classes. Levaram este modelo para a Irlanda, Portugal, Espanha, Itália, França e Alemanha. O que aconteceu foi que esmagaram a renda da maioria dos europeus enquanto imprimiam trilhões e trilhões de euros para os muito ricos. E que acontece agora? Veja, você dá dinheiro para uma empresa como Volkswagen, dinheiro impresso pelo banco central. O CEO da Empresa Volkswagen, olha pela janela e o que ele vê são pessoas sem dinheiro. Então ele não investe o dinheiro que recebe do banco central em novas capacidades produtivas, em veículos elétricos, Por exemplo, em vez disso, ele pega esse dinheiro, que é dinheiro gratuito que lhe foi dado… E normalmente é sempre “ele”, certo? Não vou dizer “ele” ou “ela” porque são sempre “eles”. O patriarcado continua abraçando seu poder financeiro. Então, vão à Bolsa de Valores de Frankfurt e compram suas próprias ações da Volkswagen, isso infla artificialmente o valor das ações, mas não tem investimento. O resultado, são 15 anos sem investimento. Você tem a desindustrialização, agora a Volkswagen não consegue competir com a BYD, não consegue competir com a Tesla. A Europa está indo por água abaixo. E o que eles fazem? Qual é a grande ideia? A grande ideia é: “Tudo bem, não podemos mais vender carros”, pensam os alemães. “Então vamos repassar nossas fábricas de automóveis ociosas para a Rheinmetall, empresa que fabrica tanques. E vamos forçar o governo a comprar esses tanques porque Putin está às nossas portas”. Por fim, estamos falidos aqui na Grécia, na Itália, em toda parte, como resultado de tudo que acabei de descrever e estão nos forçando a comprar, mas o dinheiro não existe. Então nos forçam a aumentar ainda mais a dívida que já é insustentável, para comprar tanques que não precisamos nem queremos, só para manter as fábricas alemãs funcionando. Isso é keynesianismo militar, que é o oposto do keynesianismo. Keynes estaria se revirando no túmulo a rotações por minuto altíssimas, porque isso não é sustentável. Se investissem dinheiro público, dinheiro emprestado, em energia verde, a energia verde se pagaria. Mas quando investem em tanques Leopard, que nem os ucranianos querem, porque são alvos fáceis destruídos por drones, são completamente, altamente inúteis. Inúteis. Até militarmente, são inúteis. Quantos tanques Leopard você pode comprar? Compra alguns milhares e fica cheio de tanques Leopard, depois para de comprar. Esse keynesianismo militar continua, mas não tem capacidade de se sustentar. Essa é a situação da Europa e da Grécia, desculpe, foi uma resposta muito longa, mas 

Todas essas explicações nos levam ao ponto em que você decidiu organizar o DiEM25 (Movimento Democracia na Europa). Por que você decidiu organizá-lo?

Bem, a razão pela qual criamos o Movimento Democracia na Europa, DiEM25, (inspirado no Carpe Diem) é por algo que eu disse antes: os banqueiros e os fascistas são internacionalistas. Eles são verdadeiros internacionalistas. Se você for a Davos, não acho que deva, eu nunca fui, mas teoricamente, se você for a Davos e ver esses banqueiros conversando entre si, são como irmãos de armas, não importa se são suíços, alemães, nigerianos, brasileiros, tanto faz, eles se amam e ficam unidos. Se você ataca um deles, se algum governo ataca um deles, os outros se unem em torno dele e oferecem solidariedade e apoio. Os fascistas, veja Bolsonaro, Trump, Orbán, Le Pen, Meloni; eles se amam, estão completamente, completamente de braços dados. Eles cooperam, não se sabotam. 

