Leci Brandão, 80 anos: a voz da classe trabalhadora e dos excluídos
Com quase cinco décadas de carreira, cantora carioca radicada em São Paulo popularizou histórias comuns de brasileiros e brasileiras em seus sambas
O número 143 da Rua Siqueira Campos, em Copacabana, já foi uma espécie de maternidade da música brasileira. Ali, ficava o Teatro Opinião, palco do programa Noitada de Samba, projeto criado em 1971 por Jorge Coutinho e Leonides Bayer para exaltar o gênero e, por sorte, descobrir novos talentos.
E foi numa daquelas noitadas que uma garota, à época com 29 anos, começou a chamar a atenção, não só do entusiasmado público do Opinião, como de críticos e produtores musicais.
O ano era 1973. E a garota era Leci Brandão da Silva, nome que marcaria para sempre o samba brasileiro – a despeito, a sambista já havia despontado como promessa desde 1968, quando venceu um duelo entre cantores no programa de Flávio Cavalcanti.
Quem consumou a “descoberta” foi o jornalista Sergio Cabral, morto em julho passado. O jornalista se consagrou como um dos grandes incentivadores do samba e, diziam à época, tinha olhos e ouvidos apurados para identificar como ninguém artistas promissores.
Com Leci foi assim. Suas apresentações na Noitada de Samba duraram quase três anos e, não fosse Cabral, a cantora nascida em Madureira e criada na Vila Isabel poderia ter parado por ali ou seguir outras profissões.
Trajetória
Leci fazia de tudo para ajudar no orçamento da família. Mulher, negra e periférica, ela encarava o que aparecia, com dificuldade, mas sempre de cabeça erguida. Quem a conhecia, no entanto, sabia que ela queria mesmo era estudar e cantar. Depois de concluir a faculdade, viu que seu destino era mesmo nos palcos. A partir dali, a Leci que fazia de tudo tornou-se a “Leci que cantava a vida de todos e todas”. A Leci que cantava e ainda canta samba sobre o povo brasileiro.
Estivesse vivo, Cabral provavelmente estaria entre os convocados para outra nobre missão: escrever ou falar sobre os 80 anos da Leci Brandão, quase 50 deles vividos pela música. Nascida em 12 de setembro de 1944, a hoje consagrada cantora tem motivado homenagens em revistas, rádios e programas de tevê nas últimas semanas. E as apresentações ao vivo, embora mais raras, mostram que a vitalidade de Leci segue praticamente intacta. Num programa da TV Globo, sambou e cantou o clássico Isso é Fundo de Quintal – escrito em parceria com o amigo Zé Maurício – como se o tempo estivesse parado.
“A temporada no Teatro Opinião surgiu de um convite de Jorge Coutinho, que me assistiu cantando na quadra da Mangueira a música “Quero sim”, um samba em parceria com Darcy da Mangueira. Ele gostou demais e percebeu que a quadra ficava muito animada na hora que esse samba era cantado na Escola. Foi ele que me convidou para ir ao Teatro Opinião participar da Noitada de Samba, que aconteceu em 1973. E foi assim que eu fui parar no Teatro Opinião”, contou Leci, em entrevista exclusiva para a Revista Focus.
“Cheguei, as pessoas gostaram e eu fui convidada novamente. A partir daí meu nome foi para o elenco do Teatro. Sérgio Cabral me assistiu em uma dessas apresentações e fez uma crítica muito positiva sobre o meu trabalho. Tanto que no meu primeiro LP tem um texto dele”, completou
A razão para tantas homenagens vai além da questão temporal: a história de Leci pavimentou a história do próprio samba nos últimos 50 anos, tornando o gênero mais abrangente, tanto na sonoridade quanto no enredo de suas letras, boa parte delas sobre as dores e delícias da classe trabalhadora – mais dores do que delícias, diga-se.
“Eu sempre cantei e compus as coisas que eu via e sentia. É assim até hoje. Eu canto e faço letras sobre a realidade que eu vejo, o que eu vivi e vivo.
