“Fizemos da TV Brasil um canal que exibe a produção audiovisual brasileira”, diz Antonia Pellegrino
Em pouco mais de um ano, Pellegrino não apenas reorganizou a casa como transformou a TV Brasil no quinto canal mais assistido do país – feito inédito para uma emissora pública com programação cultural e jornalística

Quando Antonia Pellegrino assumiu a direção da TV Brasil em 2023, encontrou uma emissora em frangalhos. Estúdios improvisados, equipamentos defasados e até câmeras amarradas com arame compunham o cenário de abandono. A situação era tão crítica que a TV pública havia sido fundida com a TV governamental no período anterior, interrompendo programações infantis para transmitir lives presidenciais. “Era uma terra arrasada”, define Pellegrino. Mas, em pouco mais de um ano, a roteirista, produtora e documentarista não apenas reorganizou a casa como transformou a TV Brasil no quinto canal mais assistido do país – feito inédito para uma emissora pública com programação cultural e jornalística.
A virada começou com medidas duras: a separação imediata entre comunicação pública e governamental, criando canais distintos. Depois, veio a reconstrução da identidade da emissora, que, nos anos anteriores, havia sido instrumentalizada para veicular o que Pellegrino chama de “imaginário retro-utópico bolsonarista”. “Tínhamos que atualizar esse imaginário sem perder o público existente”, explica. A estratégia se baseou em três pilares: valorização da produção independente brasileira, investimento em conteúdo próprio e busca por resultados de audiência.
O trabalho de articulação política foi essencial. Pellegrino recuperou R$70 milhões em obras públicas censuradas na gestão anterior e captou R$284 milhões em conteúdo por meio de parcerias com o Ministério da Cultura, secretarias estaduais e a Lei Paulo Gustavo. Na programação, a aposta foi em nomes como a escritora Eliana Alves Cruz (único programa de literatura da TV aberta), a sambista Teresa Cristina e a chef Regina Tchelly, além de reformular clássicos como o Sem Censura, agora apresentado por Cissa Guimarães em formato que viraliza nas redes.
O edital de R$ 110 milhões para produção audiovisual – o primeiro em oito anos – coroa esse esforço. Com cotas regionais e linhas temáticas que refletem a grade da emissora (30% dos recursos são para conteúdo infantil, área em que a TV Brasil é a única com seis horas diárias na TV aberta), o projeto já recebeu inscrições “avassaladoras”, segundo Pellegrino. A diretora também trava batalhas paralelas: reorganizar o acervo histórico (incluindo a digitalização do centenário acervo da Rádio MEC) e buscar regulamentação para streamings – “uma questão de soberania nacional”, defende.
A equipe é parte fundamental dessa transformação. “Colocamos as pessoas na zona de brilho”, diz Pellegrino, citando a cineasta Maria Augusta Ramos (gerente executiva de conteúdo) e a diretora de jornalismo Cidinha Matos como peças-chave. Mesmo com câmeras ainda precárias e orçamento limitado, a TV Brasil hoje disputa audiência com novelas turcas (outra aposta inovadora) e transmite futebol feminino com uma ousadia rara: além dos jogos, comissiona documentários sobre as atletas.
“O presidente Lula pede colheita para este ano, mas a nossa começou há um ano”, orgulha-se Pellegrino. Os números comprovam: a emissora que era interrompida para transmissões governamentais hoje é referência em jornalismo investigativo, cultura popular e conteúdo infantil – prova de que comunicação pública de qualidade não é utopia, mas fruto de gestão competente e visão clara. O desafio agora é consolidar esse novo patamar, mostrando que a reconstrução foi apenas o primeiro capítulo.
Leia a entrevista:
Sobre o Edital Seleção TV Brasil, que está aberto até o dia 5 de maio, muitas dúvidas surgiram ao longo do processo. Você chegou a gravar um vídeo para responder e explicar. Pode apresentar aos nossos leitores também os detalhes deste chamamento, expectativa de quantas produções serão realizadas e em quais canais elas serão exibidas?