Agora, olhe para nós, progressistas, marxistas, socialistas, comunistas, o que seja; estamos sem esperança. Quer dizer, criamos a Internacional Progressista, que foi um grande passo, e fico muito feliz que temos muitos camaradas no Brasil participaram disso. Criamos o DIEM 25 para isso, depois de criarmos a Internacional Progressista, mas por que fizemos isso? Porque a esquerda está desorganizada mundialmente, quer dizer, não há nível de coordenação ou solidariedade comparável ao dos banqueiros ou fascistas, esse é o ponto. O objetivo é criar o nível de solidariedade que precisamos para contrapor, em nível global, a solidariedade total, entre banqueiros e a solidariedade total entre os fascistas.

Você acompanha a política brasileira? Se acompanha, como vê a liderança de Lula no Sul Global e o avanço dos BRICS? 

Para começar, embora nunca tenha conhecido Lula pessoalmente, tenho grande proximidade e sou amigo de muitas pessoas do governo. Deixe-me registrar oficialmente: Fernando Haddad, ministro da Fazenda, é um grande amigo, trabalhamos juntos. Veja, os anos Bolsonaro foram um pesadelo, então, todos nós nos beneficiamos com Lula na presidência, desejamos ao governo todo sucesso e faremos tudo o que for necessário para ajudar, porque é uma tarefa difícil. O problema que a maioria dos países latino-americanos de esquerda enfrentam é que, eles podem controlar a presidência, mas não controlam o Congresso, não controlam os governos regionais, e muito do que precisa ser feito depende do apoio do Congresso. No final, entendo que precisam fazer concessões que comprometem a capacidade do presidente e sua equipe de implementar seu programa. Assim, acabam arcando com o custo político, precisam pagar o preço político por não controlarem totalmente o governo. Recebem toda a culpa por quaisquer falhas ou atrasos na implementação do programa, mas não recebem o benefício da dúvida, algo que merecem, já que não controlam o governo. Senti isso quando estava no governo. as pessoas diziam: “Ah, você está no governo”. Eu respondia: Não, não estou, no governo. E não estou no poder. Tinha o ministério, mas muito pouco poder dentro dele como o ministro da Fazenda. Me preocupo com isso e compreendo perfeitamente a situação de Haddad.  A participação do Brasil nos Brics também é uma grande fonte de esperança, porque vamos encarar: a China é o único baluarte contra o imperialismo atualmente, em nível internacional. A China é um trabalho em desenvolvimento em si mesma. Eu tenho muitas críticas ao regime chinês, mas mesmo assim, é um lugar que realmente funciona, eles são os adultos na sala, eles são aqueles em que os movimentos populares e a classe trabalhadora, tem uma oportunidade, e estão fazendo coisas realmente impressionantes, tanto no nível da indústria, do município, na democracia de base, que é muito mais agitada na China do que na Europa ou nos Estados Unidos. Embora, não há democracia no nível do governo central, mas há muita democracia no nível local. Em termos de Brics, China e Brasil são os verdadeiros pilares do Brics, o resto são coadjuvantes, na minha opinião, e isso é muito importante. Eu gostaria de mais engajamento, no que considero nosso dever internacionalista, por exemplo, quando se trata do único assunto hoje que vai determinar como as futuras gerações nos verão, e esse assunto é a Palestina. Há um genocídio acontecendo. Eu gostaria que o Brasil se juntasse ao grupo que a Internacional Progressista organizou ontem, deveriam fazer parte disso, o governo Lula precisa fazer parte disso, não devem se intimidar com a resposta da administração Trump. A administração Trump será ameaçadora e venenosa com o Brasil, independentemente do que Lula faça, porque é da natureza deles. Então, junte-se ao grupo de resistência, participe do esforço para marginalizar Israel e suas estratégias genocidas, e assuma um papel mais ativo na criação de um novo sistema monetário no âmbito dos Brics. Não estou falando de uma moeda comum, o que estou falando é que os Brics, sob a liderança conjunta da China e do Brasil, têm a capacidade de criar algo como o sistema de Bretton Woods, o sistema dos anos 1950 e 1960, democratizado, nada parecido com Bretton Woods liderado pelos EUA, mas algo nesse sentido. Gostaria de ver mais envolvimento do governo brasileiro nisso, porque, considerando que o Congresso não está cooperando e está criando dificuldades para o governo Lula, pode não haver muito tempo antes que percam a capacidade de exercer um papel de liderança. E eu realmente acredito que o Brasil e a China juntos têm que desempenhar um papel de liderança, o resto de nós, progressistas aqui na Europa, não temos mais ninguém para recorrer. Então, mecham-se, não sejam tímidos, cerrem os lábios e não tenham medo do que Washington pensa de vocês. Eles não pensam muito em vocês. 

