Vera Paiva: ‘Minha mãe sempre disse que era um crime contra o Brasil, não contra a família’
Em entrevista, a psicóloga e ativista fala sobre o impacto do filme, as marcas deixadas pela ditadura, a reconstrução da trajetória de sua mãe, a luta para que os desaparecidos políticos não sejam esquecidos e a expectativa para o Oscar

O filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido pelo cineasta Walter Salles, baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva e indicado ao Oscar de Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e de melhor Atriz pela performance de Fernanda Torres como Eunice Paiva, resgata uma história de dor e resistência que começa a partir do momento em que o deputado Rubens Paiva, perseguido pela ditadura militar, é preso, torturado e dado como desaparecido, apesar de assassinado.
Um alerta contra o esquecimento, a trajetória de Eunice Paiva, marcada pela perda do marido, o único congressista desaparecido durante o período, se entrelaça com sua própria batalha contra o Alzheimer, que a advogada e ativista enfrentou no fim da vida. A voz de Eunice, o que fica com o desaparecimento abrupto de Rubens, é narrada pelo desafio de manter a família em segurança, unida e seguindo a vida.
O roteiro mostra uma Eunice tão forte quanto delicada e elegante – e foi além do livro de Marcelo. A pesquisa de Walter e equipe contou também com entrevistas de toda a família, amigos e contemporânea, além de conduzir a história ao presente, dando a dimensão da importância do resgate histórico. O próprio diretor, amigo da família, viveu parte do período exibido no filme.
Nesta entrevista, Vera Paiva, psicóloga e filha do casal, reflete que o filme não é apenas um relato pessoal, mas um manifesto político. “Minha mãe perdeu as lembranças, mas nunca perdeu a verdade. O Brasil, por outro lado, insiste em esquecer. Esse filme é um chamado à memória e à justiça”, afirma. A indicação ao Oscar amplia esse debate em um momento em que o país ainda lida com os impactos da impunidade e do negacionismo histórico.
No domingo anterior à gravação desta entrevista, o irmão de Vera, o escritor Marcelo Rubens Paiva, foi agredido durante a passagem do bloco Acadêmicos do Baixo Augusta, em São Paulo, cortejo que o homenageava. Enquanto a entrevista era gravada, Vera não sabia, mas acontecia no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, uma manifestação: Militantes do coletivo Levante da Juventude se reuniram em frente à casa do general reformado José Antônio Nogueira Belham, denunciado por homicídio e ocultação do corpo do ex-deputado Rubens Paiva durante a ditadura militar.
Aclamado em festivais internacionais e utilizado como ferramenta educativa, o longa reafirma a urgência de enfrentar o passado. “A falta de punição aos crimes da ditadura permitiu que a violência institucional se perpetuasse. Vemos isso na brutalidade policial e nos recentes ataques à democracia. Se o Brasil não assumir sua história, corre o risco de repeti-la”, alerta Vera. Para ela, o filme conecta passado e presente, reforçando que a luta pela memória não é apenas simbólica, mas essencial para impedir que o autoritarismo se reinstale
Leia a entrevista com Vera Paiva:
O filme retrata a sua família, conta uma história que foi praticamente deletada da sociedade. Gostaria de começar por esse aspecto, pois é a história da família Paiva que está sendo contada e a memória pode ganhar formas diferentes. Como é que está para a sua família esse momento do filme “Ainda Estou Aqui” e a relação com a memória?