Primeiro, obrigada, pelo convite para falar com a [Fundação] Perseu Abramo, tenho muita admiração pelo trabalho que é feito lá. Esse é um edital importante, porque ele retoma uma política pública que não acontecia há oito anos. Houve três edições do Prodav (Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro) de TV Pública e havia oito anos que essa política pública não rodava. Então, é importante fazer essa marcação, porque, quando falamos que o Brasil voltou, estamos falando desse tipo de política que foi retomada, que havia sido interrompida. E não só foi retomada como chega, nesse momento, com um valor recorde de investimento, de R$ 110 milhões, bem acima do que foi praticado nas outras edições. Essa é uma política na qual fizemos algumas adaptações, à luz dos resultados dos editais que rodaram anteriormente, das informações de audiência, do design que nós temos, é importante dizer isso. Todas as TVs do mundo, os streamings estão trabalhando com o design de audiência muito mais afiado, e a EBC também, a TV Brasil também. Então, essas são informações de gestão, que não são publicamente compartilhadas. Basicamente, o que se fala sobre isso é um número macro, muito expressivo, de que a TV Brasil é, hoje, o canal aberto que está em quinto lugar da audiência. Então, é o quinto canal mais assistido do país, isso é muito relevante, porque é uma programação cultural, que visa fomentar o senso crítico no cidadão. O que buscamos com o edital é algo entre 35 e 45 obras que estejam alinhadas ao que é a nossa programação, portanto, decalcado do que é a programação da TV Brasil, obras que estejam alinhadas com o que é a missão da EBC, que é justamente o fomento ao senso crítico dos cidadãos. As linhas do edital foram pensadas a partir da programação da TV Brasil e do que a nossa audiência busca na TV Brasil. Então, você vai ver lá, são sete linhas no edital. Duas linhas são voltadas para os conteúdos infantil ou infanto-juvenil. Por quê? Porque a Antônia gosta? Não, não é porque a Antônia gosta, é porque a grade da TV Brasil tem seis horas de programação diária voltadas para as nossas crianças. Então, somos a única TV aberta que transmite conteúdo para essa faixa. Temos esse compromisso com a infância e com a pré-adolescência, por isso, estão ali duas linhas com R$ 30 milhões de reais. É o maior desembolso do edital voltado para as nossas crianças. A natureza, por exemplo, é um carro-chefe da TV Brasil, então, tem uma linha voltada para a natureza. Os conteúdos de sociedade e cultura, filmes, enfim. A única linha onde fizemos um fomento é a linha de futebol feminino, estamos buscando documentários e ficções sobre futebol feminino. Porque nós transmitimos os campeonatos de futebol feminino, série A1, A2, A3, sub-20 e sub-17, desde 2024 até 2026, pois entendemos que é papel da TV pública ser mais do que uma transmissora dos jogos, uma parceira da modalidade. Fazemos esse fomento porque é muito escassa a quantidade de obras sobre as histórias das nossas atletas, que são fantásticas. Esse fomento visa, inclusive, a Copa de 2027, quando espero que esses conteúdos estejam prontos para poderem ter uma circulação. A princípio, serão exibidos na TV Brasil e em todo o campo público de comunicação. Essas obras são destinadas a todas as janelas de TVs comunitárias, TVs legislativas, culturais, educativas. E, posteriormente, as licenças passam a ser comercializadas pelos produtores, porque, afinal de contas, esse é um edital feito com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual. Então, essas obras não pertencem à EBC, elas são escolhidas pela EBC. A EBC comissiona essas obras, o fundo financia e elas têm uma vida longa que gera recursos para o fundo, inclusive.
Foi pensada a divisão entre regiões, Norte, Nordeste, Centro-Oeste em especial? E de que forma também esse programa garante a diversidade cultural e regional nessas produções que serão beneficiadas?
A questão da regionalidade é um compromisso da TV pública, mostrar, exibir, televisionar a diversidade brasileira, os múltiplos sotaques, as diversas regiões, a riqueza da nossa paisagem, da nossa cultura, do nosso povo. Então, para garantir que tenhamos essa riqueza na nossa programação, trazemos as cotas regionais, porque, dessa maneira, o edital, a TV pública, mantém a sua vocação de televisionar a nossa regionalidade.
