Mulheres negras são maioria das vítimas de feminicídio, violência armada e sexual no Brasil
Atlas da Violência mostra que, no mesmo período, a taxa de homicídios de mulheres negras aumentou 0,5%, ao passo que a de mulheres não negras diminuiu 2,8%
Uma das expressões mais cruéis do racismo no Brasil se manifesta na violência contra as mulheres e meninas negras, que são as principais vítimas de feminicídio, violência armada e violência sexual. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que, em 2023, elas foram 63,6% das vítimas de feminicídio, 68,6% das vítimas das demais mortes intencionais de mulheres e 52,5% das vítimas de estupro e estupro de vulnerável. E, ainda, que 45% delas sofreram algum tipo de violência do parceiro íntimo ao longo da vida.
Já o estudo “O papel da arma de fogo na violência contra a mulher”, lançado pelo Instituto Sou da Paz, mostra que 69% das assassinadas em 2023 com arma de fogo no Brasil eram pretas ou pardas.
E o Atlas da Violência de 2023, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), indica que a taxa de homicídios para mulheres negras cresceu no país 0,5% entre 2020 e 2021, ao passo que no mesmo período houve redução de 2,8% para as mulheres não negras.
De acordo com a doutora em Demografia pela Universidade de Campinas (Unicamp) e especialista no tema da redução dos feminicídios Jackeline Aparecida Ferreira Romio, existe um desequilíbrio na distribuição dos mecanismos de defesa da mulher no Brasil. Delegacias especiais de proteção à mulher são poucas e quase todas concentradas em um único estado (São Paulo) e nas capitais. O mesmo ocorre com as patrulhas da Lei Maria da Penha. “A própria oferta de serviços de atenção às mulheres vítimas da violência baseada no gênero leva à sobrevitimização das mulheres negras, do Norte e Nordeste, das periferias, devido às desigualdades estruturais de acesso a serviços. Devemos investir na redistribuição dos serviços e priorizar abrir novos equipamentos em locais que ainda não contam com atenção”, afirma.
Racismo estrutural – Romio destaca que prevalecem nas instituições o racismo e o sexismo estruturais, que diferenciam a forma de proteger mulheres conforme sua raça, local de moradia e idade. “Há um padrão histórico de naturalização da violência nas comunidades afrodescendentes e periféricas, além de um olhar enviesado que dificulta o acolhimento de vítimas negras e a atenção às suas queixas. Pesquisas apontam que vítimas negras têm mais dificuldades de registrar queixas e receber atenção que as brancas”, pontua.
A pesquisa “Chacinas e a Politização das Mortes no Brasil”, do Reconexão Periferias – Fundação Perseu Abramo, realizada com base em notícias publicadas em jornais, identificou 42 casos de feminicídio em chacinas ocorridas de norte a sul do país no período de dez anos, entre 2011 e 2020, que vitimaram 111 pessoas pelo fato de serem mulheres, em sua maioria negras.
Segundo a mestranda pela Universidade de São Paulo e pesquisadora Sofia Toledo, que coordenou o estudo, muitas delas são mortas em conflitos de grupos armados, por terras e em disputas políticas nas quais não se reconhece a questão de gênero. Portanto, os casos não são enquadrados como feminicídios. “As mulheres mortas em chacinas nos mais diversos contextos são xingadas, desmoralizadas, sofrem abuso sexual, calúnias, humilhações, principalmente em territórios periféricos”, observa.
Para Toledo, um dado que chama a atenção é que vários casos de chacinas em que morreram mulheres foram praticados por agentes de segurança em casa, envolvendo filhas, companheiras e mães. “Esse dado demonstra que muito da violência propagada pelos agentes de segurança em serviço é reproduzida no ambiente familiar. Outro ponto é que a mídia tradicional busca sempre naturalizar essas mortes, principalmente os casos em que as vítimas são mulheres negras”, diz .
Ela acredita que a compreensão da raça como artifício de manutenção do poder político e da dominação é motivadora de várias violências. “O racismo deu legitimidade à colonização europeia e à escravização e exploração da mão de obra. E também serviu para catalogar pessoas e definir um critério de humanidade do qual grupos racializados estão distantes, porque o parâmetro e o referencial são brancos. Todos esses fatores permanecem vivos no imaginário social. As mulheres negras são socialmente desvalorizadas em todos os níveis: intelectual, estético, são hiperssexualizadas. Tudo isso contribui para o seu genocídio, pois não são reconhecidas como seres humanos”, afirma.
Novas políticas e perspectivas
A doutora em Direitos Humanos e pesquisadora em raça e gênero do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Juliana Brandão, reitera que o Brasil continua sendo um país inseguro para as mulheres, apesar do aumento significativo da construção normativa que disciplinou o que é violência contra a mulher, cujo marco importantíssimo é a Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006.
Ela argumenta que é necessário trabalhar com políticas públicas que transcendam a concepção de que a violência é apenas física. “Podemos começar tomando uma compreensão mais ampla do direito à vida, que não é só estar viva. É estar com saúde, educação, moradia, um emprego em que a mulher tenha de fato as suas habilidades profissionais reconhecidas e seja remunerada a contento, a ponto de que ela possa disputar espaços dentro da nossa sociedade, exercitar sua cidadania de forma plena. Enquanto a gente não tiver isso continuaremos apagando incêndio”, diz.
E defende que se deve pensar em uma certa conexão com os direitos e trabalhar de forma mais consistente na questão da prevenção pela educação. “Enquanto a gente não se vê como agentes capazes de transformar o nosso entorno para além do nosso próprio umbigo, estaremos, ano a ano, repetindo as estatísticas, pensando em como recrudescer a legislação para trabalhar com a repressão. A saída não está no Direito Penal. E sim na educação, na formação política, na educação para a diversidade”.