Segurança pública: saúde mental e mundo do trabalho
Juliana Ribeiro*
Sentir-se bem, feliz e saudável tornou-se um dos grandes discursos de nossa sociedade, em contradição ao imenso fenômeno do adoecimento mental, marcado pela depressão, ansiedade, estresse e suicídio.
Tais aspirações podem ser consideradas ilusórias no contexto da exploração do trabalho, já que a pressão pela produtividade e eficiência é ferramenta corrente de gestão, geradora de indução ao adoecimento.
Esse discurso da felicidade, ainda, atribui ao indivíduo a responsabilidade única por alcançá-la, afastando o intrínseco contexto social e histórico, mediador dessa condição.
Ou seja, nesse ardil, arrisca-se a incumbir o trabalhador, além de suprir sua necessidade de alimentação e descanso, da tarefa de garantir sua saúde mental, independentemente das condições do meio em que vive, sob pena de desemprego e isolamento social.
No mundo do trabalho, essa pauta assume a potencial condição de reflexão sobre o sistema e suas consequências, em diversos âmbitos, desde o modo de produção até seus reflexos nas políticas públicas e instituições que as compõem.
Desta forma, observar a saúde mental impõe abordagem prudente em relação a objetificação das pessoas, para unicamente estarem mais bem dispostas aos desgastes e riscos da exploração do trabalho, inserindo a perspectiva humana em plenitude.
É nesse contexto que também se enquadra a observação em relação aos policiais. São eles submetidos a ambiente de trabalho adverso, pois atuam perante grandes mazelas sociais e vivenciam relações institucionais autoritárias e deturpadas, demonstrado pelos índices de adoecimento mental e suicídios, superiores aos de outras categorias.
Como contorno deste esforço, desenvolve-se especial ênfase às problemáticas institucionais e às especificidades das atribuições, como sendo elementos preponderantes para a ocorrência dos índices de adoecimento mental e suicídios dos policiais no Brasil, a despeito dos aspectos individuais.
Embora existam poucas pesquisas relacionadas à saúde mental dos profissionais de segurança pública, é possível trazer à baila contrariedades constatadas pela sociedade,
em senso comum, no tocante a desmotivação e falta de engajamento dos policiais, produtoras de má qualidade na prestação do serviço de segurança pública. Nesse sentido, a Pesquisa Nacional de Valorização dos Profissionais de Segurança Pública realizada pela Universidade de Brasília (UnB) e Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), conclui que, dentre outros, os principais temas que impactam a qualidade de vida no trabalho dos policiais são: engajamento, motivação, qualidade do sono, psicopatologia, neuroticismo, Burnout, satisfação com a vida, endividamento e qualidade da alimentação.
Os altíssimos índices de suicídio consistem no principal indicador da gravidade do adoecimento mental desses profissionais. Em a “Análise crítica sobre o suicídio policial”, realizada pela Ouvidoria das Polícias do Estado de São Paulo, os índices de suicídio dos policiais são 4 vezes maiores do que os índices da população não policial, e pode ser considerado epidêmico, segundo parâmetros da OMS.
A pesquisa Perfil dos Profissionais de Segurança Pública, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, referente aos dados de 2022 e 2023, assim demonstra:
Instituição | suicídios |
Polícia Militar | 171 |
Polícia Civil | 33 |
Polícia Penal | 12 |
Corpo de Bombeiros Militar | 10 |
Órgãos de Perícia Oficial | 0 |
TOTAL GERAL | 226 |
O modelo de segurança pública brasileiro contém 138 instituições, entre estaduais e federais, que mantêm uma cultura institucional de forte hierarquização. E são as relações internas um dos maiores desafios dessa análise, na medida em que apresentam uma preponderância do autoritarismo, fundado no assédio e no controle do indivíduo, inclusive na sua vida privada e no modo de enxergar a vida.
Em pesquisa realizada nas Instituições de Segurança Pública de Alagoas, o Ministério Público e a Universidade Federal de Alagoas identificaram que, por exemplo, no Corpo de Bombeiros:
“quase a metade das 98 mulheres que responderam à pesquisa (46,9%) – cerca de 45 mulheres – já foram vítimas de assédio sexual. Essa cifra é bastante expressiva, sobretudo quando os dados são comparados com os poucos casos levados até a
Corregedoria do Corpo de Bombeiros Militar de Alagoas: apenas 02 procedimentos correcionais em 2020 e apenas 05 nos últimos cinco anos.” (pág. 45)
É preciso ressaltar que as instituições policiais brasileiras se encontram no cerne do estado mínimo, cujo reflexo é o sucateamento dos recursos materiais e redução constante de quadro de servidores, o que gera imensa sobrecarga de trabalho. A exemplo, a Polícia Civil de São Paulo, apresenta, no ano 2024, um déficit de 17 mil servidores.