Fico muito curioso ao ver esse trabalho todo, tentando entender: como você conseguiu, tendo tido uma herança complicada, fazer da TV Brasil, trazê-la a um destaque, digamos, mainstream? Tirá-la do nicho da TV educativa, do nicho de “só assiste quem é cult, só assiste quem está ligado”. E hoje é uma TV que viraliza nas redes, algo que a Globo ou as outras emissoras monopolizavam com realities, novelas. E com um conteúdo muito interessante, como, por exemplo, os programas do Demori, o Sem Censura. Imagino que não tenha sido tarefa fácil encontrar a terra arrasada e fazer frutificar tão rapidamente. Queria que você falasse um pouco desse processo.
Obrigada pela pergunta, e obrigada pelos elogios. Quando chegamos aqui, realmente, o cenário era de terra arrasada. Para vocês terem ideia, o canal da TV pública, portanto, a TV Brasil, estava fundido com a TV governamental. Então, acontecia aquela coisa escalafobética, que era você estar assistindo a uma programação e, de repente, é interrompida para o Bolsonaro fazer uma live com embaixadores para falar de urnas eletrônicas. A programação era interrompida no meio da TV Brasil Animada para exibir uma transmissão de governo. Ou seja, são conteúdos que, eventualmente, quem está assistindo não tem ferramentas para elaborar do que se trata. Foi uma atuação que considero muito grave essa fusão. A empresa passou por um processo muito grande de assédio institucional. Outros órgãos de Estado também passaram por esse tipo de processo, como a Funai, o próprio Ministério da Saúde e o Ministério da Cultura. A EBC também passou por isso. Não à toa, está citada no processo que levou à inexigibilidade do ex-presidente Bolsonaro, porque foi utilizada como uma ferramenta de comunicação para o surgimento do golpe. Estamos falando de um golpe que tenta ser dado entre o final de 2022 e 2023, mas começa a ser urdido em 2021, e a EBC foi um instrumento desse trabalho. Essa deturpação da missão institucional da EBC causou inúmeros danos à empresa e danos de saúde mental nas pessoas. As pessoas fizeram concurso para fazer comunicação pública, não para fazer propaganda de governo, embora seja sempre bom frisar que a EBC tem no seu estatuto, na sua lei de fundação, a atribuição de fazer a comunicação governamental, o que é absolutamente legítimo que seja feito. Assim como o Judiciário tem seu canal, o Executivo também tem de ter, mas ele deve ser separado da comunicação pública. Então, a primeira coisa que fizemos, e para fazer essa primeira coisa foram quase seis meses, foi separar a comunicação governamental da comunicação pública. Isso significou o quê? Basicamente, criar dois canais. E esse canal, essa TV Brasil distorcida, digamos assim, da sua missão, assediada institucionalmente, como eu gosto de falar, foi muito bem sucedida em veicular o que chamo de um imaginário retro-utópico bolsonarista. Você tinha todas as tardes filmes retrôs que tinham todo um ideário de Brasil do passado, com mensagens racistas, mensagens misóginas, então tinha aquele sentimento nostálgico que o governo anterior emitia… quem esquece da então secretária de Cultura, Regina Duarte, falando que Bolsonaro lembra o pai dela, a Fazenda? Então, essa TV Brasil distorcida expressava isso de uma maneira muito eficaz. Quando assumimos, não só separamos os canais, como também, digamos assim, precisamos atualizar esse imaginário sem, no entanto, deixar de dialogar com o público que ali estava. Essa foi uma virada muito importante, porque um canal de televisão constitui uma audiência de maneira muito regular. Você não pode dar um cavalo de pau! Em grande medida, até demos, mas foi conseguindo conciliar e atrair o público, manter uma parte do público, perdemos outra parte, mas conseguimos atrair também. Trabalhamos