O Marcelo deu uma entrevista para o Estadão que expressa bastante o que a gente está sentindo. Evidentemente, ele escreveu o livro, como a gente diz em psicologia, foi o coping dele, o modo dele lidar com o que ele estava vendo que estava acontecendo com a minha mãe (a evolução do Alzheimer). E, ao mesmo tempo, num momento de negacionismo da ditadura, de recrudescimento e crescimento da extrema-direita, com muitos jovens entrando – depois de 2013, ele escreveu o livro em 2014 – que você teve um movimento legítimo de massas de jovens pela questão do transporte que, na sequência, foi capturado, só para a gente não esquecer o contexto, pela extrema direita, foi como ainda está sendo. Eu estava escutando antes da entrevista sobre as eleições na Alemanha, que começa a se fortalecer, digamos, como um apelo à juventude, algo que, na verdade, tinha a ver com uma crise do sistema, desde 2008, que, na nossa opinião, e que precariza o trabalho, precariza as condições de vida etc., e uma parte da juventude estava sendo capturada por isso. Então, um primeiro ponto, era a sensação que ele tinha da perda de memória sobre o que foi a ditadura. E, segundo, foi ele lidando, ele, um filho homem – imagina o vínculo que ele tinha com a mamãe, e vice-versa – ele se chama Marcelo Rubens e a perda de memória da mamãe, que era muito impressionante naquele momento. Acredito que nas famílias com pessoas mais velhas é cada vez mais comum, isso é parte da universalidade que o filme, que o texto do Marcelo, primeiro, depois o filme, alcança. É o quanto nós estamos vivendo em famílias menores. Às vezes tem uma criança, duas crianças, quatro velhos, metade dos velhos com algum tipo de demência, senil, não só Alzheimer. Então, acho que ele resolveu escrever, acho que é uma maneira de lidar com isso. Claro que é a versão dele, é a experiência dele, é autoral, na perspectiva dele. E tem que ser, e a gente respeita, sempre respeitou, desde o Feliz Ano Velho. Desde que ele falou dele… e, assim, todos os autores são autores. Então, ele reconta essa história. Ele fez muita pesquisa também. E é uma pesquisa que foi aprofundada pela equipe do Walter Salles. Eles foram além do que o Marcelo havia apresentado. Nós aceitamos e autorizamos a filmagem e fomos todos entrevistados, a Eliana, a Malu, a Babi, todo mundo; além do Marcelo, um pouco para conhecer, ver a perspectiva e poder, penso eu, roteirizar de modo mais tridimensional, mais encarnado também na versão de quem estava ali sendo encarnado como personagem. Não sei se foi exatamente essa a intenção, estou dizendo a minha impressão. Eu trabalho com psicodrama, trabalho nessa linha, tanto na prevenção quanto historicamente, do ponto de vista terapêutico.
Esse filme chega “de repente”, e o Walter Salles fala em coincidência que chegue em momento tão, digamos, coerente. A família foi, digamos, escolhida agora como o exemplo, o modelo do que acontece com uma família quando uma ditadura se instala. E é isso que foi apresentado a jovens, isso que foi apresentado à sociedade, que trouxe isso tudo de novo. Você vê coincidência?
Acho que é sincronia mesmo. É porque ele foi interrompido, como o Marcelo foi, todos nós, pelo governo Bolsonaro, não só desde antes, desde o Temer, desde o golpe contra a Dilma. Por exemplo, eu trabalho com AIDS. Foi um problema, trabalhei com Covid, coordenei uma rede de resposta à Covid na USP, e não foi fácil lidar com esses retrocessos todos. Agora, de novo, nós somos cinco, então eu posso falar por mim, não posso falar por todos, porque as experiências são ligeiramente diferentes. E acho que é normal que assim seja, nas outras famílias deve ser assim também, não é tudo igual. Mas, da minha perspectiva, porque eu sou uma pessoa que já era bastante politizada, isso é um pouco retratado no filme, naquela famosa foto, aquela da escada, eu era a mais invocada, sempre fui assim… Veja, de novo, não é o meu depoimento apenas, eles entrevistaram muito a família Gasparian, do Fernando Gasparian, muitas pessoas que convivem com a gente. Por exemplo, estou lembrando aqui especificamente a minha amiga