Outro aspecto relevante é a restrição ao exercício de direitos, que consiste hoje no impedimento do direito de greve e da livre manifestação de pensamento em relação às condições de trabalho. Disso resulta a existência de poucos e/ou enfraquecidos canais de reivindicação das demandas dos policiais e a pouca consciência da condição de ser o policial um servidor público/trabalhador, sujeito de direitos – humanos.
Essas restrições contribuem para dificultar a realização das mudanças, tanto no modelo de segurança quanto nas questões cotidianas institucionais, na medida em que retira da cena o policial como cidadão. É uma categoria que trabalha com condições precárias e suas reclamações diárias não se transformam em demandas, mas sim em
elementos individuais de aceitação.
O breve e superficial retrato acima esboçado é apto a demonstrar o contexto institucional e laboral dos policiais como sendo uma verdadeira “panela de pressão”, que se expressa em violências.
A saúde mental é responsável pelas boas condições de tomada de decisão, durante as atividades cotidianas dos policiais, pois tem influência na capacidade de cognição da realidade. E, sendo profissionais portadores de arma de fogo e do poder de restringir direitos de terceiros, a fragilidade da saúde mental deve ser observada como elemento fundamental do sistema. Desta feita, até mesmo para os debates referentes à letalidade e à qualidade do serviço prestado, o adoecimento mental dos policiais merece destaque.
Pois, se estamos diante da possibilidade de vivermos num modelo que, além de prestar um serviço inadequado às demandas sociais, contribui para o adoecimento e suicídio de seus servidores, a adoção de medidas é urgente.
A oferta de assistência psicológica é uma política necessária para evitar a perda de vidas e insere as instituições na responsabilidade da questão. Em geral, medidas de valorização do profissional policial podem ajudar na garantia de uma gestão pública apta a entregar um serviço de melhor qualidade à população.
Um primeiro passo já foi possível. O governo federal, por intermédio do Ministério da Justiça e Segurança Pública, está oferecendo atendimento psicológico online e gratuito para profissionais de segurança pública, no Projeto ESCUTA SUSP. E por meio dele foram elaborados protocolos específicos para as questões policiais, com base em estudos realizados por terapeutas coordenados pela UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais. Para isso ser possível, os terapeutas foram capacitados para compreenderem a dinâmica do universo policial e, assim, adquirirem repertório para as consultas. Esse projeto proporciona acionamento direto pelo profissional, sem qualquer filtro institucional.
Mas, a fim de se evitar o ardil do discurso utilitarista de melhoria da qualidade de vida no trabalho, apenas com enfoque na qualidade do serviço público, importante se torna observar as condições extenuantes dessa mão de obra, acolhendo essas demandas e visando construir consciências.
Um segundo passo precisa ser dado e extrapola a função de governo ou de uma política pública. Numa perspectiva político-organizacional, essa é uma oportunidade de busca de canais de diálogos com as associações da categoria, de adoção de posturas de apoio nas lutas por melhoria salarial e defesa de seus direitos humanos, em casos como assédios, homofobia, racismo etc., proporcionando novos rumos e novos argumentos de debate estruturais.
A segurança pública continuará sendo uma das principais pautas a serem tratadas nos debates públicos, sendo relevante uma posição partidária incisiva sobre o acolhimento das demandas do trabalhador policial, a partir de sua saúde mental e seus reflexos, como sendo um dos pilares dos programas de governo na área de segurança elaborados.
Referências:
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COSTA, Elaine Cristina Pimentel (orgs). Projeto Mulheres em Segurança: ASSÉDIO NÃO! 2021. Disponível em https://noticias.ufal.br/ufal/noticias/2021/12/pesquisa-da ufal-apresenta-relatos-de-mulheres-sobre-assedio-na-seguranca-publica-de-alagoas
MARIANO, Benedito Domingos. Uma análise crítica sobre Suicídio Policial. São Paulo: Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, 2019.
Pesquisa Perfil das Instituições de Segurança Pública. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMDc0ZWFjYTgtYjA1OS00YzBmLWJkNTct ZmVjODM2YzlmYzBjIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLT RiOGRhNmJmZThlMSJ9
SILVA, Michel Goulart. O capitalismo, os trabalhadores e a saúde mental. 2021. Disponível em: https://www.marxismo.org.br/o-capitalismo-os-trabalhadores-e-a-saude mental/
Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo. Disponível em: https://sindpesp.org.br/
TSCHIEDEL, Rubia Minuzzi, & MONTEIRO, Janine Kieling. Prazer e sofrimento no trabalho das agentes de segurança penitenciária. Estudos de Psicologia, 18(3), 527-535, 2013.
* Coordenadora geral de Valorização Profissional SENAS/MJSP, Delegada de Polícia do Estado de São Paulo, Pós graduada em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Paulista de Magistratura (2022) e pela PUC/SP (2011), Pós graduada em Estudos Latino-americanos pela UFJF (2004), Graduada em Direito Pela PUC/SP (2000).