guiados por três princípios estratégicos: o primeiro deles foi fazer da TV Brasil um canal que exiba o conteúdo de produção audiovisual independente brasileira. Fizemos isso comprando licenças de conteúdos, mas também trabalhando em enorme articulação com o Ministério da Cultura, sobretudo, na forma do edital de que falamos agora, de uma resolução que foi emitida pelo Ancine, o Comitê Gestor do Fundo Setorial, que nos passou inúmeras obras, recompondo produtos de TVs públicas que haviam sido censurados na gestão anterior, embora tivessem sido pagos. Havia R$ 70 milhões sendo desperdiçados, dinheiro público. Nós fomos atrás desses produtores para retomar, para dizer: queridos, vamos exibir essas obras, mandem essas obras! Trabalhamos uma enorme articulação com as secretarias de Cultura dos Estados, por meio da Lei Paulo Gustavo. Criamos uma rubrica Paga pela Paulo Gustavo para licenciamento, na qual recebemos como contrapartida os conteúdos para serem exibidos na TV Brasil. Captamos R $ 18 milhões em conteúdo, foram 73 obras de todo o Brasil. Esse trabalho foi de articulação política, criando alternativas, porque o recurso continuou o mesmo. Você faz um canal, cria dois canais, mas o dinheiro não aumenta. Nesse trabalho de articulação, captamos em conteúdo R$ 284 milhões. Esse conteúdo recheia a nossa grade e já exibe essa diversidade brasileira. Decidimos também investir nas produções próprias, porque acreditei que elas nos trariam relevância. Conseguir, como você disse aqui na pergunta, estar nas conversas, estar nas redes sociais, fazer uma disputa de valores na sociedade. Investimos na nossa produção própria, no programa de literatura apresentado por uma escritora intelectual negra, que é a Eliana Alves Cruz, o único programa de literatura da TV Aberta, no Samba na Gamboa, apresentado pela sambista negra Teresa Cristina, no Xodó de Cozinha, que é um programa de culinária popular, apresentado pela chefe sergipana Regina Tchelly. Estou dando alguns exemplos de programas para chegar no Demori, o DR com Demori, que você citou, apresentado pelo jornalista Leandro Demori, como um programa de entrevistas de maior profundidade, e o nosso carro chefe, o Sem Censura, que é um programa histórico da TV Brasil, que refizemos, do ponto de vista de formato, voltamos como bebê na fonte do programa, trouxemos a Cissa Guimarães para o centro daquela roda e recriamos o programa nessa temporada que tem conseguido sucessos muito expressivos de visualizações e engajamento público nas redes sociais, que virou meme inúmeras vezes. E esse é o nosso carro chefe total. Ele ocupa duas horas das tardes da TV Brasil, mais duas horas à noite. Quando ele é exibido à noite, nos inspiramos no Jô Soares, no Onze e Meia, então tem uma reprise do Sem Censura, às Onze e Meia, para quem gosta de um debate mais interessante, de ideias que dialogam com esse sentimento que está muito colocado na TV brasileira, que dá a volta de um lugar de conforto, mas, ao mesmo tempo, trazendo debates muito atuais. Tudo isso que conseguimos, e aí, só para não deixar de dizer, o terceiro pilar do nosso trabalho de conteúdo foi a busca por resultado, por audiência. Como se faz isso? Trazendo a novela turca, que é um hit no mundo todo, pela primeira vez no Brasil, para ser exibida na TV aberta, ou seja, investindo nas novelas e investindo no futebol, no esporte. Então, fizemos o padrão do que o brasileiro gosta, e esse conjunto de ações é o que faz com que hoje a TV Brasil esteja no quinto lugar da audiência na TV aberta. Isso é uma informação muito importante.
De que forma a sua experiência pessoal, o seu feminismo, a sua trajetória como produtora, roteirista, influenciou para atingir esse lugar tão importante com a TV Brasil num espaço tão curto de tempo?
