Gilberto Gil Ao vivo: 50 anos do lendário show no Tuca
“Era muita dialética para a compreensão da censura. Passou batido”: Alberto Cantalice escreve sobre os 50 anos do álbum ao vivo de Gil gravado no Tuca, em São Paulo, em 1974
Nos idos de 1976, ano em que a ditadura civil-militar instaurada em 1964, completava 12 anos e começava a dar sinais de esgotamento, persistia em seu interior uma “luta interna” entre a “tigrada” da linha dura e os adeptos da transição lenta, gradual e segura propalada pelo então presidente da República General Ernesto Geisel.
O ano começou com a morte, sob tortura, do metalúrgico Manoel Fiel Filho, militante do PCB, nos porões do antigo Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, DOI-CODI, em janeiro, em São Paulo e se encerrou tragicamente para as esquerdas brasileiras com a Chacina da Lapa, na casa nº 767, da rua Pio XI, no bairro da Lapa, também em São Paulo, em que foram assassinados os dirigentes do PcdoB Pedro Pomar e Angêlo Arroyo, no local e João Batista Franco Drummond, no DOI-CODI.
Foi sob o clímax desses acontecimentos, que levado por um tio, Arthur Cantalice, (falecido em 2008, foi preso político e barbaramente torturado em anos anteriores), visitei a casa de uma antiga companheira dele, de militância e solidariedade, na Praça Seca, no subúrbio da Cidade do Rio de Janeiro.
Muito jovem ainda, fui perguntado pela dona da casa se gostava de música brasileira. Ao responder que sim (mesmo sem tanta convicção), fui levado por ela a uma vitrola de sua filha, que não estava presente, e me entregou três LPs: Meus Caros Amigos, de Chico Buarque, Transa, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, Ao Vivo, gravado no Teatro Tuca, da PUC de São Paulo no ano de 1974.
Lembro que passei boa parte daquela tarde/noite, enquanto os adultos estavam na sala, ouvindo os LPs. Todos me encantaram. Porém, foi ao ouvir a sonoridade e as batidas do Gilberto Gil ao Vivo, que me veio uma espécie de fascinação. “Eu tava comendo banana pro santo, prá quem? / Pro santo, prá quem? / Pro santo… Que santo? / O santo Espírito, senhor / Pai do Filho e do Espírito Santo ô, ô / Filho de uma localidade de lá a, a, a”. Mais do que a letra, um excelente jogo de palavras de Gil, o que mais me deslumbrou foi a salada de ritmos da canção que durava em torno de 11 minutos.
No embalo de João Sabino, Gil enfileirava, a um público dominado por um espírito catártico (essa inferência trago dos aplausos e da exortação da plateia) a cada música executada. Nessa toada, vieram Lugar Comum, Abra o Olho, Menina Goiaba, Sim Foi Você, Herói da Estrelas, de Jorge Mautner, Dos Pés À Cabeça, O Compositor Me Disse, Dia de Festa, Copo Vazio e Cibernética.
Essa música, por sinal, segue o caminho iniciado por Cérebro Eletrônico (1969), o que demonstrava a curiosidade do artista pelo desenvolvimento da ciência técnica, que se desdobrou em 1997, com o lançamento do álbum Quanta, e as músicas Ciência e Arte, Pela Internet e a letra que nomeia o álbum.
Copo Vazio, uma parceria de Gil com Chico Buarque, hoje um clássico, vem na esteira de Cálice, parceria da mesma dupla, que naquele momento estava presa nos escaninhos da censura do regime.
“É sempre bom lembrar, que um copo vazio, está cheio de ar. É sempre bom lembrar, que o ar sombrio de um rosto, está cheio de um ar vazio, vazio daquilo que no ar do copo, ocupa um lugar. É sempre bom lembrar, guardar de cor, que o ar vazio de um rosto sombrio, está cheio de dor…Uma metade cheia, uma metade vazia, uma metade tristeza, uma metade alegria. A magia da verdade inteira, todo poderoso amor…É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar”.
Era muita dialética para a compreensão da censura. Passou batido.
No show onde foi gravado esse disco memorável, Gil no violão e voz, foi acompanhado por Alisio Milanês, no piano, Fredera, na guitarra, Rubão Sabino, no baixo elétrico e Tutti Moreno, na bateria.
A partir de Gil Ao Vivo, inicio minha caminhada de fã e admirador daquele que é considerado um dos “Papas” da Música Popular Brasileira. O vinil já completa 50 anos. Portanto quando entrou no meu “radar”, já estava há dois anos na Praça. Parafraseando mestre Gil, pela Internet se é capaz de ouvir o álbum todo, como se o espetáculo fosse ontem.