Eu sempre vi a minha arte, a minha música como instrumento para falar da realidade das pessoas, para falar sobre as injustiças vividas pelo nosso povo. Acho que esse movimento de aproximação com as pautas da esquerda foi natural”, reiterou.
Leci, no entanto, disse que no início nem sabia que estava fazendo músicas que eram consideradas de protesto, e simplesmente falava do que ia no coração e na consciência. Com o tempo os movimentos sociais e os partidos de esquerda começaram a chamá-la para eventos porque viam que viam que sua música tinha tudo a ver com o que a esquerda defende. “Eu costumo dizer que eu cantei em todos os palcos das bandeiras vermelhas”.
Não chega a ser um espanto que o apreço pela temática social, que hoje é uma de suas marcas registradas, quase tenha a feito desistir. Por cinco anos, Leci afastou-se dos estúdios por pressão das gravadoras para que deixasse a vida do proletariado e dos excluídos longe de suas letras. Neste tempo, seguiu realizando apresentações em sindicatos, eventos de estudantes, e shows para toda sorte de movimentos sociais e grupos identitários. Quando enfim teve seu estilo aceito pelas gravadoras, não parou mais de lançar clássicos. De lá para cá, todos os seus álbuns contam com pelo menos uma música ligada ao universo que tanto a inspira.
Em Zé do Caroço, por exemplo, Leci canta a vida comum de um trabalhador que se torna porta-voz da comunidade em que vive. ´”É que o Zé põe a boca no mundo / Que faz um discurso profundo / Ele quer ver o bem da favela / Está nascendo um novo líder.” A música foi lançada em 1978 e foi inspirada numa história real.
Em Dona de Casa, já na década de 1990, a arte também imitou a vida com maestria. “Sou uma dona de casa que combate a inflação / Com o dinheiro que me cabe eu só compro em promoção”.
Além dos hits que a consagraram, outras conquistas em sua carreira são bastante emblemáticas: primeira mulher a integrar a ala de compositores da Estação Primeira de Mangueira; primeira intérprete de samba de enredo da Acadêmicos de Santa Cruz; pioneira ao cantar e compor sambas de temáticas negra, feministas e ligado ao universo da classe trabalhadora.
De 1975, quando o elogiado primeiro disco saiu do forno, a 2013, ano em que lançou seu último álbum, já foram mais de 30 produções, entre inéditas coletâneas e registros ao vivo, nesses quase 50 anos de carreira. Em todos eles, de alguma forma, Leci acabaria por mostrar também outra habilidade, a aptidão para a política.
Moradora de São Paulo desde o início dos anos 2000, tornou-se a segunda negra eleita para a Assembleia Legislativa e batizou seu gabinete de “Quilombo da Diversidade”.
É de Leci Brandão, por exemplo, os projetos de lei que definiram o dia 2 de dezembro como Dia Estadual do Samba e o que torna o gênero patrimônio imaterial de São Paulo. Aos (quase) 80 anos, a cantora segue fazendo história.
Eu acredito que primeiro foi o samba que me orientou no parlamento, porque quando eu fui eleita, a primeira coisa que eu fiz foi pegar todos os discos que eu tinha gravado e rever tudo que eu cantei, todas as letras. E foram as letras dos meus sambas que compuseram a minha linha de atuação no parlamento.
Tudo que eu defendi como sambista eu passei a defender como parlamentar, inclusive o próprio samba”, defendeu Leci.
Com o samba como guia das pautas do nosso mandato, o Quilombo da Diversidade, nome do seu gabinete, segue na defesa da Educação, dos direitos das Mulheres e LGBTs, defesa da igualdade racial e das religiões de matrizes africanas, combate ao racismo e ao racismo religioso, defesa dos trabalhadores, da cultura, dos fazedores de cultura, do samba e de outras formas de expressão da cultura e da arte. “Está tudo lá. O que eu canto no palco eu também defendo na tribuna da Alesp”.