Olha, quando se chega aos lugares, você chega trazendo toda a vida, vem com a mala completa. Eu tenho mais de 25 anos de trabalho no âmbito visual, trabalhei como roteirista por muitos anos, roteirista de novela, de séries, e sempre fui uma pessoa da televisão. Sempre tive como objetivo trabalhar em televisão, justamente porque a televisão dialoga com um público muito amplo e que muitas vezes não tem recurso para estar num cinema, num teatro, e o maior acesso à cultura que ele tem é à TV aberta. Então, sou muito feliz estando numa TV pública, porque eu acho que ela pública carrega essa missão que é o que me emociona em relação à TV aberta. Então, trazemos esse olhar. Eu faço questão de citar Maria Augusta Ramos, que está aqui comigo, que é gerente executiva de conteúdo, Alice Lanari, o Zeca Buarque, pessoas que trouxemos, que são do mercado e que aceitaram essa missão de fazer comunicação pública depois do desastre que encontramos. O nosso norte para tudo que se fez foi: fazer um bom básico, porque às vezes você quer inventar roda e, na situação que temos aqui, do ponto de vista de recursos, não tem como inventar a roda. Você tem que fazer um bom básico, ser criativo, saber usar os recursos que tem e fazer deles o melhor possível. E aí estou falando de recursos humanos e tecnológicos. Entender quem são as pessoas, colocá-las na zona de brilho, onde possam chegar ao seu melhor, porque aqui tem servidores extremamente qualificados. Pegar a luz e falar: gente, vamos iluminar de um outro jeito, vamos usar a mesma câmera, mas vamos fazer de um outro jeito, vamos fazer de um jeito que tenha mais qualidade.
Quando chegamos, os estúdios estavam assim, assoreados, eram pistas de skate, as câmeras tinham que ficar amarradas. Não dá para trabalhar assim, primeiro, porque tem uma questão que é a técnica. E, nesse assoreamento, acontece um processo de afundamento da autoestima das pessoas. Trouxe muito uma dimensão de gestão de pessoas, porque, além do meu repertório do audiovisual, eu também fiz um mestrado em administração pública e trabalhei muito com essas ferramentas para poder estar aqui. Então, fizemos um trabalho de qualificação do conteúdo, da pauta, do roteiro, de qualificação conceitual. Criamos uma cadeia de fazer conceitual da marca, a paleta de cores do programa, a identidade visual, a trilha, recriamos uma gerência de música. A EBC não tinha gerência de música, as trilhas eram brancas do YouTube. O jornalismo também se qualificou muito com a entrada da Cidinha, com os novos âncoras e editores-chefes. Fomos fazendo um trabalho muito aguerrido com os recursos que tínhamos, mas com um time absolutamente comprometido em fazer uma comunicação pública de qualidade. E, realmente, eu tenho muito orgulho em dizer que, embora o presidente Lula esteja pedindo colheita para este ano, a nossa colheita já começou há um ano.
Uma questão que foi levantada recentemente por pesquisadores do audiovisual é sobre o acervo da TV Brasil. Existe um acervo vasto – não sei em que condições esse acervo está, em que condições vocês encontraram esse acervo – mas muitos reclamam que há dificuldade de licenciar material, que só se consegue acessar o acervo, mas não licenciar. Existe algum plano, vocês estão trabalhando nesse sentido do licenciamento de acervo da TV Brasil para produções externas, ou de fato há um problema com esses direitos conexos de gestões e esse acervo não é licenciável mesmo?
Obrigada, estou amando essa entrevista, estou vendo que você sabe tudo da EBC! Estou adorando. Vamos lá, o acervo é um grande capítulo e um capítulo muito importante, porque a EBC tem o acervo da Rádio MEC, centenário. O acervo da Rádio Nacional, que tem as primeiras radionovelas, as primeiras experiências de radionovelas estão lá. A Rádio MEC, para quem não sabe, é a primeira experiência de rádio do Brasil. Era a Rádio Sociedade, que depois se tornou a Rádio MEC. E o acervo de televisão, da antiga TVE e da Radiobrás, que, quando o presidente Lula faz a EBC, todo esse acervo vem para cá. Esse é o conjunto contido no acervo. Aí, um parêntese, só para falar da condição em que encontramos o acervo. Já estava e ainda está, mas temos um plano de trabalho para dar conta disso. O acervo, quando chegamos, estava guardado no Estúdio 1. No Rio de Janeiro, a EBC tem três estúdios, na Gomes Freire, 1, 2 e 3. O acervo está no Estúdio 1 ainda. É uma forma de guardar absolutamente precária, porque, primeiro, um estúdio não é um espaço idealizado para guardar um acervo. Ele é um espaço para ser um estúdio. Um acervo demanda uma certa experiência de ambiente que também não está adequado. Como contei, fizemos a obra, no Estúdio 3, que é enorme, depois, o Estúdio 2 e, para este ano, faremos o Estúdio 1. Há um plano de trabalho para o acervo que é, primeiro, a guarda física dele, que precisa estar mais adequada.