A motivação principal para esta entrevista é a sua teoria sobre o Tecnofeudalismo. Gostaria que você nos explicasse o conceito e como ele traria luz à discussão econômica moderna.

O ponto que estou destacando com meu livro intitulado Tecnofeudalismo, com um subtítulo difícil de assimilar pela sua essência, um subtítulo muito controverso: “o que matou o Capitalismo? não “o que está matando o capitalismo?”, mas “o que matou o capitalismo?” é um subtítulo que realmente irritou muitos dos meus camaradas na tradição marxista. Mas o que tento explicar a eles é que este é um livro marxista, é uma análise política marxista. O que estou dizendo é que o capital foi tão triunfante que matou o capitalismo, e o que temos agora é pior que o capitalismo, é baseado no capital, e é baseado no triunfo completo do capitalismo. Mas não é mais capitalismo no sentido da ideia antiquada de mercados e lucros como os dois pilares, as duas colunas do sistema, agora é algo muito pior. E não estou dizendo que estamos voltando ao feudalismo, não, isso não é voltar ao feudalismo. Isso é avançar para uma evolução muito pior do capitalismo, que se baseia no triunfo do capital, em uma mutação do capital. Deixe-me ser breve e ir direto ao ponto: meu ponto é que o que vive em nossos telefones, em nossos computadores, dentro de todo o software e hardware, sabe, cabos de fibra óptica e as fazendas de servidores e os algoritmos que alimentam as Big Techs, é capital, é uma forma de capita, mas é muito diferente de qualquer tipo de capital que a humanidade já teve. O capital, claro, precede o capitalismo. Qualquer ferramenta, qualquer coisa que criamos para criar algo mais, seja uma máquina a vapor que você usa para produzir têxteis ou um arado que você usa na terra para cultivar e produzir milho ou trigo; estes são meios de produção produzidos. Isso é o que o capital é na nossa tradição marxista, correto? Esqueça, não é dinheiro. São máquinas que criam ou ferramentas ou instrumentos para construir algo mais, uma mercadoria. Bem, essas máquinas às quais agora estamos colados dentro de suas telas, que nos magnetizam, elas são máquinas, meios produzidos, mas não de produção, elas não produzem nada, exceto o poder de modificar diretamente o comportamento humano, algo que nenhum equipamento de capital jamais teve. Então, se você fosse Henry Ford, você tinha bens de capital, tinha suas fábricas, sua maquinaria, sua linha de produção, linha de produção em massa, que permitia explorar mão de obra, extrair mais-valia dos proletários que trabalhavam nessas linhas de produção para obter seu ‘Modelo T’ que você então tinha que anunciar para as pessoas comprarem. Para isso, você usava publicitários, seres humanos de verdade, agora, as máquinas estão conectadas diretamente ao nosso cérebro, à nossa própria alma. Nós as treinamos para nos treinar, para treiná-las, para que elas nos conheçam melhor, para que nos deem bons conselhos, para que ganhem nossa confiança, para que então possam direcionar nossos desejos e criar desejos diretamente. Não um publicitário, mas uma máquina cria desejos que são feitos sob medida para mim. E às vezes ela me oferece bons conselhos e serviços que eu realmente quero, não vivo sem, sou viciado. Além disso, uma vez que essa máquina inseriu um desejo específico em meu coração, ela me vende a mercadoria que satisfaz isso diretamente, contornando qualquer mercado, porque a Amazon.com faz exatamente isso: contorna todos os mercados e envia um pacote para você, e Jeff Bezos cobra um aluguel que representa 40% do preço. Agora, essa é a única alusão ao feudalismo, porque o feudalismo operava não com lucro, mas com renda. E não com máquinas, mas com terra. 