Helena Gasparian, que conviveu nessa época. Isso que a equipe do Walter fez que foi muito bacana. Agora, por outro lado, se você vê as respostas que a minha mãe dava sobre o caso específico, que sempre foi um caso que chamou atenção, especialmente depois do livro do Marcelo, minha mãe sempre disse que era um crime contra o Brasil, isso não era um crime contra a nossa família, era um crime contra o país. O que eu sempre ressalto, o que me incomoda é essa fixação com o nosso caso neste momento e a transformação na gente em celebridade, coisa que eu, pessoalmente, não tenho a menor vocação. A mamãe achava isso e nós achávamos isso. Então, vou te dar um exemplo. Eu, politizada, entrei na USP, fui para o DCE. Entrei na USP no ano em que o Alexandre Vannuchi Leme foi assassinado. Ajudei a reconstruir o DCE, fui da primeira diretoria do DCE, em que a gente botou o nome Alexandre Vannuchi Leme. Saí de lá, ajudamos a reconstruir a UNE. Eu não tenho problema em sentir que a gente faz parte, o que a gente tem problema é essa glamourização que faz um apagamento dos outros casos.Eu tenho dito isso em todos os lugares aonde eu vou. Primeiro, dos casos que ainda existem. Então, vou te dar exemplos ainda no plano da classe média. Porque o povo quilombola, indígena, que a mamãe foi defender, eles todos foram massacrados e assassinados. Está cheio de restos de ossos, de aldeias dizimadas a caminho da exploração da Amazônia, desde a transamazônica, no tempo dos militares, agora na coisa do garimpo. Não faltam ossos, só precisa a gente ficar especificamente na coisa dos desaparecidos.

E a gente teve agora o retorno da Comissão de Mortos e Desaparecidos…
Isso, exato. E aí, de um lado, é uma luta brasileira. Segundo, a mamãe foi chamar a atenção sobre isso. Percebe? Quando ela foi trabalhar com a causa, ela chamou a atenção sobre isso. Então, é uma causa brasileira. Agora, por exemplo, o que me incomodou… Eu sou da Comissão Especial de Mortes e Desaparecidos, você acabou de falar nisso. Minha mãe foi desta comissão, mas não aguentou ficar, porque, para ela, sentia que era reviver… Ela fez pareceres etc. E eu fui indicada pela Dilma. E aí o Bolsonaro tentou cortar. O velho e bom Bolsonaro, que cuspiu no busto do Rubens Paiva, vamos lembrar disso. Com a nossa história, o Bolsonaro, no dia da inauguração do primeiro grande marco de memória sobre o desaparecido político, que é o único congressista desaparecido, passa, empurra a gente e cospe no busto. Então, ele era de Eldorado Paulista, fala mentiras horríveis o tempo inteiro, que a BBC, aliás, fez questão de reproduzir. O Marcelo ficou muito bravo, entrevistou como se fosse… Essa coisa que a imprensa faz, um lado e o outro, mas não, não tem outro lado, então, tem várias sincronias e coincidências. Eu, como membro da comissão, estava em Recife na semana passada. Para a reunião da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, uma das pautas da reunião, que foi a coisa mais repercutida, foi a da retomada do caso do JK. Mas a outra era a gente inaugurar o busto da Soledad Barrett (foi uma guerrilheira e militante comunista paraguaia, integrante da Vanguarda Popular Revolucionária que lutava contra a ditadura militar brasileira), uma menina que foi assassinada, em Recife. Tem um monumento em homenagem aos presos e desaparecidos, que é uma pessoa em pau de arara, um monumento forte, e estavam lá a neta, filha de Ñasaindy Barrett, em homenagem a essa avó que foi barbaramente torturada. A gente estava lá, e a imprensa falou assim: “Vera, fique ao lado do busto. Vera, vamos tirar foto.”, ‘Vera, quero te entrevistar”. Eu falei, esse é um outro caso, ilumine aqui. E aí tive que sair, falei, vou sair daqui porque vocês não estão fazendo o serviço de jornalista. Vamos lá, este é o caso! Isso é que precisa ser iluminado neste momento. Me incomoda.
A relação da sua mãe com o Partido dos Trabalhadores é descrita no livro pelo Marcelo. Passou pela cabeça de vocês, na sua cabeça, de alguma forma, de seguir os passos do seu pai e da sua mãe, de viver uma política mais formalizada, de pertencer a algum partido?