Esse é um primeiro ponto que ainda está em processo de trabalho. O segundo ponto é que encontramos as planilhas de valoração do licenciamento completamente distorcidas e fora da realidade praticada no mercado. Digamos, você vai comprar 2 minutos da Globo, vou inventar aqui, vai pagar R$ 1.000. Você vai comprar 2 minutos da EBC, pagaria R$ 10.000. Uma coisa, assim, completamente desproporcional. Uma discrepância bizarra e que inibia o licenciamento. Montamos uma outra forma de calcular o licenciamento para chegar a um valor mais ajustado ao que é praticado no mercado. Embora ainda seja acima do que é praticado no mercado, conseguimos chegar perto, porque também tem parametrizações de ECU etc. Então, você não pode pegar um negócio que custa R$ 10.000 e dizer que vai custar R$ 0. Precisa ter um racional que justifique, sem perder o registro do que já foi feito. Hoje, já existe uma valoração muito mais adequada. E, nesse momento, estou justamente travando a outra guerra. Esse também foi um lema que usei aqui para poder conseguir fazer as coisas, que é uma guerra de cada vez. Porque, se você quer travar todas as batalhas, acaba perdendo. Aqui é uma de cada vez. Nesse momento, estou travando a batalha da patrimonialidade, que você mencionou muito acertadamente. Sempre houve, do ponto de vista de gestão, um certo medo com relação à liberação dos conteúdos produzidos na TVE e na Radiobrás. No entanto, a própria EBC sempre usou esses conteúdos, seja na rede social, seja na televisão. Essa é uma questão que, de fato, tem uma margem interpretativa. O acervo da TVE pertence à EBC? Na lei de Fundação diz que sim, que todo o acervo que vem, que foi juntado naquele momento, pertence à EBC, mas há margem para a contestação. Então, a política da Casa sempre foi a política, digamos, mais conservadora. Se tem brecha para a contestação, não podemos liberar. Estou, nesse momento, travando esse debate na diretoria para ver se conseguimos formar um outro entendimento de maior flexibilização e menos conservadorismo para que possamos fazer o acervo circular, porque é uma memória importante, o acervo é vivo na medida em que é visto, em assistido, ouvido, escutado, valorizado, pesquisado, em que ele está disponível. E aí, nesse sentido, tem uma outra batalha, que é digitalização. Essa é uma batalha para a qual também tentamos construir uma série de estratégias, e uma delas, que eu espero ter uma notícia boa para dar, é uma estratégia que estamos construindo junto ao FDD, o Fundo dos Direitos do Consumidor, cujo presidente é o advogado Wadih Damous, que é o secretário da Senacon. Ele entendeu o nosso pleito, levamos a proposta de digitalizar o acervo da Rádio MEC, como eu falei, é a primeira experiência de rádio do Brasil. A Rádio MEC fez 100 anos em 2023. Tivemos uma série de eventos dessa efeméride e construímos esse projeto de digitalização do acervo da MEC, que é uma parte do acervo da EBC. Então, não resolve o problema todo, mas, como eu falei, uma batalha de cada vez. Eu acho que agora, com a benção do presidente do Comitê, vamos conseguir dar espaço tão importante para essa memória brasileira.
A TV Brasil tem planos de lançar editais específicos para jornalistas e produtoras de conteúdo jornalístico?
Vamos lá. A diretora de jornalismo é a Cidinha Matos, eu não sou a responsável pelo jornalismo, mas eu sou testemunha do trabalho dedicado, aguerrido que ela faz, apaixonada todos os dias ali, e dá o aumento exponencial da qualidade que ela conseguiu imprimir na Agência Brasil, nos veículos, nos jornais, o Jornal da Tarde, o Jornal da Noite, trouxe para o esporte também o jornalismo esportivo. Então, acho que em toda a parte da programação que é o jornalismo, e não só na TV Brasil, mas também nos outros veículos, houve uma enorme participação da Rede Nacional de Comunicação Pública. É um jornalismo público composto por essa rede, portanto, está noticiando coisas locais importantes naquele espaço, mas também nacionalmente. Sou uma grande admiradora do trabalho da Cidinha. E, com relação ao edital, ele tem premissas estabelecidas pelo fundo setorial. E o jornalismo, por ter o fazer que é diário, não tem essa concepção de obra fechada, como o fundo demanda. Com o recurso do fundo setorial, não é possível pensar algo nessa linha. Com outro recurso da EBC, acho que é só se conseguirmos aumentar nosso orçamento.