Bem, agora o que estou dizendo é que as plataformas digitais são chamadas de feudos na nuvem. Elas vivem na nuvem e são como feudos. Elas não produzem nada, exceto reunir produtores e consumidores, para que o dono desse feudo na nuvem possa extrair uma renda, que é como a renda da terra no feudalismo, mas agora é uma renda da nuvem baseada em capital, nessa forma de capital, que eu chamo de capital na nuvem. Quando estamos nesse mundo, isso não é mais capitalismo, é uma espécie de, chamo eu, de tecnofeudalismo. Agora, algumas pessoas dizem: “Ah, qual é, ainda é capitalismo, Yanis, porque depende do capital.” Ok, tudo bem. Mas eu também digo a eles: se isso fosse no ano 1800, em Londres, e estivéssemos discutindo em que mundo vivemos, seria feudalismo ou capitalismo? As pessoas diriam: “Ah, qual é, é feudalismo, onde quer que você olhe.” No século XVIII, você veria senhores feudais, cavaleiros, condes e barões, e sim, claro, mas agora sabemos que havia uma grande transformação ocorrendo. O poder estava cada vez mais mudando dos donos da terra para os donos das máquinas, das fábricas, das ferrovias e assim por diante, eles poderiam ter chamado o capitalismo de outra forma. Poderiam ter chamado de feudalismo industrial. Mas acho bom que tenham chamado de capitalismo porque a mente humana percebeu, ficou chocada ao entender que isso não era mais feudalismo, nenhum tipo de feudalismo, isso era algo muito diferente. É por isso que digo que é melhor pensar nisso como algo que foi além do capitalismo para algo que está tornando o capital ainda mais poderoso porque está diretamente ligado aos nossos cérebros, mas porque está diretamente ligado aos nossos cérebros, está destruindo mercados; destruindo mercados não, monopolizando mercados, destruindo-os. A Amazon.com não é um mercado, ela substituiu os mercados por um feudo, que vive na nuvem. E a menos que você entenda isso, você não pode compreender o mundo em que vivemos hoje, não pode entender por que, por exemplo, a Volkswagen nunca será capaz de competir com a Tesla ou com a BYD, a razão é que a Volkswagen não possui capital na nuvem; ela não está conectada à nuvem com seu próprio capital na nuvem, enquanto a Tesla, está. É por isso que Elon Musk comprou o Twitter, a BYD está conectada com a Baidu e assim por diante, você não pode entender por que existe essa Guerra Fria, uma nova Guerra Fria entre os Estados Unidos e a China, não tem nada a ver com Taiwan, não tem nada a ver com a produtividade e o avanço tecnológico da China. Eles sabiam disso, os americanos, muito antes, quer dizer, eles na verdade possibilitaram isso. Não, o que ocorre é que o capital na nuvem agora está concentrado no Vale do Silício e na China, portanto, existem dois polos de poder extremo que surgem, emanam, fluem do capital na nuvem, americano e chinês, e o que vemos é um conflito entre esses dois. Por que os Brics são tão aterrorizantes para os americanos? Eles são aterrorizantes porque a China possui capital na nuvem que se fundiu com o Brics Pay, que é uma forma de capital na nuvem baseado em blockchain. De certa forma, essa aglomeração, essa interconexão entre bancos chineses, o Brics Pay, o WeChat, o aplicativo incrível que eles têm para fazer pagamentos gratuitos na China, o dinheiro digital do Banco Central da China, com o comércio brasileiro, isso, o Ocidente não tem, e o Ocidente não pode ter. Não porque tecnologicamente estejam atrás, mas porque Wall Street nunca permitirá que as grandes empresas de tecnologia compartilhem suas rendas financeiras. E eles não permitirão que o FED tenha sua própria moeda digital. A administração Trump aprovou no Congresso a chamada Lei Genius, que proíbe o Federal Reserve de desenvolver sua própria moeda digital, enquanto os chineses a têm e os brasileiros estão usando. 