Sou fundadora do PT.
Sim, sua mãe também estava lá…
O Suplicy era ponte, mas o meu caso nem era isso. Eu era do DCE da USP, porque foi o primeiro momento social, que é paralelo ao ABC. Então, a gente tinha uma relação, eu quem mais circulava. Era muito amiga da Laís Abramo, que é a uma irmã para mim, total. A gente é completamente família, a mesma família. O Perseu, a gente chamava de “Pernosso”, para mim, em particular, eu acho, era uma projeção total de pai, porque ele era muito pai, ele cuidava muito da gente. Eu sou amicíssima do Aloizio Mercadante até hoje, da Laís Abramo, da Bia Abramo. Então, eu assinei a Ata. A gente estava discutindo outro dia, que naquela foto da reunião no Colégio Sion, a mamãe está com uma cara muito, muito… O Marcelo fala que é porque ele tinha acabado de ter o acidente, e ele estava ali do lado, no Hospital Samaritano, tinha sido trazido de Campinas, onde ele teve o acidente. Então, a mamãe está com uma cara fechada nas fotos.
Agora a gente vê o Brasil se organizando como Copa do Mundo para assistir ao Oscar. Acho que acaba construindo um novo passo de memória, digamos assim. O filme inaugura um novo momento de resgate da memória. A gente tem a comissão voltando agora, tivemos os 60 anos do golpe e agora, recentemente, uma nova tentativa de golpe. Então, esse trabalho de memória é importante para a formação de militância também, de resistência.
O trabalho feito pelo Museu da Memória em São Paulo, pelo Luiz Politino, dobrou o número de visitantes ao DOI-Codi, por exemplo, porque ele faz semanalmente. Aumentou muito a visitação, isso é ótimo, mas vou dar um exemplo. O senador do Amapá, Randolfe Rodrigues, comprou centenas de cópias do livro Ainda Estou Aqui e convidou todos os professores de história do estado para assistir ao filme numa sessão especial lá no Amapá. Ele entregou o livro para cada um e passou o filme para os professores de assistirem. Foi iniciativa dele. E aí o Chico, depoimento do Chico, era a quarta vez que ele via o filme, mas o contexto era completamente outro. Tinha um cercado de pessoas chorando junto. Ele ficou muito emocionado. O Randolfe pediu para ele ir, para ter alguém da família lá, ele é amigo do Chico, amigo de todo mundo, então foi. E foi lá no palco, falou um pouquinho e, meio sem graça porque estava emocionado, ouviu perguntas, respondeu perguntas e saiu. O povo veio pedir autógrafo para ele. Ele falou, “pelo amor de Deus, eu não quero dar autógrafo, não escrevi esse livro”. Mas, no meio dessas conversas, dos 350 professores, acho que eram 350, tinha mais gente na sala, três vieram contar histórias que escuto a vida inteira… Quando vou para o Vale do Ribeira, por exemplo, quando ando pelo Brasil, em diversas atividades que não são necessariamente, são de prevenção de AIDS, vou muito para as periferias, fazer isso, me perguntam se você é filha do Rubens? Bem antes de tudo isso, eu escutava essas histórias. E ele falou: “Mãe, aconteceu comigo. Três professores”. São histórias muito típicas. Vou te contar três casos: um, meu avô, tio, não vou dizer exatamente para não comprometer a pessoa, alguém da família, que deve ter, deve ser a geração que a gente brinca, de 1968, deveria ter hoje a idade da Dilma, um pouco para cima. Foi preso, barbaramente torturado, ficou seis meses na cadeia, ninguém sabia onde ele estava, ninguém achava, e o devolveram. Ele ficou se remoendo, sofreu de tal maneira com o tipo de violência na tortura, que se suicidou seis meses depois, é o caso do Frei Tito, caso um. Caso dois. O meu avô, alguém da família, foi a mesma coisa que o seu pai. Ele foi preso e o corpo nunca mais apareceu. E o terceiro ficou pendurado, penduraram ele de cabeça para baixo. Ele ficou desaparecido, todos os três homens, ficou pendurado de cabeça para baixo, todo ensanguentado, sendo comido por tudo quanto é bicho, uma pessoa passou, o cortou, limpou as feridas, cuidou, deixou na casa da irmã escondido. E esta pessoa desapareceu para a família com medo de afetar a vida da família dela. São casos que só reaparecem na hora, de novo, e agora não sou só eu escutando quando ando por aí; antes do filme, sim, agora qualquer um da família provavelmente vai poder… é que o Marcelo circula menos, meus filhos circulam mais. Então, o que eu disse para o Chico? Fala com o Randolfe, ele tem que abrir, respondendo à sua pergunta, uma oitiva, conta para ele esses três casos que você ouviu naquela cena. É possível eventualmente identificar quem foram as pessoas que falaram com o Chico, mas eu acho, eu recomendaria iniciativas, se pudesse recomendar, fazer iniciativas locais para levantar esses casos.