Bem rapidamente, essa questão sobre o projeto de lei que está em tramitação na Câmara, para a regulamentação do serviço de streaming. É um projeto, inclusive, de autoria do deputado Paulo Teixeira. Você, que tem essa super experiência como produtora de conteúdo, etc., como é que você vê o futuro e o presente do audiovisual brasileiro, sob a perspectiva de uma regulamentação?
A regulamentação é algo absolutamente prioritário na minha visão, no sentido de que você tem um enorme mercado. Porque de dez anos para cá o streaming se tornou um mercado gigantesco no Brasil, irregular, como se fosse um jogo do bicho. É importante que se entenda isso. Todas essas grandes empresas estão atuando como a banquinha do jogo do bicho, porque não são regulamentadas. É disso que se trata, é importante ter essa clareza. As pessoas criticam tanto, mas o paralelo é esse. Então, é importante que essas empresas, que mobilizam tantos recursos aqui no Brasil, que recebem tantos recursos em forma de assinatura, porque o mercado brasileiro é um mercado enorme, que essas empresas tenham um compromisso com o fomento à produção brasileira, com a exibição de obras brasileiras, como nos anos 2010 houve a lei de cota de tela, de cota de exibição na TV fechada, na TV paga, e isso foi absolutamente importante para o fomento à produção brasileira. Precisamos travar esse debate também olhando para o streaming, que é mais uma janela de exibição apresentada ao nosso público. Acho que isso é primordial, é uma questão de soberania, não é só uma questão de audiovisual. Outros estados ao redor do mundo, que têm na sua indústria audiovisual uma força motora, como a França, por exemplo, fizeram a regulamentação. Então, por que o Brasil não pode fazer, por que as plataformas estão interditando esse debate aqui? Isso é uma coisa que extrapola o audiovisual. E é importante entender o audiovisual dentro da cadeia da economia criativa. E a economia criativa sendo um dos motores da economia no século XXI. Onde você tem o serviço e a economia criativa, hoje, com 0,5% do PIB, mas pode crescer muito mais do que isso. O consumo de conteúdo aumentou exponencialmente e precisa ter essa regulamentação para garantir a sustentabilidade dessa cadeia e o crescimento dessa nova indústria brasileira baseada na economia criativa, cada vez mais. A cadeia da economia criativa é a que mais emprega jovens até 29 anos e é uma das que mais empregam no primeiro emprego. É uma cadeia que, quando começa uma produção audiovisual, mobiliza outros 68 setores. Há uma mobilização muito grande que o audiovisual produz. Então, temos de olhar como uma ferramenta para o futuro, para o presente e para o futuro econômico do Brasil.
Para encerrar, uma última pergunta: o que é que vem por aí?
Acabou de estrear a segunda temporada do Sem Censura. Começamos na semana passada. Então, vem por aí um ano de muito trabalho dedicado para trazer nossos artistas, falar de serviços, inclusive fornecidos pelo governo, fazer o debate de valores, que é o que fazemos todos os dias ali no Sem Censura. Vem por aí a curadoria deste edital que esperamos conseguir anunciar o resultado até o final do ano. Estamos recebendo inscrições em números avassaladores, e isso é maravilhoso. Estamos muito organizados para rodar esse edital dentro da EBC, que é um passo inovador que. Os outros editais de TV Pública foram rodados fora da EBC. Essa é a primeira vez que a EBC realiza um edital dentro da sua estrutura. Estamos fazendo formação de servidores, criando uma memória para que outros editais possam acontecer no futuro e que essas pessoas se capacitem para tocar esses processos. Então, vem por aí essa grande entrega.
Edição: Guto Alves
Revisão: Rose Silva