E ele tem a sua, e sua esposa tem a sua. 

Sim, mas todos são corruptos, eles sempre foram corruptos, temos políticos corruptos em todo lugar. É por isso que, como marxista, faço uma análise de classe, uma análise baseada na forma de capital, essa nova forma de capital, que é absolutamente sem precedentes, nova e inovadora, que criou o que eu chamo de tecnofeudalismo. 

Como neste novo tipo de capitalismo, você vê uma nova forma de concentração de poder e riqueza. Xi Jinping está tratando muito sobre esses novos meios de produção como uma forma de atingir um novo nível de economia. Nesse sentido, onde estão os trabalhadores agora? Como podemos encontrar os trabalhadores? Porque esta é uma das crises no partido agora, é como mostrar ao trabalhador que ele é um trabalhador, que faz parte de todo um processo de exploração. 

O Presidente Xi está certo de duas maneiras, de ambas as maneiras. Primeiramente, você viu o que ele fez com os “cloudalistas”, as pessoas que possuem capital em nuvem na China, ele os controlou completamente. Jack Ma foi expulso porque estava cobrando muito aluguel de terra, ou aluguel de nuvem, devo dizer, muito aluguel de nuvem, e da mesma forma, você sabe, o que eles dizem ao Baidu, ao Bilibili e assim por diante: se você exagerar, se você exceder seu comportamento de aluguel além de um certo nível, você está fora. Ninguém no Ocidente poderia fazer isso, ele está certo em fazer isso, mas porque é prejudicial aos interesses da sociedade que tanto aluguel de nuvem se concentre em tão poucas mãos. E em segundo lugar, quando dizem que nós vamos usar essas tecnologias, o “capital da nuvem”, para aumentar a produtividade, eles também estão certos. Porque lembre-se do que eu disse: O “capital da nuvem” ocidental não produz nada, é improdutivo. O Twitter é improdutivo, ou o “X”, o Facebook é improdutivo. Tudo o que ele faz é gerar poder para Zuckerberg, Bezos, Elon Musk, e outros, para manipular nossas mentes. Já na China, o que eles estão fazendo é pegar a inteligência artificial, pegar todos os algoritmos e fundi-los com máquinas para torná-las mais produtivas na fabricação de rolamentos, por exemplo, para aumentar a eficiência das máquinas que produzem rolamentos, para reduzir o número de rolamentos que são defeituosos, para essencialmente agregar valor ao processo produtivo. E sobre a questão do que dizemos aos trabalhadores, olhem, precisamos escapar do laborismo. Como marxista, sou contra o laborismo, não acredito que suar o dia todo numa fábrica seja essencialmente bom e que devemos preservar isso. Não. Se pudermos ter escravos que são escravos mecânicos substituindo o trabalho humano que destrói a alma e o corpo, não acredito que devamos, dizer moralmente, oh, não, precisamos manter as pessoas suando o dia todo porque é bom para o caráter delas. Não, não é bom para o caráter delas. E deixe-me dar um exemplo muito simples, pois isso vem direto de Karl Marx. E se aplica igualmente a máquinas a vapor e máquinas movidas por IA. Suponha que você tenha uma fábrica com 1.000 trabalhadores, e eles produzem copos de plástico laranja, e você pode introduzir um androide movido por IA que produz, com o mesmo trabalho, o dobro disso. O que acontece se for uma empresa capitalista? Se for uma empresa capitalista, o capitalista vai comprar aquele androide com IA e demitir metade dos trabalhadores. E então, metade dos trabalhadores ficará desempregada, e o resto da sociedade terá que tentar ser solidário com eles, seja pagando benefícios, seja acolhendo-os em nossas casas, ou organizando bancos de alimentos para alimentar seus filhos, e assim por diante. Agora, suponha que fosse uma cooperativa, que fosse uma empresa socialista, e que aqueles que antes eram trabalhadores fossem os coproprietários da fábrica. Eles trariam o androide, e em vez de trabalhar oito horas por dia, trabalhariam quatro horas por dia e, no restante do tempo, aprenderiam um novo idioma, cuidariam de seus idosos, cuidariam de seus filhos, poderiam ler um livro, poderiam montar uma companhia de teatro. Isso é o que um marxista deveria fazer, então é isso que precisamos fazer. Precisamos trabalhar para socializar os meios de produção e os meios de comunicação, que são parte do capital da nuvem, e transformá-los em escravos dos humanos, em vez de permitir que humanos sejam escravos dos donos dessas máquinas.