Quando a gente começou a entrevista, você falou sobre a questão da Alemanha, o crescimento da extrema direita na Alemanha, e você também disse que a gente tem uma dificuldade de dialogar etc. Acho que a estratégia alemã de não dar espaço para a extrema direita talvez não tenha sido bem sucedida, porque eles cresceram, tiveram uma votação de 20%. Como psicóloga social, que é o seu trabalho principal, tem uma entrevista sua que você deu para o James Green, que é um colaborador da Focus, inclusive, você disse que a burguesia na Fiesp não é a mesma, eles não pensam no Brasil. O que você acha que mudou? E como é que você acha que a gente pode dialogar nesse momento tão complicado que a gente está vivendo no Brasil?
Acho que há uma precarização da vida radical, o neoliberalismo cria a coisa do individualismo, e o Lula está aprendendo, porque ele falou isso no discurso dele: as pessoas não querem sindicalizar, as pessoas acreditam no empreendedorismo. Então, quando você fala que esse trabalhador foi ajudado pelo programa social, ele diz: “não, eu que fiz, eu que fui lá e realizei”, o que também é parte da verdade, certo? Você coletivizar tudo também não expressa o que eu vivo bastante nas periferias. Eu que, na favela de Heliópolis, onde tenho entre alguns lugares, vou dar esse exemplo, porque para mim é óbvio, o grau de empreendedorismo ali, o grau de se virar, durante a pandemia, que estava tudo fechado, o que aquelas pessoas fizeram? Claro que tiveram apoio aqui e apoio ali, e eles reconhecem, desde chegada de alimento até tecido para fazer máscara, proteger a comunidade, máquina de costura para as mulheres, não faltou oportunidades produzidas. Mas a nossa burguesia atual, de fato, ela não está nem aí, está certo? Ela não tem um projeto nacional, foi isso que eu quis dizer, que era o que eu via desde o Mindlin, que é uma pessoa que a gente gosta muito, a família Mindlin, até o próprio Fernando Gaspari, que era presidente da Fiesp, em 1964, então, tinha um projeto de país, tem a ver com globalização. Eu não sou economista, nem cientista político, mas eu tenho opinião como alguém que é ativista política. A minha impressão é que há esta coisa da individualização, do neoliberalismo, de uma perda da solidariedade social, não é mais um valor, eu me dar bem mesmo que eu pise na cabeça de mais três, não é? Vale tudo, que é até a novela que eles vão passar de novo agora, mas essa lógica de individualização… A culpa é sua se você não foi bem-sucedido, e se você foi bem-sucedido é porque o teu coaching te ajudou. Os coaches fazem sucesso porque você tem que acreditar no sucesso.
Não vou evitar falar disso, é claro, a gente se aproxima da cerimônia do Oscar, da premiação, e o Brasil todo espera ansioso. Acho que, para além de tudo, o filme já cumpriu um papel, cumpriu e cumprirá, porque é um filme que não se encerra, um papel importantíssimo, politicamente falando, socialmente falando também, até de formação. Mas queria muito saber de você o que todo mundo pergunta: como está a expectativa? Como vocês estão aguardando? Você acha que essa vitória traria para o Brasil mais vontade de defender nossa memória? Acho que, mais do que nunca, a gente tem que levantar a bandeira da memória. A memória nos garante o presente e, com sorte, ela nos garantirá o futuro.