No Brasil agora, estamos lutando pela redução das jornadas, estamos discutindo como reduzir os dias de trabalho, a carga horária. Na China, há uma grande discussão sobre como o mercado de entregadores está superexplorando os trabalhadores, e eles não são considerados trabalhadores, promovendo um debate. Há até um filme chamado Upgrade, que fala sobre os entregadores, e realmente aborda como precisamos melhorar suas condições de vida. É interessante como isso se conecta com o seu ponto.

As condições de trabalho na China melhoraram substancialmente nos últimos dez anos. E os salários realmente aumentaram nos últimos dez anos, não há dúvidas sobre isso. Mas a extração de mais-valia continua. E um projeto socialista deveria ter como objetivo transformar proletários em proprietários, é realmente muito simples. Não é apenas uma questão de aumentar os salários, aumentar os salários é um passo importante rumo a outro objetivo. Karl Marx criticou sindicalistas que exigiam um salário justo. Lembram-se do que ele disse? “Isso não existe. Nenhum salário pode ser justo”. Porque a ideia do salário está intrinsecamente ligada à noção de que alguém será dono dos meios de produção sem operá-los, mas recebendo os lucros. Enquanto aqueles que operam os meios de produção não os possuirão. Ora, isso é um sistema de feudalismo industrial, também chamado de capitalismo, que devemos abolir. Agora, a IA. Dizem que a IA substituirá seres humanos, o trabalho humano, a questão é: quem possui a IA? Não se trata de regulá-la, esqueçam a regulamentação da IA, do capital da nuvem, a questão é quem a controla. Ou a sociedade a possuirá e colherá seus frutos, ou seremos escravos dos donos da IA, do capital da nuvem. Vejam bem, o projeto marxista de socializar os meios de produção nunca foi tão pertinente e atual quanto agora, e agora podemos fazê-lo. Na época de Marx, era impensável fábricas operarem sem humanos. Hoje podemos, nós vemos isso. Vá a qualquer fábrica da Apple, vá a qualquer fábrica da Tesla, sim, elas funcionam sozinhas, as máquinas. A questão é: quem é o dono delas? Algum ricaço que mora em Miami.

Você planeja ir à COP-30 em Belém este ano? 

Nunca. Eu jamais faria isso, porque considero essas COP, essas conferências, um insulto à inteligência de quem se importa com o planeta. São eventos que, supostamente em nome da Transição Verde, funcionam efetivamente como encontros sórdidos, tipo Davos, de interesses consolidados que fazem greenwash de suas políticas mais sujas e se banham na luz de parecerem se importar com o planeta. Não, deveríamos todos ir até lá para jogar tinta vermelha neles ou tinta preta e expô-los pelo que realmente são. Eles são instigadores e apoiadores de tudo que está destruindo o planeta. Então, apertem os pulsos, camaradas. Essas não são iniciativas de pensamento e prática ecológica. São exercícios para enganar a todos e continuar a destruição do planeta e da humanidade.

Tradução Fernanda Otero
Colaborou J. Renato Peneluppi Jr.