Estou completamente de acordo com você. A gente, claro, a gente gosta, eu adoro o filme, não tenho nenhuma convivência íntima com as Fernandas, eu não fui assistir, por exemplo, às filmagens, porque a mim me dava um pouco de aflição. Meus filhos foram, porque viram a encarnação de uma história, é engraçado. Um depoimento do Micael, que é o filho da Analu, o mais novo, corroborado pelos outros, disse “a vovó a gente até conheceu”, quem não conheceu foram os filhos da Lisa, que são os netos. Mas eles conheceram a avó, acompanharam o início do Alzheimer, viram se desenvolver, e ele diz “mas o vovô a gente não sabia”. A pergunta dele era sempre essa: “Era igual? Era isso mesmo? O avô está bem feito, está certo?” E a gente dizia, tá, eu acho que representa. O Selton Mello encarnou muito bem ali, os trinta minutos iniciais…E aí eles, a fase do Micael foi, eu conheci o meu avô vendo esse filme, muito forte. Enfim, isso é a experiência deles, eu conheci meu pai, eu tenho memórias dele também. A preocupação de que se ele estava bem representado, se eles podiam fazer essa transferência, eu achei lindo, é a memória coletiva e a memória familiar, de alguma maneira, que saí da foto chapada, está encarnada, tem movimento, tem o jeito de sorrir, tem tudo. E esses atores são maravilhosos. Então, voltando para a pergunta, eu torço muito, porque é um filme maravilhoso, Walter merece, é um filme delicado, definitivo, sobre um tema que sincronicamente, a humanidade está precisando confrontar, extrapola a bolha de quem viveu. Os atores são maravilhosos. A Fernanda Torres, está encarnando super bem a mamãe, é impressionante.
É possível ver a Eunice, é muito incrível.
Total, e é incrível como ela conseguiu. O Walter conheceu a mamãe quando ele era pequeno, mas dirigiu muito bem, ele fala isso. Ele tinha um pouco de experiência na casa, mas é um filme maravilhoso. A fotografia é maravilhosa, a direção é incrível, os atores estão ótimos, filmar em película, que é um… é muito legal. A música é ótima, o que eu não tinha visto lá em casa era o som, que não tinha ainda. Quando em Veneza, aquilo, pá, tudo é muito bom. Então, super merecido, vamos torcer. As pessoas perguntam se vamos assistir juntos, se vamos para a cerimônia. Todo mundo tinha planos para o Carnaval, o Marcelo não quer ir, eu não quero ir, nenhum de nós gosta muito disso, o Marcelo não pode, inclusive, porque é muito longe. Ele está com vários problemas de saúde, então, o Marcelo não pode, eu não tenho interesse, enfim, a Nalu vai estar lá, pois ela é amiga do Walter. Mas vamos estar cada um em um lugar e torcendo muito, porque acho que merecemos ganhar. Então, porque tem, como a gente estava dizendo, tem mil universos, tem várias dimensões de universos, e isso é trabalho do Walter, é isso que eu queria chamar a atenção, para o Walter e para os atores. Claro que está sentado na história da gente, está sentado no livro, mas são histórias humanas, né?
No filme você aparece com uma câmera filmando sua experiência no tempo vivido em Londres quando jovem. Você já quis ser cineasta?
Eu nunca peguei numa filmadora. Isso é uma liberdade poética do Walter. Eu acho que funciona muito bem, mas eu nunca filmei. Claro, até peguei, brincando, nem existia celular na época. Mas as cartas são verdadeiras. O texto é verdadeiro, porque ele pegou as cartas que eu trocava. Mas sair filmando não, eu nunca fui cineasta, nunca aprendi a ser, eu sempre fiquei em ciência política, sociologia, psicologia, porque não gosto só de pensar, gosto de fazer.